quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Astrojildo Pereira - Decano do Partido Comunista Brasileiro.

Ubiracy de Souza Braga

A história caminha para frente, embora não em linha reta”. Astrojildo Pereira

             

           Astrojildo Pereira Duarte Silva nasceu na cidade de Rio Bonito, no estado do  Rio de Janeiro, em 1890. Algumas informações curiosas sobre sua infância e adolescência, segundo Leandro Konder, no artigo: Astrojildo PereiraO Homem, O Militante, O Crítico (1981) se acham nas respostas que deu a um questionário que lhe foi apresentado por Gilberto Freyre e utilizadas no livro Ordem e Progresso (1957) quando analisa o período de transição conservadora da Monarquia à República correspondente  à desintegração do patriarcalismo na sociedade brasileira. Quando estudava num colégio de jesuítas (o Colégio Anchieta, de Nova Friburgo), Astrojildo – então com 13 anos – pensava em se tornar frade, mas ao mesmo tempo redigia, juntamente com um colega, um jornal clandestino pornográfico. Aos 16 anos, no Colégio Abílio, em Niterói, fez os seus primeiros versos amorosos. Abandonou o curso ginasial no terceiro ano, tornando-se antimilitarista e ateu. Optando pelos caminhos do autodidatismo, Astrojildo começou a ler autores anarquistas e a se interessar pelas lutas operárias. As condições de seu tempo lhe permitiam ter acesso menos restrito à literatura filosófica e política de inspiração libertária, que se difundia mais audaciosamente após a queda do Segundo Reinado (1840-89) e a proclamação tardia ou retardatária da República. A nação desarticulada, deserta, paupérrima e inculta pouco interessavam as rotações partidárias, excetuada a clientela  sedenta em torno dos pequenos empregos públicos. A reduzida e desenraizada elite que no Parlamento se esforçava por copiar os figurinos ingleses, até na indumentária, não podia iludir-se sobre a comédia em que eram, afinal, comparsas.   

        O fracasso da campanha civilista de Rui Barbosa, a repressão à revolta do marinheiro João Cândido e o fuzilamento do pedagogo anarquista Ferrer, na Espanha, dissiparam as últimas ilusões que Astrojildo depositava no republicanismo liberal. Em 1911, Astrojildo partiu num navio, como passageiro de 3ª classe, para a Europa, de onde regressou, com uma mala de livros, mas completamente sem dinheiro, repatriado pela associação da colônia brasileira em Paris, que lhe pagou a passagem de volta. Às leituras de Piotr Kropótkin, Jean Grave, Gabriel Urbain Faure, Enrico Malatesta e Augustin Hamon, acrescentou-se o  estudo dos escritos de Mikhail Bakunin. A partir de 1911,  Astrojildo se dedicou à idealização da difusão do anarquismo em regime de tempo integral. Trabalhou em vários pequenos jornais: A Voz  do Trabalhador, Guerra Social, Spartacus, O Cosmopolita e outros. Para suprir a falta de colaboradores, desdobrou-se em numerosos pseudônimos: Aurélio Corvino, Pedro Sambê, Tristão, Cunhambebe, Alex Pavel, Astper, etc. Para animar esses órgãos pioneiros da “imprensa alternativa”, Astrojildo chegou até a polemizar consigo mesmo, enquanto meio de trabalho e processo social de comunicação, usando os distintos colaboradores cujos nomes inventava criativamente. Apesar de sua limitadíssima circulação, as folhas da imprensa operária irritavam as autoridades conservadoras, que de vez em quando mandavam beleguins empastelarem as instalações dos pequenos jornais e prenderem seus redatores. Num dado momento, a polícia chegou a procurar Alex Pavel – um dos pseudônimos de Astrojildo – supondo tratar-se de um perigoso agente subversivo russo.

Como parte do emprego de seu método filosófico, inspirado por Sócrates e pelos diálogos socráticos, a obra de Søren Kierkegaard foi escrita com vários  pseudônimos que representam, cada um deles os seus pontos de vista metodológicos distintivos e que interagem socialmente uns com os outros em complexas formas de diálogos. Este método de interpretação permitiu-lhe apresentar pontos de vista distintos e interagir socialmente com os outros através de um diálogo complexo. Ele explorou problemas religiosos a partir do entrecruzamento de diferentes pontos de vista, cada um sob um pseudônimo diferente. O termo pecado, por exemplo, é utilizado em contexto religioso para descrever qualquer “desobediência à vontade de Deus”; mas em especial, qualquer desconsideração deliberada de leis divinas. Vale lembrar desde sua fundação, que a igreja é vista como um local de auxílio aos seus membros mais necessitados. O apóstolo Tiago, exorta para que a igreja olhe, vele, assista às pessoas que estão carentes de assistência, de ajuda, como os órfãos e as viúvas em suas necessidades sociais.

Historicamente por trás de curiosos pseudônimos, o filósofo dinamarquês Kierkegaard evitou o reconhecimento nominal usando os mais diversos pseudônimos por vezes com inúmeros significados: Victor Eremita, Johannes de Silentio, Constantin Constantio, Hilarius Bogbinder, Anti-Climacus. Reconhecido por levar uma vida solitária e isolada, Kierkegaard foi um dos fundadores da filosofia existencialista. A sua obra teológica incide sobre a ética cristã e as instituições da Igreja. Ele escreveu muitos de seus Discursos de Edificação sob seu próprio nome e os dedicou ao indivíduo único que pode querer descobrir o significado de suas obras. Notavelmente, ele escreveu: - “A ciência e o método escolar querem ensinar que o objetivo é o caminho. O cristianismo ensina que o caminho é tornar-se subjetivo, tornar-se um sujeito”. Embora os cientistas possam aprender sobre o mundo pela observação, Kierkegaard negou enfaticamente que essa observação poderia revelar o funcionamento interno do mundo do espírito. Na vertente psicológica explora o sentido e o significado das emoções e sentimentos dos indivíduos quando confrontados com as escolhas pessoais que a vida independente da vontade oferece. O Desespero Humano é um livro escrito em 1849 sob o pseudônimo Anti-Climacus. Trata sobre o conceito de desespero de Kierkegaard, analiticamente comparado ao conceito cristão de pecado. Muitos destes termos utilizados demonstram uma conexão inegável com os conceitos utilizados mais tarde em 1895 pelo inventor da psicanálise Sigmund Freud.




Astrojildo Pereira iniciou militância política em organizações operárias de orientação anarquista, tendo sido um dos principais promotores em 1913 do II Congresso Operário Brasileiro. Foi também na imprensa operária que se iniciou no jornalismo, atividade a que se dedicaria durante a maior parte de sua vida. No final de 1918, participou dos preparativos de uma insurreição anarquista e, por conta disso, foi preso. A subestimação da política e das questões de organização por parte dos anarquistas tinha consequências negativas para o movimento operário, pois não conseguiam consolidar nenhuma vitória. Solto em 1919, começou a afastar-se do anarquismo e a defender os rumos tomados pela Revolução Russa Socialista de 1917. Em março de 1922, participou do congresso de fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB) sendo eleito secretário-geral da organização político-partidária. Em 1924, fez sua primeira viagem à Moscou, na União Soviética revolucionária. No ano seguinte, quando o PCB iniciou a publicação do jornal A Classe Operária, tornou-se, ao lado de Otávio Brandão, um de seus principais redatores. Em 1927, encarregado pela direção do partido de buscar contato com Luís Carlos Prestes, então exilado na Bolívia, entregou ao líder tenentista diversos volumes de literatura corrente marxista. Em 1928, passou a fazer parte do comitê executivo da Internacional Comunista, eleito no VI Congresso da entidade realizado em Moscou.

O nome Partido Comunista do Brasil havia sido usado primeiramente pelo antigo PCB, fundado em 25 de março de 1922. Enquanto o PCB abandonava em definitivo a figura de Stálin, o PCdoB manteve o ex-líder soviético como uma de suas referências teóricas ao lado de Marx, Engels e Lênin. Na mesma época, a crise entre a União Soviética e a China atingiu o seu auge, quando o líder chinês Mao Tsé Tung criticou o  processo de desestalinização em curso na União Soviética, e acusou Khrushchev de desvios oportunistas e reformistas. Posteriormente o PCB alterou seu nome para Partido Comunista Brasileiro, fundado com a presença de 9 delegados, representando diversos grupos regionais e que somavam um total de 73 membros. Um bom número deste militantes fundadores eram libertários. Dos nove membros que fundaram o PCB somente o barbeiro Abílio de Nequette e Manoel Cendón são socialistas, enquanto os restantes vinculam-se aquele movimento. Uma leitura atenta da obra de Otávio Brandão, escrita em 1924 sob pseudônimo de Fritz Mayer, Agrarismo e Industrialismo, as revoluções pequeno-burguesas de 1922 e 1924, cometeram erros graves, anterior à sua adesão afetiva ao PCB em 15 de outubro de 1922, verifica as fortes influências anarquista e mística delineada nos ensaios e livros, que se traduzem no predomínio do questionamento, esquemático e acentuadamente ideológico, resistindo traços da doutrina anarquista mesmo considerado em algumas de suas posições pós-adesão.

A chamada “desestalinização” refere-se ao processo de ver como o culto da personalidade e do sistema político stalinista criado pelo líder soviético Josef Stalin. A desestalinização começou tecnicamente em 1953 após a morte de Stalin, mas não era oficial até 1956, após o discurso secreto de Nikita Khrushchev, então secretário do Comitê Central da União Soviética, e liberado após o XX Congresso do PC da URSS. Com sua morte, Stalin foi sucedido por uma liderança coletiva. Os homens fortes da central soviética na altura eram Lavrentiy Beria, a cargo do Ministério do Interior, Nikita Khrushchev, Primeiro Secretário do Comitê Central do Partido Comunista e Georgi Malenkov, Premier da União Soviética. O processo de desestalinização começou com um fim ao papel do trabalho forçado em grande escala na economia. O processo de libertar prisioneiros dos Gulags foi iniciado por Béria, mas ele foi logo retirado do poder. Khrushchev, em seguida, emergiu como o mais poderoso político soviético. No discurso “Sobre o Culto à Personalidade e suas Consequências” para a sessão fechada do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética em 25 de fevereiro de 1956, Nikita Khrushchev chocou seus ouvintes denunciando duplamente, por um lado, o regime ditatorial e, por outro, o culto da personalidade de Josef Stalin. Ele também atacou os crimes políticos cometidos pelos associados de Lavrenti Pavlovitch Beria, político soviético e chefe da NKVD na Geórgia. Beria. É lembrado como o executor do Grande Expurgo de Stalin na década de 1930, tendo-o presidido.

Não poderíamos repetir o mesmo com Astrojildo Pereira, homem de leitura mais vasta, bom conhecedor da literatura socialista europeia em geral, e em particular a teoria da história e o método de análise materialista e dialético de Marx e Engels. Em 1929, publicou em A Classe Operária o artigo “Sociologia ou apologética?”, estudo crítico da obra de Oliveira Vianna, Populações Meridionais do Brasil, em que eram contestadas as opiniões do autor, que negava a existência de luta de classes na história do Brasil. O trabalho foi depois incluído nos livros Interpretações (1944) e Ensaios históricos e políticos (1979). Lembra Vanilda Paiva no artigo: Oliveira Vianna: Nacionalismo ou Racismo?  (1978), que a presença de Oliveira Vianna na vida intelectual brasileira é frequentemente subestimada, especialmente entre os que passaram a viver os problemas políticos e culturais de forma plenamente consciente a partir dos anos 1960. Sobre ele são amplamente reconhecidos o ensaio de Nelson Werneck Sodré, Oliveira Vianna – o racismo colonialista (1961) e o estudo de Astrojildo Pereira intitulado: Sociologia ou Apologética?, escrito em 1929 e reunido com outros estudos em Interpretações (1944). Ambos os autores se concentraram com muita justiça, sobre o caráter racista e de apologia das classes dominantes que permeia a obra Populações Meridionais do Brasil que levou o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos a caracterizá-lo como autoritarismo instrumental

Os fundadores do Partido Comunista Brasileiro: Manoel Cendon, Joaquim Barbosa, Astrojildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva (de pé, da esq. p/ dir.); Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro (sentados, da esq. p/ dir.). Foto: João da Costa Pimenta (1922).

Em fevereiro de 1929, após o 3° Congresso do Partido Comunista Brasileiro, realizado entre dezembro de 1928 e janeiro de 1929, no qual foi vencido o grupo de oposição, denominado Dissidência, chefiado por Joaquim Barbosa e Rodolfo Coutinho, Astrojildo Pereira, eleito durante os trabalhos e debates do 6° Congresso para o Comitê Executivo da Internacional Comunista, sob o pseudônimo de Américo Ledo, seguiu para Moscou, onde trabalhou no Secretariado para a América Latina, regressou ao Brasil em janeiro de 1930. Em artigo publicado em Autocrítica, n°6, com o título: O Proletariado Perante a Revolução Democrática Pequeno-Burguesa (1928), Otávio Brandão afirma que no Brasil trata-se de nossa aliança com os revoltosos pequeno-burgueses contra os grandes proprietários rurais e feudais e, em segundo lugar, contra todas as frações da grande burguesia: comercial, industrial, burocrática, acrescentando “a revolução democrático-burguesa é uma criadora de possibilidades”. À sua sombra preparar-nos-emos, afirma, para a nossa verdadeira obra. Não podemos ser contrários a essa revolução”. E como conclusão: “no Brasil, o problema da pequena-burguesia é urbano e não rural como na Rússia”. Esta concepção da revolução brasileira e de suas forças motrizes, elaborada durante tantos anos, recebeu sua consagração, por assim dizer, no 3° Congresso do PCB, de dezembro de 1928, com a denominação de “terceira revolta”, prevista como continuação histórica dos movimentos tenentistas de 1922, 1924 e 1926, sucedida de fato, na luta armada vitoriosa da Aliança Liberal do prócer  Getúlio Vargas, na década de 1930 em que ocorre a radicalização política.

A tese do 3° Congresso, segundo Astrojildo: “Toda a tática do Partido Comunista deve, portanto, subordinar-se a esta etapa estratégica de mobilização das massas em vista do movimento que se prevê. Em tese o Partido deverá colocar-se à frente das massas, a fim de conquistar, por etapas sucessivas, não só a direção da facção proletária, mas a hegemonia do todo o movimento”. Queremos dizer com isso que a analogia das palavras não deve levar a confusões. Chamam-se igualmente partidos as facções que dividiam as Repúblicas antigas, os clãs que se agrupavam em torno de um condottiere na Itália da Renascença, os clubes onde se reuniam os deputados das assembleias revolucionárias, os comitês que preparavam as eleições censitárias das assembleias revolucionárias, bem como as vastas organizações populares que enquadram a opinião pública nas democracias modernas. Essa identidade nominal justifica-se por um lado, pois traduz certo parentesco profundo: todas essas instituições não desempenham o mesmo papel, que é o de conquistar o poder político e exercê-lo? Porém, sociologicamente, observamos que não se trata da mesma coisa. De fato os verdadeiros partidos datam pouco mais de um século. Em 1850, nenhum país do mundo, salvo os Estados Unidos da América, conhecia partidos políticos no sentido contemporâneo do termo: encontravam-se tendências de opiniões, clubes populares, associações de pensamento, grupos parlamentares, mas nenhum partido político propriamente dito. Em 1950, estes funcionavam na maior parte das nações civilizadas, os outros se esforçavam por imitá-las, ou apenas transplantá-las.

            O nascimento dos partidos políticos encontra-se, portanto, ligado ao dos grupos parlamentares e comitês eleitorais. Não obstante, alguns manifestam uma natureza mais ou menos aberrante em relação ao esquema geral: sua gênese situa-se fora do ciclo eleitoral e parlamentar, formando essa exterioridade, aliás, seu caráter comum mais nítido. Contudo, o mecanismo geral dessa gênese é simples: criação de grupos parlamentares, de início; surgimento de comitês eleitorais, em seguida; enfim, o estabelecimento de uma ligação permanente entre esses dois elementos. Na prática, a pureza desse esquema de análise teórica é modificada de diversas formas. Os grupos parlamentares vem à luz antes dos comitês eleitorais: com efeito, houve assembleias políticas antes que se realizassem eleições. Grupos parlamentares são concebíveis no âmbito de uma Câmara autocrática bem como de uma Câmara eleita: na realidade, voltamos ao ponto inicial da questão. A luta das facções geralmente se têm manifestado em todas as assembleias hereditárias ou cooptadas, quer se tratasse do Senado da Roma clássica, quer da Dieta da antiga Polônia. Mas há ainda uma questão chave para seu entendimento político. Certamente, quem diz “facção” ainda não diz “grupo parlamentar”: entre os dois, existe toda a diferença que separa o inorgânico do organizado, este sim, que levaria mais tarde o italiano Antônio Gramsci desenvolver uma concepção original sobre o papel do intelectual revolucionário. O segundo decorre da primeira, por uma evolução mais ou menos rápida.    

Segundo Heitor Ferreira Lima no artigo: Astrojildo Pereira e uma Mudança na Orientação do PCB (1981), essa apreciação da dinâmica política entre nós era, evidentemente, falsa e inadequada à realidade objetiva, que não sabíamos ver, e ao papel revolucionário que o PCB deveria desempenhar. Recebeu, por isso, a mais viva repulsa nas reuniões do Secretariado da Internacional Comunista para a América latina, através de críticas contundentes. O PCB foi acusado de orientar toda a sua tática e estratégia à espera da “terceira revolta”, colocando-se, desse modo, à reboque da pequena burguesia, menosprezando as reivindicações específicas do proletariado; de abandonar a questão camponesa, esquecendo a reforma agrária e a aliança dos operários com os trabalhadores do campos; de esconder o Partido atrás do Bloco Operário e Camponês; de não cuidar suficientemente da formação do PCB independente, à altura das necessidades nacionais; de não se ocupar com os problemas dos negros e dos índios; enfim, de adotar uma orientação pequeno-burguesa, contrária ao leninismo e às recomendações da Internacional Comunista. Em resumo, um arrasamento na ideologia e na prática seguidas no Brasil. Tal contestação em forma tão severa deixou os membros brasileiros presentes perplexos, atônitos, quase que sentindo-se aniquilados, pois, desmoronavam irremediavelmente, os esforços de tantos anos de trabalho e sacrifícios.

            Estes acontecimentos dentro do PCB ocorreram no primeiro semestre de 1930, quando parte da nação republicana atravessava um dos períodos mais agitados de sua história política pela sucessão presidencial. Politicamente o PCB declarava ser “contra os golpes fascistas, conspirações militares, complots de chefes tramados á revelia das massas e a serviço do imperialismo”, apresentando seus próprios candidatos à presidência da República, ao senado e à Câmara dos Deputados, sob a palavra de ordem de “Votar no PCB é votar na Revolução”.  Quando veio o “prélio das armas”, melhor dizendo, o movimento armado de outubro, o PCB alheou-se da luta, dando margem a que as vastas camadas da classe média e do proletariado engrossassem o entusiasmo das multidões que receberam os vencedores de 1930, dirigidos pelos autoritários velhos caciques oligarcas, como Arthur Bernardes, Epitácio Pessoa, Antônio Carlos, Borges de Medeiros. A aparente derrota política do PCB imobilizou-o, paralisando-o quase que completamente, embora fazendo crescer as disputas internas. Octávio Brandão, após as contundentes críticas de Buenos Aires, foi afastado do Comitê Central do partido, juntamente com o metalúrgico José Casini e o gráfico Ferreira da Silva, considerados responsáveis pelos recentes reveses e erros de diagnóstico do Partido. Em novembro de 1930, em reunião ampliada do Comitê Central, Astrojildo Pereira foi destituído do cargo de secretário geral, que ocupava desde a fundação do PCB, sob a acusação de permitir que a organização atingisse um estado crítico e por resistência à proletarização.

            Astrojildo Pereira e Paulo Lacerda deveriam escrever cartas reconhecendo seus erros e foram encaminhados a São Paulo, em busca de reabilitação, ocasião em que Astrojildo escreveu carta ao Bureau Sul-americano informando sua intenção de afastar-se do partido. Tratava-se de uma tática, pois não iria abandonar a luta política dentro e fora do partido. Contudo, em São Paulo, Astrojildo, foi preso e deportado para o Rio Grande do Sul, regressando logo, para casar-se com Inês Dias, a primeira filha de seu velho amigo e companheiro de lutas, Everardo Dias, seguindo para Rio Bonito, sua terra natal. Lá permaneceu algum tempo, dizendo achar-se voluntariamente alheado de qualquer atividade política. Em verdade, mais tarde acrescentava no prefácio de seu livro: URSS – Itália – Brasil que tratava-se de autocrítica, em lugar adequado, como se estivesse aqui encerrando uma fase da vida política sem perder de vista desde 1921, quando da criação do grupo comunista do Rio de Janeiro, celular-mater do Partido Comunista. Everardo Dias aprendeu as primeiras letras com os pais, herdou o ofício paterno e trabalhou como tipógrafo caixista no jornal O Estado de São Paulo enquanto fazia a Escola Normal da praça da República. Chegou a frequentar a Faculdade de Direito do largo São Francisco, mas abandonou-a por falta de recursos. Só mais tarde conseguiria o título de bacharel, na Faculdade Livre de Direito do Rio. A partir de 1903, por mais de dez anos, dirigiu o jornal O Livre Pensador, que defendia a liberdade religiosa e de imprensa, cultuando a razão contra o conservadorismo da Igreja Católica.

            Na década de 1910, acompanhou a ascensão do movimento operário. Publicou textos como Jesus Cristo era anarquista, editado em 1920 pelo grupo do jornal A Plebe, do qual foi colaborador. Participou da greve geral paulista de 1917, quando redigiu o célebre “Manifesto aos soldados”, convocando-os a aderir ao movimento. Segundo seu amigo Edgard Leuenroth, reconhecido líder anarquista, a atuação seria ainda mais intensa na greve de 1919, embora Everardo argumentasse na época que seu vínculo com os grevistas era de colaboração com a imprensa operária e de apoio à greve, sem desempenhar papel relevante no movimento. De toda forma, por sua participação, foi preso, castigado com 25 chibatadas e depois deportado junto com outros grevistas nascidos no exterior. É essa história que relata no livro: Memórias de um exilado, de 1920. Entre os expulsos do país que seguiram a bordo do navio Benevente foi o único a conseguir o perdão presidencial, graças às relações com ilustres republicanos e maçons. O deputado federal Maurício de Lacerda liderou a campanha contra sua deportação, que foi apoiada nacionalmente pela maçonaria, alguns parlamentares e integrantes do movimento operário. Mas antes de obter o perdão do presidente Epitácio Pessoa, teve seu pedido de habeas corpus negado pelo Supremo Tribunal Federal. Sendo casado com brasileira e tendo cinco filhas nascidas no país, para onde viera ainda pequeno, entre outros fatores alegados por advogados, sua deportação parecia absolutamente ilegal. Por concordar com os argumentos do solicitante, o ministro Edmundo Lins insurgiu-se contra a decisão do STF, liderada pelo ministro Viveiros de Castro.

Conforme observou Vamireh Chacon, no ensaio: História da Ideias Socialistas no Brasil, editado dez dias após o golpe de Estado de   de abril de 1964: o socialismo não é uma ideia exótica no Brasil. Em verdade tem suas raízes históricas, sociais e políticas com seus líderes marcantes, seu acervo coroado de lutas e conquistas trabalhistas, embora quase nunca registrados pela historiografia oficial em países do Oriente e Ocidente. Ipso facto, as reivindicações nativistas, em favor da Independência brasileira, não foram sempre apenas políticas. O nacionalismo andou associado ao igualitarismo, em movimentos como a Conspiração dos Alfaiates, em 1798, também chamada Inconfidência baiana, já reivindicando a igualdade econômica, e não só a ideia em torno de liberdade. E na Inconfidência Insurrecional de Pernambuco, em 1817, havia igualitários rouseaunianos, Robespieres ou Marats nativos, como o Padre João Ribeiro, não só anglófilos como Domingos José Martins ou americanófilos como  Cabugá. O socialismo possui uma pré-história no Brasil das comunidades guaranis, organizadas pelos jesuítas, principalmente no Paraguai, porém se estendendo ao Rio Grande do Sul, em cidades como São Borja, de São Francisco de Borja e outros, e ruínas das antigas missões. Comunidades que chegaram a impressionar o genro anarquista de Marx, o bravo Paul Lafargue. Perdeu-se no tempo a lembrança desta experiência. Só alguns estudiosos pós-marxistas desde a década de 1960 hic et nunc no continente europeu se preocupam em ressuscitá-la. 

            Uma segunda observação metodológica, é que a classe operária, e não classes trabalhadoras, pois é um termo descritivo, tão esclarecedor quanto evasivo. Reúne vagamente um amontoado de fenômenos descontínuos. Ali estavam alfaiates e acolá tecelãos, e juntos as classes trabalhadoras. Por classe social, conceitua Edward Thompson (1987), entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalta que é um fenômeno histórico, distinto da ideia de “estrutura”, nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) através das relações humanas. Ademais, a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise da imobilidade da estrutura. Mas a classe não é uma coisaseja ela pré-capitalista ou caracterizada por um capitalismo desenvolvido, a desigualdade social através da classe social está relacionada ao poder aquisitivo, ao acesso à renda, à posição social, ao nível de escolaridade, ao padrão de vida, entre outros.

A relação precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais. Além disso, não podemos ter duas classes distintas, cada qual com um ser independente, colocando-as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses. A classe tem como resultado experiências comuns (herdadas ou partilhadas), quando alguns homens sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma de representação como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinadas, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. A consciência de classe surge da mesma forma gradativamente em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma.

Em terceiro lugar, como afirmou Eric Hobsbawm (1975) “a história sem solução  de continuidade  do comunismo”, enquanto movimento social moderno, tem início com a corrente de esquerda da Revolução Francesa. Uma direta linha descendente liga a “conspiração dos iguais” de Babeuf, através de Felipe Bounarotti, às associações revolucionárias de Blanqui dos anos 1830; e essas, por sua vez, se ligam – através da Liga dos Justos, formada pelos exilados alemães inspirados por eles, - e que depois se tornará Liga dos Comunistas, - a de Marx e Engels, que redigiram sob encomenda da Liga o Manifesto do Partido Comunista, em fevereiro de 1848 em Londres, o documento mais importante da era moderna. Escrito em alemão por dois jovens pensadores praticamente desconhecidos: Marx, com 30 anos de idade e Engels, com 28. Em junho de 1848 apareceu a primeira edição francesa; em 1850, as edições inglesa, polonesa e dinamarquesa; em 1860, a russa, traduzida por Bakunin; em 1872, a norte-americana.  É natural que a projetada “Biblioteca” de Marx e Engels, de 1845, devesse iniciar com dois ramos de literatura socialista: Babeuf e Buonarotti (seguidos por Morely e Mably), que representavam a ala abertamente comunista, seguidos pelos críticos de esquerda da igualdade formal da Revolução Francesa e pelos “raivosos” (o Cercle Social, Herbert, Jacques Roux, Leclerc). 

O interesse teórico do que Friedrich Engels definiria como “um comunismo ascético que se inspirava em Esparta” não era obviamente muito grande. O Manifesto foi publicado em todas as línguas, em edições sucessivas, tornando-se um dos textos mais lidos e mais influentes do mundo ocidental. E tampouco escritores comunistas dos anos 1830 e 1840, enquanto analistas teóricos, parecem ter impressionado favoravelmente Marx e Engels. Aliás, Marx afirmou que – precisamente por causa do primitivismo e da unilateralidade de seus primeiros escritores teóricos – “não foi por acaso que o comunismo viu surgir diante de si outras doutrinas socialistas, como as de Fourier, Proudhon, etc.; foi por necessidade”. Mesmo tendo lidos os seus escritos, inclusive os de figuras “menores”, como Auguste-Richard Lahautière (1813-1882) e Jean-Jacques Pillot (1808-1877), Marx devia bem pouco à análise social dos mesmos, que consistia sobretudo na formulação da luta de classe como luta entre os “proletários” e os seus exploradores. O primeiro comunismo que Marx e Engels conheceram tinham como palavra-de-ordem a igualdade; e Rousseau era, precisamente, o seu teórico mais influente. Na medida em que o socialismo e o comunismo dos primeiros anos da década de 1840 do século XIX foram franceses em ampla medida, uma de suas componentes originárias era precisamente um igualitarismo de marca rousseauniana. Nem se deve esquecer o influxo dele à filosofia clássica alemã.

Lembra o filósofo marxista Leandro Konder que a opção afetiva e política de Astrojildo Pereira pelo comunismo deixou mágoas profundas em alguns dos companheiros anarquistas que não o acompanharam. Em José Oiticica, por exemplo, tais mágoas ainda estavam vivas em 1956, quanto ele se referiu, num artigo, aos danos causados ao movimento anarquista pela “intromissão sorrateira, venenosa, nefasta, do bolchevismo, operada, sem nenhuma ciência minha nem dos militantes anarquistas mais conscientes, pela cavilação manhosa de Astrojildo Pereira”. Oiticica subestimava os diversos outros anarquistas que se tornaram comunistas, considerando-os demasiadamente influenciáveis, desprovidos de motivações próprias. Em certo sentido, porém, o combativo intelectual anarquista também estava prestando uma homenagem a Astrojildo, quando atribuía à sua influência pioneira o esvaziamento do anarquismo em 1921-1922. O próprio Astrojildo, com sua natural modéstia, jamais se atribuiria um papel político demasiado destacado, pois sempre primou pela discrição, pela modéstia. Quando o PCB foi fundado, a maioria dos comunistas já o reconheciam como líder. Mas ele preferiu ficar em segundo plano e apoiou Abílio de Nequete para o posto de secretário-geral e só assumiu o comando da agremiação quando Nequete renunciou, poucos meses depois.

Heitor Ferreira Lima, que o conheceu em 1923, descreveu-o mais tarde, com simpatia: “Calmo, sério, falando sem pressa, tinha prosa agradável e variada. Jovial e simples, apreciava anedotas, bebendo às vezes cerveja, nos encontros de cafés com os companheiros”. Polemizou com ex-companheiros de militância anarquista e se esforçou para levar a insígnia do Partido Comunista do Brasil a ser oficialmente reconhecido pela Internacional Comunista para lhe assegurar a sobrevivência. Ao longo dos anos vinte, foi gradualmente esboçando na orientação política do seu partido um movimento capaz de tirá-lo do isolamento, capaz de lhe permitir pôr em prática uma política de alianças um pouco menos estreita do que aquela que vinha sendo seguida. Fez um acordo com o professor positivista Leônidas de Rezende para que os comunistas utilizassem o jornal diário A Nação em seu trabalho de propaganda. Organizou o Bloco Operário e Camponês para participar das eleições. E procurou Luís Carlos Prestes na Bolívia, levando-lhe literatura comunista, para tentar atrair o comandante da Coluna InvictaA marcha da Coluna começou em 29 de abril de 1925. O objetivo era lutar contra o governo de Artur Bernardes e percorrer o país para mobilizar os setores estratégicos da população do interior nessa causa. Isidoro Dias Lopes, um dos participantes da Revolta Paulista de 1924, foi enviado à Argentina para organizar uma cooperação internacional para a Coluna. As tropas organizadas da Coluna percorreram, ao todo, 25 mil quilômetros no interior do Brasil.

Num dado momento, a vinculação com a Internacional Comunista, que na cabeça de Astrojildo garantia a sobrevivência ao PCB, começou a ser fonte de graves transtornos: um emissário da Internacional, o lituano August Guralski, veio para o Uruguai e de lá passou a “enquadrar” os comunistas brasileiros. Astrojildo foi chamado a Montevidéu para uma reunião, mas levou um “pito”, foi obrigado a dissolver o Bloco Operário e Camponês; em novembro de 1930, foi destituído de seu posto e mandado para São Paulo: deram-lhe uma chance de se “reabilitar”, atuando nas bases do partido. Por fim, em 1931, depois de muita humilhação, Astrojildo se retraiu, afastou-se do partido que tinha fundado. Não abandonou em nenhum momento seus princípios e suas convicções, porém deixou de ter militância. Foi um tempo triste e sombrio para ele. Lembra Leandro Konder que felizmente, a vida lhe proporcionou um consolo: casou-se com aquela que viria a ser a sua companheira até o final da sua vida, dona Inês, filha de Everardo Dias, autor do ensaio História das lutas sociais no Brasil.

Astrojildo se destacou em várias iniciativas políticas de grande importância na primeira década de vida do PCB: a publicação do jornal A Nação de janeiro a agosto de 1927, o prócer dispôs-se a preservar, dentro da unidade de ação, um espaço significativo para a diversidade ideológica que sabia existir ente Leônidas de Rezende e os comunistas, Leônidas que era o proprietário do jornal, cedia-o como simpatizante à orientação do PCB, mas reivindicava a publicação do periódico de artigos nos quais tentava realizar, ecleticamente, seu sonho: combinar Marx e Augusto Comte. Otávio Brandão e Paulo de Lacerda, ou seja, os dois outros membros da direção do PCB que integravam, pelo acordo, a direção do jornal, protestavam contra a publicação dos artigos; e era Astrojildo quem contornava com diplomacia os atritos e continha a irritação sectária de seus companheiros, poupando o aliado precioso; o empenho na formação do Bloco Operário e logo em seguida na formação do Bloco Operário e Camponês; a publicação da revista intitulada: Autocrítica, no 2° semestre de 1928, para promover ampla discussão preparatória do 3° Congresso do PCB; o primeiro encontro e as primeiras conversas de um dirigente do PCB com Luiz Carlos Prestes, exilado na Bolívia, em dezembro de 1927. Astrojildo como secretário-geral do PCB, teve uma acentuada preocupação com a democracia interna no partido, apesar da clandestinidade ligadas aos aparelhos repressivos de Estado e à extrema dificuldade de atrair recursos financeiros pela agremiação. 

Entre fevereiro de 1929 e janeiro de 1930 Astrojildo Pereira viveu em Moscou, de onde voltou com  a orientação de proletarizar o Partido Comunista Brasileiro, ou seja, de promover a substituição dos intelectuais na direção do partido por membros operários engajados. Em novembro de 1930, acabou sendo atingido, ele próprio, pelo processo de proletarização e foi afastado da Secretaria-Geral do partido. No ano seguinte, após breve período de atuação junto ao Comitê Regional de São Paulo, desligou-se do PCB. A partir de então, dedicou-se durante muitos anos aos negócios particulares herdados do pai e, já como crítico literário reconhecido, colaborou no jornal carioca Diário de Notícias e na revista Diretrizes. Em 1942, por iniciativa de escritores contrários à falta de liberdade de expressão imposta pelo regime autoritário do Estado Novo, foi fundada no Rio de Janeiro a Associação Brasileira de Escritores. Entre seus fundadores incluíam-se Otávio Tarquínio de Sousa (presidente), Sérgio Buarque de Holanda, Astrojildo Pereira, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Sérgio Milliet, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Érico Veríssimo. Em 1944, incentivada por Jorge Amado, Aníbal Machado, Oswald de Andrade e outros, a associação resolveu realizar um congresso. No dia 22 de janeiro de 1945, reuniu-se assim no Teatro Municipal de São Paulo o importantíssimo I Congresso Nacional de Escritores.

A reunião representou uma manifestação de oposição ao governo de Getúlio Vargas, contribuindo para aprofundar a crise do regime. Participaram do I Congresso Brasileiro de Escritores nomes expressivos da intelectualidade do país, além de convidados estrangeiros. A Mesa Diretora era composta, entre outros, por Aníbal Machado (presidente), Sérgio Milliet, Dionélio Machado, Murilo Rubião e Jorge Amado. Durante o encontro foi redigido pelo coletivo manifesto exigindo a legalidade democrática como garantia da completa liberdade de pensamento, e a instalação de um governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal direto e secreto. Contudo, a história política revela-nos que, no Brasil elitista, nem tudo que é legal é legítimo. Em 1944, publicou Interpretações, obra que reune estudos sobre literatura, com destaque ao artigo Machado de Assis, romancista do Segundo Reinado. Em 1945, foi delegado do Estado do Rio no I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, e um dos redatores da Declaração de Princípios do encontro, marcada por críticas à ditadura golpista de Getúlio Vargas. Neste ano retornou ao PCB e passou a colaborar intensamente da imprensa partidária. Dirigiu as revistas Literatura, Problemas da Paz e do Socialismo e Estudos Sociais, colaborando na Imprensa Popular e na revista Novos Rumos. Em outubro de 1964, foi preso em decorrência do golpe civil-militar de 1° de abril que duraria 21 anos. Permaneceu na prisão carioca por meses, infelizmente em estado de saúde precário. Morreu no Rio de Janeiro, em 1965.

Bibliografia geral consultada.

THOMPSON, Edward Palmer, Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase: Estudios sobre la Crisis de la Sociedad Preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, 1979; Idem, A Formação da Classe Operária - I - A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1981;  LIMA, Heitor Ferreira, “Astrojildo Pereira e uma Mudança  na Orientação do PCB”. In: Memória & História, n° 1. Astrojildo Pereira. Documentos Inéditos. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981; RUBIM, Antonio Albino Canelas, Partido Comunista, Cultura e Política Cultural. Tese de Doutorado em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Depatamento de Ciências Sociais. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1986; CARONE, Edgard, O Marxismo no Brasil: Das origens a 1964. Rio de Janeiro: Editora Dois Pontos, 1986; RIBEIRO, Francisco Moreira, O PCB no Ceará: Ascensão e Declínio – 1922-1947. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; Editor Stylus, 1989;  LENA JÚNIOR, Hélio de, A Idade da Revolução: Astrojildo Pereira e José Carlos Mariátegui na Construção do Marxismo Latino-americano. Tese de Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Seropédica - RJ: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2007; KONDER, Leandro, “Astrojildo Pereira: o Homem, o Militante, o Crítico”. In: Memória & História, n° 1, Astrojildo Pereira. Documentos Inéditos. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981; Idem, Memórias de um Intelectual Comunista. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008; GOULART, Laryssa de Souza, Astrojildo Pereira e a Formação do Partido Comunista Brasileiro. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2013; LEPERA, Luciano Patrice Garcia, Espaço e Política: O PCB e suas Ações no Território Brasileiro (1922-1964). Dissertação de Mestrado em Ciências Humanas. Programa de Pós-graduação em Geografia. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2015; SILVA, Michel Goulart da, Entre a Foice e o Compasso: Imprensa, Socialismo e Maçonaria na Trajetória de Everardo Dias na Primeira República. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2016; ANDRETO, Lucas Alexandre, Polo Norte do Comunismo? Os Primeiros Anos do Partido Comunista do Brasil (PCB) na Cidade de São Paulo. In: Revista Hydra, volume 4, n° 8, setembro de 2020; FREITAS, Maria Cleidiane Cavalcante, Por uma Pedagogia da Práxis! A Pedagogia Soviética enquanto Alternativa Histórica. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Centro de Educação. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 2020; entre outros. 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Irmãs Magdalena - Escambo, Desejo & Trabalho em Lavanderias.

 

Ubiracy de Souza Braga

                                 Quanto maior o poder, mais perigoso é o abuso”. Edmundo Burke

      

           Edmund Burke (1729-1797) foi um filósofo, teórico político e orador irlandês, membro do parlamento londrino pelo Partido Whig. Sua principal expressão como teórico político foi a crítica que formulou à ideologia da Revolução Francesa, manifesta em Reflexões sobre a Revolução na França e sobre o comportamento de certas comunidades em Londres relativo a esse acontecimento, de 1790. Sendo advogado, dedicou-se primeiramente a escritos filosóficos, entre os quais destaca-se o tratado de estética A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful (Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo, 1757). O livro atraiu a atenção de proeminentes pensadores continentais, como Denis Diderot e Immanuel Kant. Sua participação na política interna inglesa foi igualmente relevante. Defendeu a restrição dos poderes monárquicos e introduziu novos conceitos constitucionais referentes aos partidos e seus respectivos membros. Burke é ainda lembrado por apoiar causas como a Revolução Americana, a Emancipação Católica e o impeachment do general Warren Hastings da Companhia Britânica das Índias Orientais. No século XIX Edmund Burke inspirou extraordinariamente tanto conservadores quanto liberais. Subsequentemente, no Século XX, Burke foi amplamente reconhecido como o fundador do conservadorismo moderno.

         Na vida existencial religiosa muitos termos são utilizados para qualificar as funções sociais da pessoa. Para a vida religiosa feminina, existem três termos que são mais reconhecidos em suas singularidades: freira, irmã e madre. Freira representa o feminino da palavra frei, que vem do latim frater, que significa irmão. Portanto, a palavra freira representa igualmente o mesmo significado que irmã. É o título dado à mulher que se consagra totalmente a Deus na vida religiosa. A irmã ou freira, pertence a uma congregação religiosa e professa os votos de castidade, pobreza e obediência. Vivendo uma vida religiosa fraterna em comunidade, dedica-se à oração e ao serviço aos irmãos, de acordo com o carisma, que segundo Max Weber, nos permite compreender fenômenos sociais, caraterizados geralmente - e de forma alguma restrita apenas à vida religiosa - em sua oposição ao cotidiano, ordenado e duradouro e a missão de sua congregação ou instituto religioso. Madre, do latim mater, em português significa Mãe. É o título concedido à irmã religiosa que exerce a função social de coordenadora da comunidade de irmãs ou da congregação religiosa. Cabe-lhe a responsabilidade do cuidado à fidelidade, ao carisma e missão de evangelização da congregação. As freiras, por normas institucionais, fazem parte das ordens ou congregações de mendicantes. 

Algumas freiras se destacaram além da dedicação religiosa, contribuindo para diversas áreas de conhecimento da sociedade através de realizações em especializações como a arte, medicina, ciência e tecnologia. Hildegarda de Bingen, por exemplo, foi uma freira beneditina, que se destacou em diversas áreas do conhecimento. Nas artes, contribuiu com a composição de diversos cantos gregorianos e poesias religiosas; na medicina, contribuiu com a publicação dos livros Physica e Causæ et Curæ; na teologia, escreveu as obras Scivias Domini, Vitae meritorum e Divinorum perum. Em 1150, fundou o Mosteiro de Rupertsberg, em Bingen am Rhein, na Alemanha. Hildegarda é santa e doutora da Igreja Católica. Pertencia à Ordem de São Bento. Teresa de Ávila foi mística que deixou legado de obras sobre literatura místico-cristã, sendo O Castelo Interior a obra literária mais importante, reconhecida, e atuante no movimento da Contrarreforma. Foi co-fundadora da Ordem dos Carmelitas Descalços. Teresa é santa e doutora da Igreja Católica. Clara de Assis é representante par excellence da personificação feminina de Francisco de Assis, “por sua obediência às regras franciscanas e devoção ao catolicismo”. Foi a primeira na história da Igreja a compor uma Regra escrita, sujeita à aprovação do Papa. Seu corpo está em cripta na Basílica de Santa Clara, na cidade de Assis, Itália. Fundou a Ordem das Clarissas.

Maria do Divino Coração Droste zu Vischering foi uma condessa alemã e religiosa das Irmãs do Bom Pastor que se mudou para Portugal e onde, após ter recebido várias revelações divinas, se tornou a responsável pelo pedido de consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus remetida ao Papa Leão XIII e realizada pelo mesmo Sumo Pontífice. Madre Teresa de Calcutá ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1979 em razão de sua absoluta entrega aos necessitados ao redor do mundo. Obteve doutoramento honoris causa em medicina e cirurgia na Faculdade de Medicina e Cirurgia da Università Cattolica del Sacro Cuore (UCSC), uma universidade privada italiana fundada em 1921, com sede central em Milão e campi em Brescia, Piacenza e Cremona, Roma e Campobasso. É a maior universidade não estatal da Europa e a maior universidade católica do mundo, relativamente em número de inscritos. Em 2006/2007, contava com 36.294 estudantes e 4.160 docentes. Foi concedido cinco estrelas pelo sistema de classificação internacional das universidades, QS World University Rankings, nas respectivas modalidades: empregabilidade, ensino, instalações e engajamento.

O termo convento origina-se do latim conventus, que significa assembleia, pois advém originalmente da assembleia romana, onde os cidadãos se reuniam para fins administrativos ou de justiça: convento jurídico; conventum juridicum. Posteriormente passou-se a utilizar o termo no sentido religioso do monasticismo, quando para melhor servir e amar a Deus, os homens se retiravam do mundo, primeiro sozinhos, depois em grupos de monges, para edifícios concebidos para este fim, chamados de conventos. Historicamente, São Bento, no Ocidente, foi a primeira instituição religiosa a criar a estrutura que levava este nome. Posteriormente ao trabalho da Igreja, juntou-se o das cruzadas, a partir do século XII, nas Ordens militares, e o dos apostolados nas Ordens mendicantes. Os conventos, fosse qual fosse o estilo arquitetônico da sua construção, mantinham um traçado fundamental igual, dada as exigências disciplinares da vida religiosa em comunidade: 1) a igreja conventual com o coro; 2) o claustro no rés-do-chão para onde abriam as salas em que se realizavam atos de vida em comum; 3) a sala relacional para exercer a função do capítulo nas reuniões de instrução e correção, donde normalmente também eram erguidos o refeitório e a biblioteca. 



Foi fundadora da ordem Missionárias da Caridade. Mary Ignatia Gavin foi co-fundadora do Alcoólicos Anônimos junto com Bill Wilson e Robert Holbrook Smith. Pertencia à Ordem de Santo Agostinho. Mary Kenneth Keller foi a primeira mulher a obter um PhD em Ciências da Computação. Obteve o doutorado com a tese intitulada: Inferência Indutiva dos Modelos Gerados pelo Computador, na Universidade de Wisconsin-Madison em 1965. Pertencia à ordem religiosa das Irmãs de Caridade da Abençoada Virgem Maria. Cristina Scuccia: consagrou-se vencedora da versão italiana do programa The Voice, (2014), e assinou contrato com a gravadora Universal. As Irmãs Ursulinas - em homenagem a Santa Úrsula - começaram seu trabalho pela cidade italiana de Bréscia, em 1535. As ursulinas originalmente compreendiam dois grupos: viúvas experientes e jovens solteiras. As experientes ensinavam as novas a dar aulas, administrar hospitais e orfanatos, e a cuidar dos pobres. Com reconhecimento de seu trabalho no norte da Itália, elas fundaram seu convento em Avignon na França.   

 

Sociologicamente em termos de relações humanas, o conceito de abuso aplica-se a qualquer ação humana onde exista uma precondição de desnível de poder. Seja ele em relação a objetos, seres, legislações, crenças ou valores. Entendendo-se poder como o uso de dispositivos como condição de possibilidade de ação, em função do desejo ou iniciativa consciente. A contrapartida da liberdade absoluta de ação são os delimitadores que ocorrem na realidade concreta. Estes delimitadores partem de diversas fontes técnicas e sociais, e a sua existência prescinde de uma consequência social após a ação, perturbadoramente  negativa. Abuso é um termo que existe correlacionado e intimamente subordinado a questões valorativas, de um ponto de vista ético e moral. Mas também científico quando de substâncias viciantes discretas. O abuso é semelhante à transgressão, onde há uma restrição reconhecida pelo atuante e determinada coletivamente. É também de ordem moral, científica, legislativa, cultural ou em qualquer nível público, que torna o ato da transgressão, uma infração a uma lei repressiva objetiva. O abuso, contudo, pode vir associado à ideia de poder do abusador sobre o objeto abusado, que não pode ou não quer por motivos intimidatórios reais, contratuais resistir e/ou se contrapor ao abuso.

Enviadas pelas famílias ou por orfanatos, as moças não tinham autorização para sair do convento, sendo obrigadas a trabalhar, sem qualquer tipo de remuneração, para expiar os pecados enquadrados institucionalmente pelo fato de ser “mãe solteira”, ser muito bonita, ser muito feia, ou ter sofrido violação. Algumas eram detidas e enviadas para as lavanderias pelos Tribunais de Pequenos Delitos, uma alternativa à pena de prisão, porém sem data de término da punição. Por vezes, passavam fome e eram vítimas de castigos físicos, humilhações e violência física e mental que revelaram em torno de 10 mil mulheres irlandesas, cujo comportamento era considerado imoral pelos padrões da sociedade. Neste período foram internadas à força e trabalharam gratuitamente nas Lavanderias de Maria Magdalena, controladas e exploradas comercialmente por conventos católicos. Através de maus-tratos passavam fome e eram vítimas de castigos físicos, humilhações e violência física e mental. Na história social foram longos e sombrios 74 anos, entre 1922 e 1996, em nome de um ideal típico católico-nacionalista de família apropriada.  Existem dados que revelam mais de 10 mil mulheres irlandesas, cujo comportamento era dito imoral pelos padrões da sociedade. 

Neste período por consentimento familiar foram internadas à força e trabalharam gratuitamente nas Lavanderias de Maria Magdalena (cf. Finnegan, 2001) controladas e exploradas comercialmente por conventos católicos. Ao desvelar o conceito de  mais-valia, no âmbito do processo e método cooperativo de trabalho, Marx demonstrou que a produção capitalista, enquanto processo disciplinar na fábrica, divide a jornada de trabalho simultaneamente em trabalho necessário e excedente. O trabalho gratuito apropriado pelo capitalista negou o princípio do valor entre equivalentes no âmbito do processo de trabalho. As  meninas selecionadas como as chamadas “grávidas solteiras”, ou “mães solteiras”, eram encaminhadas às Casas de Mãe e Bebê (cf. Oliveira, 2016) , sob a administração das ordens religiosas. Em Pelletstown, em Dublin, dirigida pelas Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, 119 das 240 crianças abrigadas morreram em 1925, oficialmente devido a uma epidemia de sarampo. No Brasil, por exemplo, na epidemia de 1924-1925, o coeficiente de incidência chegou aos 196 casos por 100.000 habitantes apesar da notificação de casos no período da Revolução de 1924 com o bombardeio da cidade. Todos os bairros periféricos apresentaram cifras acima da média da cidade e nos bairros.

Neste aspecto o grande livro do homem-máquina foi escrito em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por René Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois se tratava, segundo Michel Foucault (2014: 134 e ss.), ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação; corpo útil, corpo inteligível. E, entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamentos. “O homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção tipológica de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos autômatos, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos  políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios.

         Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, pergunta-se Foucault: o que há de tão novo? Não é a primeira vez que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer um, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõe limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas, entretanto, são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalha-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao mesmo nível da mecânica: movimentos, gestos, atitude, rapidez; poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade, enfim: implica uma coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as disciplinas.

            Muitos processos disciplinares ocorreram nos conventos, nos exércitos, nas oficinas das corporações também. Mas as disciplinas se tornaram de fato no decorrer dos séculos XVII e XVIII com fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar esta relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu “capricho”. Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais de obediência. Diferentes ainda do ascetismo analisado por Max Weber, e das “disciplinas” de tipo monástico, que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidade do ponto de vista do condicionamento e que, implicam obediência a outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre a utilidade de seu próprio corpo. O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma “arte do corpo humano”, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação social que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil e inversamente.

            Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma anatomia política, que é também igualmente uma “mecânica do poder” que está nascendo; ela define como se pode ter o domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia a qual se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A invenção dessa nova anatomia política, expressa na sociedade não deve ser entendida como descoberta súbita. Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente no corpo hospitalar; e em algumas  dezenas de anos reestruturam a organização militar. Dessa “arte de talhar pedra” haveria uma longa história política a ser escrita – história da racionalização utilitária do detalhe na contabilidade moral e no controle político.  

Na parte de cima, circundando toda a volta do edifício, corriam os dormitórios, separadamente com celas individuais; ao redor do edifício, o campo para recreio e trabalho de cultivo. Por vezes, o termo convento é confundido, com Mosteiro. Vale lembrar que convento é o termo usado para lugar onde o edifício é  construído na malha urbana, normalmente delimitada  por uma muralha. A designação de Mosteiro aplica-se ao oposto, ou seja, para edifício construído fora da Cidade. Sociologicamente em termos de relações humanas, o conceito de abuso aplica-se a qualquer ação humana onde exista uma precondição de desnível de poder, seja ele em relação a objetos, seres, legislações, crenças ou valores. Entendendo-se poder como o uso de dispositivos como condição de possibilidade de ação, em função prática do desejo ou iniciativa consciente. A contrapartida da liberdade absoluta de ação representam os delimitadores que ocorrem na realidade concreta. Estes delimitadores partem de diversas fontes e dados reais. Sua existência individual e coletiva prescinde da consequência após a ação perturbadoramente  negativa. Abuso é uma relação social que existe correlacionada e intimamente subordinado a questões individuais valorativas, de um ponto de vista ético e moral. Mas também científico quando de substâncias viciantes discretas.

O símbolo não sendo já de natureza linguística deixa de se desenvolver numa só dimensão. As motivações que ordenam os símbolos não apenas já não formam longas cadeias de razões, mas nem sequer cadeias. A explicação linear do tipo de dedução lógica ou narrativa introspectiva já não basta para o estudo das motivações simbólicas. A classificação dos grandes símbolos da imaginação em categorias motivacionais distintas apresenta, com efeito, pelo próprio fato da não linearidade e do semantismo das imagens, grandes dificuldades. Se se parte dos objetos bem definidos pelos quadros da lógica dos utensílios, como faziam as clássicas “chaves dos sonhos”, segundo as estruturas antropológicas do imaginário, cai-se rapidamente, pela massificação das motivações, numa inextricável confusão. Parecem-nos mais sérias as tentativas para repartir os símbolos segundo os grandes centros de interesse de um pensamento, certamente perceptivo, mas ainda completamente impregnado de atitudes assimiladoras nas quais os acontecimentos perceptivos não passam de pretextos para os devaneios imaginários. Tais são, de fato, as classificações mais profundas de analistas das motivações do simbolismo religioso ou da imaginação individual em geral literária.  

Tanto podem escolher como norma classificativa uma ordem de motivação cosmológica e astral, na qual são as grandes sequências das estações, dos meteoros e dos astros que servem de indutores à fabulação, tanto são os elementos de uma física primitiva e sumária que, pelas suas qualidades sensoriais, polarizam os campos de força no continuum homogêneo do imaginário; tanto, enfim, se suspeita que são os dados sociológicos do microgrupo ou de grupos que se estendem aos confins do grupo linguístico que fornecem quadros primordiais para os símbolos. Quer a imaginação estreitamente motivada seja pela língua, seja pelas funções sociais, se modele sobre essas matrizes sociológicas e antropológicas, quer pelos seus genes raciais intervenham bastante misteriosamente para estruturar os conjuntos simbólicos, distribuindo seja as mentalidades imaginárias, sejam os rituais religiosos, querem ainda, com uma matriz evolucionista, se tente estabelecer uma hierarquia das grandes formas simbólicas e restaurar a unidade no dualismo de Henri Bergson das deux sources, quer enfim que atravessando a técnica da psicanálise se tente encontrar uma síntese entre as pulsões de uma libido em evolução e as pressões recalcadoras do microgrupo familiar. São estas diferentes classificações das motivações simbólicas que precisamos criticar e estabelecer um método de análise pretensamente firme na ordem das motivações. Em 1801, os reinos da Irlanda e da Grã-Bretanha, anteriormente em uma união pessoal, foram unidos para formar o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda. 

Após uma  revolta fracassada ocorrida em 1916, em 1919 os parlamentares nacionalistas irlandeses apoiaram a criação da República Irlandesa e formaram um parlamento separatista, enquanto o Exército Republicano Irlandês (IRA) lançou uma guerra de guerrilha para realizar a Independência. O Tratado Anglo-Irlandês de 1922 concluiu essa guerra e estabeleceu o Estado Livre da Irlanda como um domínio autogovernado dentro da Commonwealth britânica. A Irlanda do Norte optou por permanecer como parte do Reino Unido. O estado independente aumentou a sua soberania através do Estatuto de Westminster, em 1931, e com a crise de abdicação de 1936. Uma nova constituição, em 1937, declarou um Estado soberano chamado Irlanda (Éire). O Ato da República da Irlanda proclamou a Irlanda como uma República em 1949, removendo os direitos remanescentes dos monarcas. O país, consequentemente, retirou-se da Commonwealth britânica. O Estado moderno foi fundado em 1922 tendo como representação política e social o Estado Livre Irlandês que pôs fim à Guerra de Independência da Irlanda, como forma de resposta à oposição irlandesa ao Home Rule britânico ou unionistas, que formaram uma maioria no nordeste do país. 

Seis dentre nove Condados da província nortista do Ulster foram estabelecidos como a Irlanda do Norte, uma parte do Reino Unido, com o qual o Estado irlandês divide a sua única fronteira terrestre. A Irlanda é cercada pelo Oceano Atlântico, com o mar Céltico ao sul, o Canal de São Jorge a sudeste e o Mar da Irlanda a leste. A suspensão dos atentados por ambos os lados em conflito bélico foi fundamental para que as negociações pudessem existir, criando condições concretas para a pacificação da região. Historicamente o lastro monetário simbolizava a integração do continente que, no século XX, enfrentou duas guerras mundiais e a divisão ideológica que quase provocou terceira guerra. No mundo europeu contemporâneo, porém, o euro é sinônimo de incertezas, numa crise que ameaça a futuro da segunda maior economia do planeta. A Eurozona é composta por 17 dos 27 Estados-membros da União Europeia: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Malta, Países Baixos e Portugal. Na ocasião em que o euro foi instituído, Dinamarca, Suécia e Reino Unido optaram por não aderir ao projeto político e mantiveram suas moedas locais. O euro é usado diariamente por aproximadamente 332 milhões de europeus. A moeda também é a 2ª maior reserva monetária internacional tanto quanto comercial, atrás do dólar norte-americano.

Em nível econômico ao desvelar o conceito de mais-valia, Marx demonstrou que a produção capitalista, divide a jornada de trabalho em trabalho necessário e excedente. O trabalho gratuito apropriado pelo capitalista negou o princípio da troca entre equivalentes no âmbito do processo de trabalho e comunicação. As  meninas selecionadas como “grávidas solteiras”, ou ditas “mães solteiras”, eram encaminhadas às Casas de Mãe e Bebê, sob a administração igualmente dura das ordens religiosas (cf. Sixsmith, 2014; Barbieri, 2014). Em Pelletstown, em Dublin, dirigida pelas Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, 119 das 240 crianças abrigadas morreram em 1925, oficialmente devido a uma epidemia de sarampo. Mari Steed nasceu na Casa de Mãe e Bebê em Bessborough, Cork, regida pelas irmãs do Sagrado Coração de Jesus e Maria. Ela conta a história de sua mãe, Josephine, que nascida “fora do casamento”, foi enviada a uma Escola Industrial. Aos 14 anos, assim como outras meninas de mesma idade e situação, foi transferida para a Lavanderia em Bessborough permanecendo por 10 anos. Então obteve a permissão das freiras para trabalhar num hospital em Dublin, administrado pela congregação, Irmãs Bon Secours. No hospital, Josephine conheceu o pai de Mari, se apaixonou, ficou grávida e foi devolvida a Cork, onde concebeu Mari, em 1960. Dois anos depois quando Mari era adotada por casal de norte-americanos, sua mãe se viu obrigada a voltar à Lavanderia. Elas se reencontraram quase 40 anos depois.

Dois anos depois, das 263 crianças na instituição, 111 morreram. Nenhuma justificativa clínica foi dada para essas mortes. Em dados gerais, entre 1924 e 1930, 662 crianças morreram no abrigo de Pelletstown, uma média de 94 mortes por ano. Esse é comparativamente um dado mais grave do que o das mortes acontecidas em Tuam registradas no extenso período de 1925 e 1960. Diferentemente das lavanderias, que eram um negócio lucrativo para os conventos, essas instituições eram reguladas e financiadas pelo Estado irlandês. Na instituição, pelas mãos moralistas das freiras, as jovens moças davam à luz aos filhos de parto natural, sem alternativas em caso de complicações. Com isso muitas morriam no parto com os seus bebês. As sobreviventes eram obrigadas a assinar um termo jurídico no qual “concordavam em colocar os filhos para adoção quando completassem 2 anos de idade”. Muitas mulheres que perderam os filhos nas Casas de Mãe e Bebê foram posteriormente enviadas às lavanderias para prosseguir em penitência, especialmente se as suas famílias, motivadas moralmente pela vergonha, não as quisessem de volta para casa, ou se fossem consideradas reincidentes.

A morte porém não se nomeia. Lembra Michel de Certeau (2014: 264 e ss.) que escreve-se no discurso da vida sem que lhe seja possível atribuir-lhe um lugar particular. A biologia vai encontrar “a morte imposta a partir de dentro”. François Jacob: “com a reprodução da sexualidade, é necessário que desapareçam os indivíduos”. A morte é condição de possibilidade da evolução. Que os indivíduos percam o seu lugar, eis a lei da espécie. A transmissão do capital e seu progresso são garantidos por um tratamento, sempre assinado por um morto. Além dos sinais que, de todos os lados, trazem de volta à escritura a sua relação com a sexualidade e a morte, pode-se perguntar se o movimento histórico que desloca as figuras recalcadas – “No tempo de Freud, a sexualidade e o moralismo; hoje, uma violência tecnológica ilimitada e uma morte absurda” – não é sobretudo a revelação progressiva do modelo que articulava as práticas sociais e que passa para a representação à medida que vai diminuindo a sua eficácia. A decadência da civilização sobre o alicerce do poder da escritura contra a morte se traduz pela possibilidade de escrever o que ela propriamente dita organizava socialmente. 

Somente o fim de uma época determinada permite enunciar o que a fez viver, como se lhe fosse preciso morrer para tornar-se um livro. Então, escrever (este livro) é ter que caminhar através do terreno inimigo, na própria região da perda, fora do domínio protegido delimitado pela localização da morte noutro lugar. É produzir frases com o léxico do perecível, na proximidade e até mesmo no espaço da morte. É praticar a relação entre gozar e manipular, nesse interregno onde uma perda representada em um lapso, da produção de bens cria a possibilidade de uma expectativa, representando uma  crença, sem a referência de uma apropriação, mas já agradecida. Desde Stéphane Mallarmé, cujo verdadeiro nome era Étienne Mallarmé, a experiência escriturística se desdobra segundo o modo de relação entre o ato de avançar e o solo mortífero onde se traça a sua itinerância. Desse ponto de vista, o escritor, poeta, pensador, professor é também o moribundo que tenta falar. Mas, na morte que seus passos inscrevem em uma página negra (e não apenas em branco), ele sabe que pode dizer o desejo que espera do outro: o excesso maravilhoso efêmero de sobreviver numa atenção que ele altera.     

Os asilos de Madalena eram instituições que existiram entre o século XVIII e o final do século XX e foram ostensivamente chamadas de casas de “mulheres perdidas”. Estes locais operaram por quase toda a Europa e América do Norte durante grande parte do século XIX e até o final do século XX. Abrigavam mulheres com deficiência física e mental, algumas rebeldes, outras mães solteiras e suas filhas, vítimas de estupro e aquelas que se acreditava possuir caráter duvidoso como as prostitutas. O primeiro asilo foi fundado em 1765 por Arabella Denny na capital da Irlanda, Dublin, na Leeson Street. A instituição recebeu o nome inspirado em Santa Maria Madalena, que segundo a compreensão católica, “se arrependeu de seus pecados e se tornou uma das mais fiéis seguidoras de Jesus Cristo”. Inicialmente, a missão dos asilos era reabilitar as mulheres de volta à sociedade, mas no início do século XX, as casas se tornaram punitivas e parecidas com uma prisão. Na maioria dos asilos, as internas eram obrigadas a realizar intensos trabalhos físicos (forçados), incluindo parte na lavanderia e de costura. Elas suportaram um regime diário que incluía longos períodos de oração e silêncio absoluto.

Na Irlanda, tais asilos eram conhecidos como lavanderias de Madalena. Estima-se que 30 mil mulheres passaram por essas instituições apenas naquele país. O último Asilo de Madalena, em Waterford, encerrou suas atividades em 25 de setembro de 1996. Em 2011, a comissão da Organização das Nações Unidas contra tortura solicitou ao governo irlandês que instaurasse inquérito para investigar as denuncias de maus-tratos. Em fevereiro de 2013, o primeiro-ministro Enda Kenny apresentou desculpas, em nome do governo irlandês, às milhares de mulheres que foram internadas e forçadas a trabalhar nestas instituições. O Relatório confirma que o governo irlandês foi conivente com o trabalho escravo e foi responsável pelo envio de ao menos 1/4 das mulheres às lavanderias (cf. O Globo, 05/02/2013). O filme The Magdalene Sisters, de 2002 é inspirado na rotinização de trabalho das mulheres que viviam nestas instituições. O livro The Lost Child of Philomena Lee, de Martin Sixsmith (2009), relata o drama real vivido pelas chamadas “mães solteiras” quando uma delas perdeu o filho para adoção para um casal norte-americano e sua busca ocorrida anos depois. O livro foi posteriormente transformado no filme Philomena (2013), com a atriz Judi Dench no papel principal.

Assim como ocorre com o filho de Philomena, muitas crianças foram enviadas para os Estados Unidos da América, segundo dados estatísticos que giram em torno de 2 mil, entre as décadas de 1940 e 1970. Esse “êxodo infantil” foi sancionado pelo Estado, mas as adoções foram deliberadamente omitidas do Registro das Crianças Adotadas e isentas de supervisão. - “O Estado usou a Igreja para prestar um serviço social em seu nome”, resume o jornalista Conall Ó Fátharta, do jornal Irish Examiner, anteriormente The Cork Examiner e depois The Examiner, é um jornal diário nacional irlandês que circula principalmente na região de Munster em torno de sua base em Cork, embora esteja disponível em todo o país, o qual investigou o drama social. Em junho de 2014, após uma longa pesquisa etnográfica nos arquivos da instituição, a historiadora Catherine Corless descobriu 796 bebês mortos no convento em Tuam, das irmãs Bon Secours. As certidões de óbito indicam que centenas de crianças jazem no espaço de tanque séptico do edifício reconhecido como “O Lar”, que acolhia “mães solteiras” administrado, de 1926 a 1961, pela irmandade de freiras do Bon Secours.

Em 1952, ainda adolescente, Philomena Lee engravidou como é factível na vida cotidiana após “aventura amorosa”. A irlandesa de 80 anos se encontrou  com o Papa Francisco, no Vaticano. Participou da audiência de Francisco na praça de São Pedro e, ao final, foi apresentada ao Papa. Ela estava acompanhada de Steve Coogan, o ator britânico e coprodutor do filme – que obteve grande sucesso de crítica e bilheteria – em que Philomena é vivida pela atriz Judi Dench. Dirigido por Stephen Frears, Philomena concorreu a quatro categorias do Oscar, inclusive melhor atriz e melhor filme. – “É uma honra ter encontrado o papa Francisco”, afirmou a mulher, que foi acompanhada também por sua filha. – “Como se vê claramente no filme, sempre tive uma profunda fé na igreja e em sua vontade de reparar os erros cometidos no passado”, disse Philomena. Na Casa de Mãe e Bebê em Pelletstown, Dublin, dirigida pelas Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, 119 das 240 crianças abrigadas morreram no ano de 1925. As mortes foram atribuídas a uma epidemia de sarampo. Dois anos depois, das 263 crianças na instituição, 111 morreram. Nenhuma justificativa foi dada às mortes.

Em dados estatísticos gerais, ocorridos no período entre 1924 e 1930, 662 crianças morreram na instituição, uma média de 94 mortes por ano. Este é, de longe, um dado mais grave que o das mortes acontecidas em Tuam entre 1925 e 1960, uma média anual de 22. Durante os nove anos, entre 1932 e 1941, também foi registrado um considerável número de mortes de bebês e crianças nas três casas regidas pelas Irmãs do Sagrado Coração de Jesus e Maria. Em Sean Ross Abbey, em Roscrea,  uma das mais antigas da Irlanda, tendo se desenvolvido em torno do antigo mosteiro de São Crónán de Roscrea. É designada como Patrimônio Histórico da Irlanda devido à extensão de importantes edifícios que são preservados na cidade. Lá ocorreram 419 mortes, na Sacred Heart, em Bessborough, foram 238 e na Manor House, em Castlepollard, 69 mortes. Conforme investigação técnico-científica da Comissão de Inquérito sobre Abuso de Criança (CICA), testes de vacinas ainda experimentais podem ter sido a causa de tão alta mortalidade entre as crianças.

Considerada uma “mulher indigna” por sua família na conservadora e católica Irlanda, Philomena foi mandada para o convento de Roscrea, onde deu à luz um menino a quem deu o nome de Anthony. Aos quatro anos, Anthony foi separado de Philomena e entregue a um casal norte-americano. Philomena permaneceu calada durante 50 anos, até que um determinado dia decidiu procurar o filho com a ajuda de Martin Sixsmith (2014) – extraordinariamente interpretado por Steve Coogan, jornalista da BBC que a acompanhou aos Estados Unidos da América. Atualmente Philomena Lee está à frente do Philomena Project, que consiste em ajudar outras mães a encontrar seus filhos e luta para que o governo irlandês promulgue uma lei que permita a consulta aos registros burocráticos de crianças adotadas. – “Espero e acredito que o papa Francisco se unirá a minha luta para ajudar as milhares de mães e de filhos a colocar um fim em sua dolorosa história”. - Espero que o Papa veja o filme. Ele é um cara legal, isso fará bem pra ele, não?”, afirmou Stephen Frears no Festival de Veneza, onde o filme foi muito bem recebido. Mas o porta-voz do Vaticano, contrariando as expectativas em torno do nome da igreja católica e do Vaticano,  reiterou que “o papa não assiste filmes”.

As Irmãs do Sagrado Coração de Jesus também administraram, durante anos, outras três casas de acolhida para “mães solteiras” nas congregações de Bessborough (sul), Castlepollard (ao oeste de Dublin) e Sean Ross Abbey (centro). Em torno dessa última, está o tema do filme Philomena, que recebeu quatro indicações ao Oscar e que relata os esforços de Philomena Lee para encontrar seu filho, entregue em adoção a uma família norte-americana, após nascer em Sean Ross Abbey. Segundo o filme e o livro em que está baseado, Lee se deparou com “as tentativas das freiras em dificultar sua busca, deixando entrever que queimaram todos os registros e que obtiveram benefícios econômicos pelas adoções”. A polêmica gerada está aumentando a pressão sobre o governo de Dublin, de coalisão entre conservadores e trabalhistas, para que inicie uma investigação criminal disciplinar sobre o assunto. Os ministros da Justiça e da Infância, Frances Fitzgerald e Charlie Flanagan, político irlandês do Fine Gael que foi Teachta Dála (TD) para o círculo eleitoral de Laois – Offaly desde 2020, e anteriormente de 1987 a 2002, 2007 a 2016 e de 2016 a 2020 para o Laois eleitorado. Foi nomeado Presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros e da Defesa em setembro de 2020.     

Foi também Ministro da Justiça e da Igualdade de 2017-2020, Ministro dos Negócios Estrangeiros e Comércio de 2014-2017, Ministro da Criança e da Juventude de maio a julho de 2014 e Presidente do Fine Gael Parliamentary Party 2011-2014, comprometeram-se em estudar a questão para determinar qual é a melhor via de atuação diplomática para contornar a solução. Em outro comunicado oficial, o arcebispo de Tuam, Michael Neary, destacou que cooperará com qualquer pesquisa, mas reiterou que sua diocese nunca esteve envolvida na gestão das casas de acolhida das freiras do Bon Secours. - “Neste caso, existe um claro imperativo moral que obriga as irmãs do Bon Secours a enfrentar suas responsabilidades pelo bem comum”, declarou o prelado. De outra parte, Catherine Corless garantiu que a recente descoberta dos 800 esqueletos é apenas a aparência que revela a ponta do iceberg, e sustenta que o governo guarda em segredo de justiça os certificados quantitativos de até 4.000 bebês que foram enterrados em noutras fossas, ainda que também sem identificação, durante estas décadas passadas. É revelador que a alta taxa de mortalidade era constante nas Casas de Mãe e Bebê e também na Irlanda. Relatórios do governo demonstram o preconceito social entre católicos revelando a estatística entre as crianças ilegítimas chegou a ser cinco vezes maior do que a taxa comparativa de mortalidade de recém-nascidos por casamento.

Após o escândalo de Tuam, o arcebispo da cidade, Michael Neary, deu a seguinte declaração: - “Fiquei muito chocado, assim como todos nós, ao saber da magnitude do número de crianças enterradas no cemitério em Tuam. Eu só posso imaginar o enorme sofrimento das mães em desistir de seus bebês para adoção ou testemunhar a sua morte”, continuou o arcebispo. No entanto, afirma que as Irmãs Bon Secours, que dirigiam a casa, seguiram uma “moral clara e imperativa” no intuito de “agir de acordo com as suas responsabilidades no interesse do bem comum”. As sobreviventes das Lavanderias de Maria Madalena e seus descendentes lutam por retratação e algum tipo de compensação dos principais responsáveis, o Estado e a Igreja Católica. Um regime de compensação está em implementação e, apesar de três pedidos formais por parte do governo irlandês, as quatro ordens religiosas envolvidas até agora se recusam tanto a retratar-se como a participar da compensação proposta pelo governo.

As mães procedentes das Casas de Mãe e Bebê, por sua vez, buscam trazer à luz o que se passava nestes abrigos. Em jogo, estão as mortes de recém-nascidos, testes médicos com vacinas em crianças, adoções forçadas e ilegais. Em julho deste ano, após o escândalo de Tuam, Charlie Flanagan, recentemente nomeado Ministro da Infância, falou com entusiasmo sobre a necessidade de um inquérito de grande alcance, com um plano de ação a ser anunciado imediatamente. Desde então, Flanagan foi transferido para os Negócios Estrangeiros e houve um atraso para seu anúncio do plano de ação, coincidindo com o Relatório interdepartamental das Casas de Mãe e Bebê. Ativistas apontam para a fraqueza do relatório, como o atraso no plano de ação, sinal de que o governo pretende limitar o inquérito. Essa é história que está só começando a vir à tona. O título do filme: The Magdalene Sisters (2002) assim como o nome dos conventos, são uma referência à Maria Madalena, que segundo o cristianismo teria sido uma prostituta, e enquanto tal eram vistas essas mulheres por uma parte da sociedade irlandesa.                      

Não queremos perder de vista que a hermenêutica de Martin Heidegger lembra que todo questionamento é  uma procura. Embora toda procura retire do procurado sua direção prévia. Questionar é procurar cientemente o ente naquilo que ele é, e portanto, como ele é. A procura ciente pode transformar-se em uma investigação se o que se questiona foi determinado de maneira libertadora. O questionamento enquanto “questionamento de alguma coisa” possui um questionado. Todo questionamento de... é, de algum modo, um interrogatório acerca de. Além do questionado, pertence ao questionamento um interrogado. Na investigação, isto é, na questão especificamente teórica, deve-se determinar e chegar a conceber o questionado. No questionado reside, pois, o perguntado, enquanto o que previamente se intenciona, aquilo em que o questionamento alcança a meta. Enquanto procura, o questionamento necessita da orientação prévia do procurado. O sentido do ser já nos deve estar sendo de maneira disponível. Este estado indeterminado de uma compreensão do ser disponível no limiar de um mero conhecimento verbal – esse estado indeterminado de uma compreensão do ser já sempre disponível é, em si mesmo, um fenômeno positivo que necessita de esclarecimento. Mas, uma investigação científica sobre o sentido do ser não pode pretender dar em seu início este esclarecimento.

A interpretação dessa compreensão mediana do ser só pode conquistar um fio condutor com a elaboração do conceito do ser. É a partir da claridade do conceito e dos modos de compreensão explícita nela inerentes que se deverá decidir o que significa essa compreensão.  Quer do ser obscura e ainda não sendo esclarecida. E quais espécies de obscurecimento ou impedimento, são possíveis e necessários para um esclarecimento explícito do sentido do ser. A imediata compreensão do ser vaga e mediana pode também estar impregnada de teorias tradicionais e opiniões sobre o ser, de modo que tais teorias constituam, secretamente, fontes primárias de compreensão dominante. O procurado no questionamento do ser, em sua essência, não pode ser  algo inteiramente desconhecido, embora seja, de início, algo completamente inapreensível. O questionado da questão a ser elaborada é o ser, o que determina o ente como ente, como o ente já é sempre compreendido, em qualquer discussão que se pretenda. O ser dos entes não é em si apenas um outro. Se questionado, o ser exige um modo próprio de demonstração que se distingue essencialmente da descoberta do ente. Em consonância, o perguntado, o sentido do ser, requer também uma conceituação própria que, por sua vez, também se diferencia dos conceitos em que o ente alcança a determinação de seu significado.

Comparativamente lembramos que o sociólogo Erving Goffman fez avanços substanciais no estudo da interação social face-a-face, com a elaboração da abordagem dramatúrgica, a interação humana, desenvolvendo inúmeros conceitos que tiveram uma grande influência, particularmente no campo da microssociologia da vida cotidiana, representado pelo estigma. Goffman foi o pioneiro em pensar o conceito de estigma numa perspectiva social. Estigma é uma relação entre atributo e estereótipo, e tem sua origem ligada à construção social dos significados através da interação. Muitas de suas obras tratam da organização do comportamento cotidiano, um conceito que ele chamou de ordem de interação. Na vida existencial religiosa muitos termos são utilizados para qualificar as funções sociais da pessoa. Para a vida religiosa feminina, existem três termos que são mais reconhecidos em suas singularidades: freira, irmã e madre.

Freira representa o feminino da palavra frei, que vem do latim frater, que significa irmão. Portanto, a palavra freira representa igualmente o mesmo significado que irmã. É o título dado à mulher que se consagra totalmente a Deus na vida religiosa. A irmã ou freira, pertence a uma congregação religiosa e professa os votos de castidade, pobreza e obediência. Vivendo uma vida religiosa fraterna em comunidade, dedica-se à oração e ao serviço aos irmãos, de acordo com o conceito de carisma, que segundo Max Weber, nos permite compreender fenômenos sociais, caraterizados geralmente - e de forma alguma restrita apenas à vida religiosa - em sua oposição ao cotidiano, ordenado e duradouro e a missão de sua congregação ou instituto religioso. Madre, do latim mater, que em português significa Mãe. É o título concedido à irmã religiosa que exerce a função social de coordenadora da comunidade de irmãs ou da congregação religiosa. Cabe-lhe a responsabilidade do cuidado de si das irmãs no que se refere à fidelidade, ao carisma e missão de evangelização da congregação.

As freiras, por normas institucionais, fazem parte das ordens ou congregações de mendicantes. Para a vida religiosa feminina, existem três termos que são mais reconhecidos em suas singularidades: freira, irmã e madre.  Freira representa o feminino da palavra frei, que vem do latim frater, que significa irmão. Portanto, a palavra freira representa igualmente o mesmo significado que irmã. É o título dado à mulher que se consagra totalmente a Deus na vida religiosa. A irmã ou freira, pertence a uma congregação religiosa e professa os votos de castidade, pobreza e obediência. Madre, do latim mater, em português significa Mãe. É o título concedido à irmã religiosa que exerce a função social de coordenadora da comunidade de irmãs ou da congregação religiosa. Cabe-lhe a responsabilidade do cuidado das irmãs no que se refere à fidelidade, ao carisma e missão de evangelização da congregação. As freiras, por normas institucionais, fazem parte das ordens ou congregações de mendicantes. 

Elas carregavam um estigma, e naquele ambiente opressivo em que algumas cenas são capazes de embrulhar nosso estômago, quando uma delas registra o discurso autoritário/paternalista quando os pais obrigam a filha a doar seu próprio filho para adoção assim que ele nasce; a outra em que uma das internas ao fugir e voltar para casa, é arrastada de volta ao convento pelo seu próprio pai que a agride e não a quer mais. O cenário é a Irlanda, na década de 1960. Margaret foi estuprada num casamento por seu primo; Bernardette é bonita e por isso representa um perigo para os homens da vizinhança; Rose e Crispina são involuntariamente “mães solteiras”. Por causa desse motivo  essas quatro mulheres são mandadas para um convento por seus familiares, com o intento de vigilância e normalização para que possam “pagar por seus pecados”. Essa punição é por tempo indeterminado, o que significa uma vida de trabalhos forçados no espaço da lavanderia do asilo católico, onde as internas são reconhecidas como Irmãs Magdalena. Humilhadas regularmente pelas madres, que não toleram desobediência, muitas vezes usando castigos físicos, as quatro precisam desafiar a violência à qual são submetidas. O filme é inspirado nas instituições totais chamadas de Asilos de Madalena.

Enfim, no artigo de autoria de Barbara Wesel para o Deutsche Welle, uma empresa pública de radiodifusão da Alemanha, com sedes nas cidades de Bonn e Berlim, que transmite para o mercado exterior programas de rádio, além de oferecer uma programação televisiva e um amplo portal de conteúdo online em 30 línguas, neste caso intitulado: “Igreja Católica da Irlanda perdeu o Poder sobre a Moralidade e a Lei” (2018), o que claramente põe uma “pedra de cal” sobre a questão nevrálgica relativa ao abuso católico-nacionalista, tendo em vista que representou  “uma vitória tão convincente que lágrimas de alegria escorreram pelos rostos de ativistas na Irlanda”. Depois de alguns dias tensos, em que o resultado do referendo parecia estar na corda bamba, veio um desfecho devastador. A maioria esmagadora dos irlandeses votou por remover da Constituição a proibição quase total do aborto. E assim caiu um dos últimos tabus do sistema de opressão que subjugou mulheres na Irlanda durante séculos. Elas alcançaram o que há muito já é normalização no restante da Europa: o direito das mulheres decidirem se se sentem aptas a ter um filho. E o direito à assistência médica no próprio país em caso de problemas na gravidez, sem ter que viajar para o Reino Unido, como fizeram em torno de mais de cem mil irlandesas nos últimos anos. Com esse Referendo, a Igreja Católica na Irlanda perdeu sua última batalha de moralidade.

       Nas últimas duas décadas, à medida que mais e mais casos de abuso por parte de padres e religiosos vieram à tona, cada vez mais irlandeses se afastaram da Igreja e de seus ensinamentos. Tornaram-se reconhecidos horrores em abrigos católicos para crianças, onde meninos e meninas foram maltratados e abusados. Uma Comissão de Inquérito revelou o que ocorria nas indescritíveis Lavanderias de Madalena, lares em que jovens grávidas solteiras eram mantidas e exploradas através do trabalho forçado e onde seus recém-nascidos eram tirados delas. Todo esse sistema de opressão e abuso vinha sendo operado pela Igreja Católica. Ele era direcionado principalmente, mas não apenas, contra as mulheres. Mas, pouco a pouco, a Igreja foi perdendo seu status no Estado irlandês e na sociedade civil. A luta por uma proibição do aborto foi sua última batalha e ela mal ousou se engajar. O clero já sabe alhures que perdeu o poder sobre a moralidade e a lei. O primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, classificou o resultado desse referendo de uma revolução silenciosa. Mas ela já está há muito tempo em curso nesta Irlanda que nos últimos anos superou muitas restrições e conceitos morais. 

A Igreja Católica da Irlanda fez de quase  tudo para impedir a divulgação de Relatório de uma comissão independente sobre os abusos sexuais de sacerdotes no país no longo período entre 1930 e 1990. A estimativa é de que naquele período 12 mil meninos e meninas foram violentados sexualmente por padres e freiras. O Relatório, que tem 2.600 páginas, foi elaborado a partir de informações pontuais de vítimas. Na Irlanda, os católicos mantinham uma rede integrada de escolas e reformatórios para dar assistências às  crianças delinquentes ou abandonadas pela família, ou ainda de “mães solteiras”. Eram dentre essas crianças que os sacerdotes se aproveitavam, com a conivência da hierarquia da igreja. A Igreja Católica de forma especulativa afirma que há exagero no Relatório, mas ela nunca elaborou um documento que tivesse como objetivo quantificar as vítimas, embora, em tese, tenha informações para fazê-lo. O governo da Irlanda trouxe à tona  na esfera política o que os jornais chamam de “vergonha nacional”: as lavandeiras administradas por ordens de freiras católicas que exploravam o trabalho das “caídas”: mães solteiras e suas filhas, vítimas de abuso sexual, prostitutas e portadoras de deficiência física ou mental.  As mulheres trabalhavam nas lavanderias duro sem receber. Algumas sofriam abuso sexual de padres, enquanto outras  morreram em circunstâncias aparentemente desconhecidas.

As roupas administradas pela lavanderia Irmãs Magdalena provinham de consórcio de empresas, órgãos públicos e Forças Armadas, constituindo  “um negócio altamente lucrativos para as freiras”. O governo divulgou um Relatório com a informação de 1922 a 1996 com mais de 10.000 jovens tidas como fardo pela família, escola ou Estado trabalhavam nas Lavandeiras Madalena. Para serem “purificadas”, elas ficavam trancadas de 6 meses a 1 ano nesses locais lavando e passando roupas, além de trabalho de costura. No Relatório, o governo reconheceu que o Estado irlandês encaminhou para as lavandeiras 2.124 mulheres, 26,5% do total. Também informou ter descoberto que cerca de 900 mulheres morreram nesses locais de trabalho forçado: a mais nova delas tinha 15 anos. O filme citado demonstra discretamente tortura, sexo oral e local de confinamento após aplicação de diuturna de castigo.  O cineasta Peter Mullan dirigindo The Magdalene Sisters, se baseou em histórias concretas, reais para demonstrar a rotina disciplinar sobre as formas de castigos, sendo alguns físicos, e de humilhações que as freiras imponham aquelas jovens desafortunadas. O historiador Diarmaid Ferriter afirmou que as lavanderias faziam parte dos mecanismos que a sociedade, Estado e ordens religiosas usavam para tentar enquadrar “as pessoas tidas como párias no modelo de pureza mítica cultural da identidade irlandesa”.

A imprensa irlandesa vem publicando o testemunho das sobreviventes das lavanderias. Uma delas, por exemplo, narrou que sofre até hoje de depressão por causa dos maus-tratos. - “Eu me sinto em pedaços. Já tentei o suicídio várias vezes”. Como representante do Estado irlandês, o primeiro ministro Enda Kenny pediu desculpas pelo sofrimento das mulheres internadas nas lavanderias Madalena, por endossar o estigma de “caídas” e, além disso, por ter demorado para assumir parte da  responsabilidade pelas mazelas. Para mulheres sobreviventes das lavanderias, só o pedido de desculpas não basta. Elas querem ser indenizadas. O filme The Magdalene Sisters (2001) narra a história social de quatro jovens que foram mandadas por seus familiares para uma dessas lavanderias ou, como eram representadas, “asilos católicos”. As jovens são chamadas “irmãs Madalena”, sendo que três delas eram de mães solteiras e uma tinha sido estuprada. Segundo o historiador e ensaísta Fintan O`Toole (2015), não se pode ignorar que o declínio da Igreja Católica tenha contribuído em muito. Hoje a maioria dos irlandeses não se faz mais conduzir pela Igreja sobre as questões morais. Isto tem muito a ver com “o escândalo dos abusos sexuais”. De um lado, creio que muitos prelados estejam sinceramente insatisfeitos com o modo como a Igreja tratou os gays nos séculos; de outra, uma linha demasiado dura poderia ser contraproducente.

Além disso, nas cúpulas sabiam que teriam perdido, tanto valia fazê-lo com graça. Mas há também outros fatores que explicam o resultado. A Igreja controla em torno de  90% do sistema educativo. Até agora tem podido dizer que refletia o ponto de vista da absoluta maioria, mas está claro que não é mais assim. Então a questão é agora: como conter a tradição religiosa – que deve ser respeitada, pois ninguém quer minar o direito das pessoas à própria religião – no interior de uma sociedade variegada, laica e pluralista? Quem se opõe à mudança sempre disse que aquela conversa do direito dos gays era o tema de elite.  O referendum demonstrou que não é bem assim. Voltaram a votar pessoas de todas as partes do mundo, se registraram jovens desiludidos da política. Este é um tema que revigora a democracia: não tem a ver somente com a Irlanda, ou com os movimentos gays, é o tema da igualdade que apaixona. Redefinimos a normalidade, é esta a mensagem do voto: aquilo que consideramos normal mudou no século vinte e um, e é tempo que os políticos acertem o passo.  - Meu filho trabalha na Suíça, ele e sua garota voltaram para votar. Respira-se um sentimento de felicidade, sem amarguras ou triunfalismos. Muitas famílias se reuniram. Que ironia: os conservadores falam de ataque à família, mas para nós é uma grande celebração da família. A moral tem sua base na liberdade do ser humano através da qual uma pessoa pode realizar boas ações, mas que também tem a liberdade de praticar atitudes injustas. A reflexão moral ajuda o ser humano a tomar consciência da própria responsabilidade no trabalho como pessoa, tendo sempre claro o princípio da verdade e do bem.

Bibliografia geral consultada.

BENTHAM, Jeremy, “Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação”. In: Coleção Os Pensadores. 2ª  edição. São Paulo: Abril Cultural, 1979; BEALE, Jenny, Women in Ireland - Voices of Change. Houndmills, Basengstoke, Hampshire and London. London: MacMillan Education Ltd, 1986; LEERSSEN, Joep, Mere Irish and Fíor Ghael: Studies in the Idea of Irish Nationality, Its Development and Literary Expression prior to the Nineteenth Century. Ireland: Cork University Press, 1996; FINNEGAN, Frances, Do Pennace or Perish – A Study of Magdalen Asylums in Ireland. Piltown, Company. Kilkenny: Congrave Press, 2001; ROUDINESCO, Élisabeth, La Familia en Desorden. México: Editor Fondo de Cultura Economica, 2003; MARTINS, Carlos Benedito, “A Contemporaneidade de Erving Goffman no Contexto das Ciências Sociais”. In: Rev. Bras. Cien. Soc. Volume 26 n° 77. São Paulo, outubro de 2011; Artigo: “Governo Irlandês pede Perdão por Trabalho Forçado em Lavanderias”. In: Jornal O Globo: Rio de Janeiro, 05/02/2013; BATISTA, Carolina de Almeida, Da Quanta Cura (1864) de Pio IX a Rerum Novarum (1891) de Leão XIII: Relações entre Permanências e Busca por Adaptações. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Assis: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2013; BOFF, Ediliane de Oliveira, De Maria a Madalena: Representações Femininas nas Histórias em Quadrinhos. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014; FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 42ª edição. Petrópolis (RJ): Editoras Vozes, 2014; SIXSMITH, Martin, Philomena: La  Conmovedora Historia Real de una Madre y el Hijo al que Tuvo que Renunciar. Madri: Editor Suma, 2014; OLIVEIRA, Adriana de, Avaliação do Lado Mãe e Bebê: Elaboração e Construção de Instrumento e Estudo de Evidências de Validade. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2016; SPECK, Sheila, Devolução de Crianças: A Outra Face da Adoção. Um Estudo do Fenômeno de Devolução de Crianças e Adolescentes no Estágio de Convivência. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2019; RAMPELOTTO, Geraldo, Tratamernto de Águas de uma Lavanderia Industrial por Flotação-Filtração. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2020; entre outros.