domingo, 8 de setembro de 2019

Isabel Allende - Estado, Ideologia & Escrita Transfigurada.

                                                                                                      Ubiracy de Souza Braga   
               “O meticuloso exercício da escrita pode ser a nossa salvação”. Isabel Allende

    
                       
            A América Latina está localizada na totalidade no hemisfério ocidental, cujas  linhas imaginárias são representadas pelo Trópico de Câncer, pelo qual é cortado o centro do México; o Equador, linha imaginária passada no Brasil, Colômbia, Equador que perpassa o norte do Peru conquanto o Trópico de Capricórnio, pelo qual foram transplantados o Brasil, o Paraguai, a Argentina e o Chile. A América Latina é um complexo cultural das Américas distribuída irregularmente pelos hemisférios norte e sul, porque a maioria de suas terras é estendida ao sul da Linha do Equador. Na América Latina são comportadas diversas culturas, de forma extraordinária, porque estão misturadas línguas, etnias e costumes. Há predomínio do espanhol como língua dos países, com a invasão e conquista das ilhas do Caribe em 1492, se estendeu rapidamente através do continente com os colonos procedentes principalmente de Andaluzia e Extremadura. Mas também de outras partes da Espanha, que se estabeleceram ali nos séculos XVI e XVII constituindo-se ao redor de 200.000 pessoas nesses primeiros séculos. É falado e imaginado por mais de 370 milhões de latinos, além do português, francês e, em regiões ao norte do continente, o inglês e o neerlandês.
Há também múltiplas e várias de línguas nativas, merecendo destaque o quíchua, legado dos Incas e idioma que se fala no Peru, Equador, Bolívia e Argentina. Línguas românicas oficiais na América Latina: português em laranja; espanhol em verde e francês em azul. A etnia dos habitantes da América Latina tem grande variação de país a país. Apesar da intensidade de mestiços, existem algumas nações em que a maior parte dos habitantes é branca, como a Argentina e Uruguai, outras, ungidas no âmbito do processo civilizatório (cf. Ribeiro, 1968), onde quase todos os habitantes são de origem negra, como no Haiti, República Dominicana, Granada, Bahamas e Barbados e outras, onde está presente na origem continental o índio: Peru, Bolívia, México, Equador e Paraguai. Existem países mestiços de verdade: Colômbia e Venezuela, ou o Brasil, no qual são existentes regiões de população com pequeno predomínio de brancos e demais regiões onde é apresentada maior parte de negros, mestiços, mulatos ou índios. Segundo o World Factbook, estatisticamente em treze países da América Latina, a população é majoritariamente mestiça. Segundo a publicação, 95% dos paraguaios, 90% dos hondurenhos e salvadorenhos, 70% dos panamenhos, 68% dos venezuelanos, 69% dos nicaraguenses, 65% dos equatorianos, 60% dos mexicanos, 59,4% dos guatemaltecos, 58% dos colombianos e 54,8% dos belizenhos são mestizos.
         O crioulo belizenho, também conhecido como kriol pelos seus falantes, é um idioma crioulo, aparentado ao crioulo da Costa dos Mosquitos, ao crioulo de Rio Abajo, ao crioulo de Colón e ao crioulo de Santo André e Providência. O crioulo belizenho tem cerca de 350.000 falantes nativos em Belize, onde é a lingua franca, falada por 70% da população. Também é falado pela diáspora belizenha, concentrada especialmente nos Estados Unidos da América. O crioulo belizenho foi falado, historicamente, pelos crioulos belizenhos, uma população de origem primordialmente africana e britânica. No entanto, diversos grupos étnicos do país, como os garifunas, os mestiços e os maias falam o crioulo belizenho como segunda língua. O crioulo belizenho é um idioma crioulo, derivado basicamente do inglês, com influências recentes e mínimas do espanhol. O seus substratos são línguas ameríndias como o misquito, e os diversos idiomas da África Ocidental que foram trazidos ao país com os escravos. O pídgin que surgiu após o contato dos proprietários de terra ingleses e seus escravos africanos como forma de comunicação básica acabou se desenvolvendo ao longo dos anos. Jamaicanos também foram trazidos à colônia, trazendo suas próprias adições ao vocabulário, e eventualmente esta tornou-se a língua materna dos filhos de escravos nascidos em Belize.   


Um fragmento etnográfico importante nas páginas da vida latino-americana da década de 1950, pode se documentar seguindo-se o rastro aberto pela etnologia de Darcy Ribeiro. Traçou o plano de uma obra antropocêntrica que incluiu, entre aspectos etnográficos, a revolução humana; as experiências junto às formações pré-agrícolas; um estudo sobre a revolução agrícola e sobre as aldeias agrícolas indiferenciadas; as sociedades pastoris; a revolução urbana e os Estados rurais artesanais e, principalmente, – para o que nos interessa o lugar da revolução do regadio e os Impérios teocráticos de regadio, assim como a revolução metalúrgica e os Impérios mercantil-escravistas que têm como consequência, grosso modo, a revolução mercantil. O genial antropólogo marxista examina os efeitos sociais das diversas fronteiras, não apenas de expansão econômica, perante os grupos étnicos que classifica segundo a intensidade de sua relação com o espaço antrópico e social e os processos políticos de formação das sociedades nacionais.
Além disso, este plano de trabalho é muito importante na medida em que o autor teve acesso a obras históricas que em sua maioria estavam sendo publicadas quase que imediatamente “sobre o estudo das revoluções tecnológicas e na fixação dos modelos teóricos das formações socioculturais”. Contou também com suas próprias experiências concretas no Parque Indígena do Xingu (MT), enquanto antropólogo junto a grupos indígena Guajá e os Xokléng, os Kadiuéu e em particular, a Arte Plumária dos Índios Kaapor. Igualmente, a etnologia sobre os Urubus- Kaapor e as tribos diferenciadas do Xingu, entre outras pesquisas originalmente realizadas sobre os índios no Brasil. O processo civilizatório, afirma Darcy Ribeiro, “é minha voz nesse debate. Ouvida quero crer, porque foi traduzida para as línguas de nosso circuito ocidental, editada e reeditada muitas vezes e é objeto de debates internacionais nos Estados Unidos e na Alemanha. A ousadia de escrever um livro tão ambicioso me custou algum despeito dos enfermos de sentimento de inferioridade, que não admitem a um intelectual brasileiro o direito de entrar nesses debates, tratando de matérias tão complexas. Sofreu restrições, também dos comunistas, porque não era um livro marxista, e dos acadêmicos da direita, porque era um livro marxista. Isso não fez dano porque ele acabou sendo mais editado e mais lido do que qualquer outro livro recente sobre o mesmo tema”.
            A tipologia utilizada foi elaborada, “com esse espírito”. A primeira configuração  designada como Povos-Testemunho é integrada, ipso facto, pelos sobreviventes de altas civilizações autônomas que sofreram o impacto civilizatório devastador da expansão europeia. São resultantes modernos da ação traumatizadora daquela expansão e dos seus esforços de reconstituição étnica como sociedades nacionais modernas. Reintegradas em sua Independência, desde 1810 até 1888, não voltam a ser o que eram antes, porque se haviam transfigurado profundamente. Mais do que povos considerados atrasados na história, eles representam os povos espoliados da história. Séculos de subjugação ou de dominação direta ou indireta impuseram-lhes profundas deformações que não só depauperaram seus povos como também traumatizaram toda a sua vida cultural. Como problema básico, enfrentam a integração dentro de si mesmo de corpo e alma das duas tradições culturais de que se fizeram herdeiros. Não apenas diversas, mas evidentes, em muitos aspectos, contrapostas. Atraídos simultaneamente pelas tradições, mas incapazes de fundi-las numa síntese significativa para sua população. Conduzem dentro de si o conflito étnico entre a cultura original e a violenta civilização colonizadora europeia.
            Isabel Allende nasceu em 2 de agosto de 1942, em Lima, no Peru, onde o seu pai diplomata se encontrava em trabalho. No entanto, a sua nacionalidade é chilena, tendo-se tornado cidadã norte-americana em 2003. É filha de Tomás Allende, funcionário diplomático e primo-irmão do socialista Salvador Allende, e de Francisca Llona, “Dona Panchita”. Aos três anos de idade, com a separação de seus pais, regressou ao Chile junto com a su mãe e irmãos. Permaneceu no país até 1953, ano em que se transladaram para Bolívia, primeiro, e em seguida a Beirute, Líbano, junto com o segundo marido de sua mãe, o diplomata Ramón Huidobro. Cinco anos mais tarde, em 1958, a jovem Isabel voltou a estabelecer-se en Chile, onde se iniciou trabalhando para a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), importante organismo político das Nações Unidas, e se casou com Miguel Frías, com quem teve dois filhos, Paula e Nicolás. A relação de Isabel Allende como escritora começou em 1967, com seu trabalho jornalístico na chilena revista Paula, de circulação semanal, tendo como escopo temas relacionados com a mulher, tais como: moda, beleza, cozinha etc. Nesta publicação dirigida a mulheres formou parte da equipe editorial, redigiu reportagens, realizou entrevistas e teve sua própria coluna de humor, chamada “Los impertinentes”.
            Por parte de seu pai, Tomás Allende tem descendência castelhana e francesa. Aos três anos de idade, Isabel Allende chega ao Chile. Vem a bordo do Aconcágua, procedente de Lima no Peru, junto a sua mãe e a seu irmão Juan que se encontra enfermo e não tem mais de dois meses de vida, enquanto que Margara, a criada carrega a Pancho de um ano e meio. A 6.962 metros de altitude, o Aconcágua mostra a sua imponência e desafia aventureiros. Pico mais alto do mundo fora do Himalaia, o maior gigante da Cordilheira dos Andes faz disparar o coração de quem cruza a fronteira entre  Chile e Argentina sem conseguir ficar alheio a tanta imensidão e beleza. Sem que Isabel soubesse, sua mãe veio fugindo do abandono e do desamor de seu esposo, Tomás Allende, secretario da embaixada do Chile em Lima, cujo misterioso desaparecimento parece estar ligado a rumores de um escândalo entre funcionários diplomatas do alto escalão. A mãe de Isabel, Francisca LLona Barros, reconhecida por todos por Panchita, “mulher de grande beleza e dotes artísticos”, se casou com Allende contra a vontade de seu pai. A menina contará depois no ensaio etnográfico Paula (cf. Allende, 2016) os primeiros sentimentos de responsabilidade que se despertam nela como meio de apaziguar a dor de sua sofrida mãe. Entre ambas existe um laço estreito de compreensão que os anos conseguem juntá-las, aumentando o amor e o respeito quase sagrado na literatura, e a necessidade de compartilhar a obra de Isabel e uma secreta cumplicidade para compartilharem juntos momentos certamente felizes, mas também muito tristes.    
Bombardeio do Palácio de La Moneda.
Durante esta época participou na televisão e em outros meios de escritores como a revista infantil Mampato, é uma história chilena pertencente aos géneros de aventuras e ficção, criada por Eduardo Armstrong e o ilustrador Oskar, e desenvolvida principalmente por Themo Lobos, que dirigiu entre os anos 1973 e 1974 - e escreveu as obras de teatro El embajador (1971), La balada del medio pelo (1973) e La casa de los siete espejos (1975). Isabel Allende é considerada uma das principais revelações da literatura latino-americana da década de 1980. O seu livro mais editado foi La Casa dos los Espíritus (1982), que ganhou reconhecimento internacional de público e crítica. O filme A Casa dos Espíritos (1993), foi realizado por Bille August, com Jeremy Irons, Meryl Streep, Winona Ryder e Antonio Banderas, com parte das filmagens ocorrida em Lisboa e no Alentejo, em Portugal. Sua obra é marcada pela ditadura militar en Chile, en 1975. Isabel Allende decidiu abandonar o país junto com a sua família rumou a Venezuela, nação onde residiu por 13 anos. Alí empreendeu sua carreira como novelista com a publicação de La Casa de los Espíritus em 1982, uma das principais referências do realismo mágico no contexto do boom latino-americano, representando uma bem sucedida adaptação para o cinema. Apresenta o mimetismo sociológico com algumas diferenças com relação ao enredo do livro, como a fusão de personagens e a omissão calculada de alguns fatos sociais e políticos. No entanto, em nada diminuem a versão fílmica. Pelo contrário, essa lapidação do romance para a telona só evidencia o talento do diretor Bille August e sua preocupação de fazer um trabalho à altura da obra literária.
             Contudo, segundo Freitas (2010) no caso da produção fílmica de Isabel Allende: Casa dos Espíritos trata-se de produção híbrida na qual “a latinidade se acha quase ausente”. Indagado por um repórter sobre o porquê de um diretor dinamarquês filmando um livro sul-americano numa produção alemã, usar a língua inglesa, Bille August justifica: - o filme está orçado em 25 milhões de dólares e ninguém no mundo financiaria esta cifra para um filme espanhol. Acrescenta que Hamlet é uma história dinamarquesa e foi filmado em inglês. Pondera ainda o premiado diretor: - Quem assistiria a “O Último Imperador” se fosse rodado em chinês? O diretor bem que se interessou por penetrar num universo sulamericano de amores proibidos, vingança, misticismo, opressores e oprimidos e de golpes militares, entretanto, o filme ao que parece, não contém o “sabor latino” do livro. Esta circunstância levou alguns integrantes de origem hispânica, residentes nos Estados Unidos, a organizarem um protesto contra a ausência de profissionais étnicos no elenco técnico e artístico de La Casa de los Espíritus. Eles pediram à considerável parcela latina de 39 milhões de pessoas do público norte-americano que não assistissem ao filme. Os dados estatísticos do Census Bureau (2005), os latino-americanos residentes representavam em torno 13,4% da população do país, constituindo o segundo grupo étnico socialmente.   
      Quando o filme foi divulgado simultaneamente no Brasil e nos Estados Unidos da América, a crítica especializada considerou a parte técnica de primeira qualidade: o desenho de produção, o guarda-roupa, a fotografia e a música. Por outro lado, julgou que o elenco, apesar de grandes nomes, não é coeso, considerando a superioridade das atrizes sobre os atores. A censura maior recaiu sobre o roteirista-diretor “considerado despreparado para trabalhar sobre um texto que aborda o contexto latino-americano”. Em entrevista à imprensa concedida por ocasião da edição do filme em Santiago do Chile, Isabel Allende, depois de afirmar que gostou da adaptação, embora achasse impregnado de um tom melancólico escandinavo “pediu que não se comparasse livro e filme, pois eram coisas diferentes”. O filme começa e termina com a mesma cena: Esteban Trueba, um jovem decidido e ambicioso, pretende fazer fortuna, já velho chega à casa da fazenda “Las Tres Marías” com a filha Blanca e a neta Alba pela mão - a mesma estrutura circular do livro. Alba começa a narrativa e não a interrompe em nenhum momento. Bille August afirmou que a leitura do livro “teve o mesmo encantamento de um menino diante de uma sala cheia de brinquedos”. Pensou em fazer o filme, mas não sabia por onde começar. Entendeu que a mensagem interpelada no âmbito do livro “era a habilidade em perdoar e a recusa à vingança”. Direcionou o seu trabalho, mas omitiu muitos elementos importantes da obra-tema. 
             
Na análise comparada estabelecida entre literatura e filme segundo a interpretação de Freitas (2010) duas questões parecem justificar para a analista, a expressão “transmutação” em seu estudo, quando alude por um lado, que a omissão mais surpreendente é a da Casa da Esquina - a verdadeira casa dos espíritos da incrível invenção de Isabel Allende. Foi mandado construir por Esteban para ser a residência do casal. Tinha todo o luxo e riqueza imagináveis. Transformou-se, depois que Esteban ficou na fazenda e Clara com os filhos na casa, “em um mundo encantado onde tudo ocorria”. Clara acolhia pessoas, dirigia reuniões com rosa cruzes, espiritualistas, adventistas do sétimo dia, grupos de tarô. Os filhos punham em prática suas excentricidades: aulas de artesanato para as crianças com necessidades especiais, repetidas tentativas frustradas de imitar a mãe em seus poderes, no estudo e na prática de crenças estranhas. E, por outro, quando o roteirista acentuou o drama e omitiu o humor, como elemento do realismo fantástico, dentre muitas passagens do livro que surpreendem o leitor: Clara, quando foi agredida pelo marido, “perdeu alguns dentes e como a prótese que mandara fazer a importunava, ela pendurou-a em uma fita no pescoço e só a colocava para comer ou nas festas”.
Para a alquimia, transmutação tem como representação a conversão de um elemento noutro. Este conceito é aplicado com características próprias na natureza, espontaneamente, quando elementos químicos e isótopos possuem núcleos instáveis. É neste sentido que a “cultura mestiça” (cf. Ribeiro, 2008) é representada e por definição histórica, a latino-americana é resultante da inserção ibérica da conquista e colonização, com a suplantação multiforme das culturas ameríndias, com o posterior agregado do elemento africano inclusivo às aluviões imigratórias. Dada a diversidade de membros humanos, um problema essencial tem sido e continua sendo encontrar sua identidade cultural, situação expressa na literatura ao buscar a apropriação de uma linguagem própria e a concreção de um conteúdo associado e no âmbito de um contexto político anteriormente não unificado. O conflito social se faz evidente, em certos momentos críticos da tomada de consciência: a emancipação romântica, o modernismo, a novela social e a literatura mágica até o desencadeamento de nossos dias. Ambos os recortes  têm servido como linhas de orientação metodológica para a linguagem e conteúdo de uma literatura, terrenos privilegiados em que se manifesta em forma mais evidente o conflito resultante do choque interno e externo, consciente e inconsciente de culturas.
No capítulo XIII – da Casa dos Espíritos – não por acaso intitulado - O Terror, Isabel Allende descreve-o como um dia que amanheceu ensolarado, o que era pouco usual na tímida primavera que despontava. Jaime havia trabalhado quase toda a noite e, às sete da manhã, só tinha no corpo duas horas de sono. Despertou-o a campainha do telefone, e uma secretária, com a voz ligeiramente alterada, acabou de lhe espantar a modorra. Telefonavam-lhe do palácio para informa-lo que deveria apresentar-se no escritório do companheiro presidente o mais depressa possível, não, o companheiro presidente não estava doente, não, não sabia o que estava ocorrendo, apenas tinha ordem de chamar todos os médicos da presidência. Jaime vestiu-se como um sonâmbulo e entrou em seu carro, agradecendo o fato de sua profissão lhe dar direito a uma cota semanal de gasolina, porque, não fosse assim, teria de ir até o Centro de bicicleta. Chegou ao palácio às oito e estranhou ver a praça vazia e um forte destacamento de soldados nos portões da sede do governo, todos equipados com farda de campanha, capacetes e armamentos de guerra. - Sinto muito, mas chamaram-me da presidência – alegou Jaime, mostrando sua identificação - Sou médico. O presidente veio em seu encontro, usando um capacete de combate incongruente com sua fina roupa esportiva e seus sapatos italianos. Jaime compreendeu que algo grave estava acontecendo. – A Marinha sublevou-se, doutor – explicou laconicamente. – Chegou o momento de lutar.
Jaime pegou o telefone e chamou alba para dizer-lhe que não saísse de casa e pedir-lhe que avisasse a Amanda. Nunca mais voltou a falar com ela, porque os acontecimentos se desencadearam vertiginosamente. No transcurso da hora que se seguiu chegaram alguns ministros e dirigentes políticos do governo, e começaram a s negociações telefônicas com os insurrectos para avaliar a magnitude da sublevação e procurar uma solução pacífica. Às nove e meia da manhã, porém, as unidades armadas do país estavam sob o comando de militares golpistas. Nos quartéis começaram o expurgo dos que permaneciam leais à Constituição. O general dos carabineiros ordenou á guarda do palácio que saísse, porque também a polícia acabara de aderir ao golpe. – Podem ir, companheiros, mas deixem suas armas – orientou o presidente. Os carabineiros estavam confusos e envergonhados, mas a ordem do general fora categórica. Nenhum deles se atreveu a desafiar o olhar do chefe de Estado, depositaram suas armas no pátio e saíram em fila, cabisbaixos. À porta um dos carabineiros se voltou. – Eu fico com você, companheiro presidente, declarou. Pelo visto, no meio da manhã, a situação não se resolveria com o diálogo e quase todo mundo começou a retirar-se. Só ficaram alguns mais próximos e a guarda pessoal.
As filhas do presidente foram obrigadas pelo pai a sair do palácio de governo. Tiveram de ser levadas à força, e seus gritos podiam ser ouvidos, chamando-o da rua. No interior do edifício ficaram cerca de 30 pessoas entrincheiradas nos salões do segundo andar, em meio às quais estava Jaime, imaginando estar sofrendo um pesadelo. Sentou-se numa poltrona de veludo vermelho, com uma pistola na mão, olhando-a idiotizado. Não sabia usá-la. Nem todo homem sabe usá-la. Pareceu-lhe que o tempo passava muito lentamente; em seu relógio só haviam transcorrido três horas daquele pesadelo. Ouviu a voz do presidente, que falava pelo rádio ao país. Era sua despedida. – “Dirijo-me àqueles que serão perseguidos, para dizer-lhes que não vou renunciar: pagarei com minha vida a lealdade do povo. Estarei sempre junto de vocês. Tenho fé na pátria e em seu destino. Outros homens superarão este momento, e, muito mais cedo do que se pensa, se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o povo! Vivam os trabalhadores! Estas serão as minhas últimas palavras. Tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão”.
Ele, porém, não estava disposto a exilar-se em algum lugar longínquo, em que poderia passar o resto de sua vida, vegetando com outros governantes depostos, que tivessem abandonado às pressas sua pátria. – Equivocaram-se comigo, traidores. Aqui me pôs o povo, e daqui só sairei morto – respondeu sereno. Então ouviram o rugido dos aviões, e começou o bombardeio. Quinze minutos depois ardia todo o edifício e lá dentro era impossível respirar por causa das bombas e da fumaça. O bombardeio, embora breve, deixou o palácio em ruínas. Às duas da tarde o incêndio já devorara os antigos salões, que haviam servido desde os tempos coloniais, e só ficou um punhado de homens em volta do presidente. Os militares entraram no edifício e ocuparam tudo que restara da planta baixa. Em meio ao estrondo ouviram a voz histérica de um oficial ordenando-lhe que se rendessem e descessem em fila indiana e com as mãos para o alto. No casarão da esquina, o senador Trueba abriu uma garrafa de champanha francês para celebrar a queda do regime contra o qual lutara ferozmente, sem suspeitar que naquele momento queimassem os testículos de seu filho Jaime com um cigarro importado.
Os soldados patrulhavam as ruas, nervosos, aplaudidos por muita gente que tinha desejado a derrocada do governo. Alguns, estimulados pela violência daqueles dias, detinham os homens de cabelo comprido ou barba, sinais inequívocos de seu espírito rebelde, e mandavam parar na rua as mulheres com calças compridas, para cortá-las a tesouradas, porque se sentiam responsáveis por impor a ordem, a moral e a decência. As novas autoridades afirmaram nada ter a ver com aqueles atos, nunca ter dado ordem para cortar barbas ou calças; tratava-se, provavelmente, de comunistas disfarçados de soldados para desprestigiar as Forças Armadas e torna-las odiosas aos olhos dos cidadãos, porque não estavam proibidas as barbas nem as calças compridas, embora, certamente, preferissem que os homens andassem barbeados e mantivessem o cabelo curto, e as mulheres usassem saia. Logo correu o boato de que o presidente morrera, e ninguém acreditou na versão oficial de que se suicidara. Naquele momento, ninguém sabia que as coisas iam acontecer como aconteceram. Pensava-se que a intervenção militar fosse um passo necessário organizado para a retomada de uma democracia sã.
Enfim, de uma penada os militares mudaram a história, apagando os episódios, as ideologias e as personagens que o regime desaprovara. Adequaram os mapas, por que não havia nenhuma razão para por o Norte em cima, tão longe da pátria benemérita, se se podia por embaixo, onde ficava mais favorecido, e, de passagem, pintar com azul da Prússia vastas margens de águas territoriais até os limites da Ásia e da África, e se apoderaram de terras longínquas nos livros de geografia, retraçando as fronteiras impunemente, até que os países irmãos perderam a paciência, gritaram nas Nações Unidas e ameaçaram com tanque de guerra e aviões de caça. A censura, que a princípio só atingiu os meios de comunicação massivos, logo se estendeu aos textos escolares, às letras das canções, aos roteiros dos filmes e às conversas privadas. Havia palavras proibidas por decreto militar, como o uso da palavra companheiro, e outras que não se diziam por precaução, apesar de nenhum decreto tê-las eliminado do dicionário, como liberdade, justiça, sindicato. O golpe de Estado deu-lhes a oportunidade de por em prática o que tinha aprendido nos quartéis, a obediência cega, o manejo das armas e outras artes que os soldados podem dominar quando aplacam os escrúpulos do coração.  
A contradição se evidencia, por um lado, através do extermínio das etnias por parte dos conquistadores ingleses, hispânicos e portugueses, e por outro lado, devido à  transfiguração da cultura ocidental cristã caracterizada pelo domínio castellano-español, assim como no caso português, durante a colonização do Brasil, condicionando o problema da criação e autonomia das letras e artes latino-americanas. Nas Américas, são representados pelo México, Guatemala e pelos povos do Altiplano Andino; sobreviventes da herança das populações Astecas e Maia, os primeiros, e da civilização Incaica, os últimos. Os dois núcleos de povos das Américas, como povos conquistados e subjugados, sofreram um processo de compulsão europeizadora muito mais violento do que resultou ordinária sua complexa transfiguração étnica. Seus perfis étnicos nacionais conformam perfis neo-hispânicos metidos nos descendentes da antiga sociedade, mestiçados com europeus e negros. Os demais povos sobreviventes apenas coloriram sua figura étnico-cultural nas Américas, “a etnia neo-européia é que se tinge com as cores das antigas tradições culturais, tirando delas características que as singularizam”.
Vale lembrar, segundo a etnologia consagrada de Darcy Ribeiro, que nenhum dos povos assimilados constitui uma nacionalidade multiétnica. Em todos os casos o processo de formação foi violento para compelir a fusão das matrizes originais em novas unidades. Somente o Chile, por sua formação peculiar, guarda no contingente Araucano, os Mapuches  nome que os espanhóis lhes deram, mas que eles não reconhecem como próprio e percebido como pejorativo, representando uma micro-etnia diferenciada da nacional, historicamente reivindicante do direito de ser ela própria, ao menos como modo diferenciado de participação na sociedade nacional. Os chilenos e os paraguaios contrastam igualmente com os miscigenados Povos-Novos pela ascendência indígena de sua população e pela ausência do contingente negro escravo, bem como do sistema de plantation, que tiveram papel tão saliente comparativamente, na formação de brasileiros, antilhanos, colombianos e venezuelanos. Estes formam, com a matriz étnica dos rio-platenses, uma nova variante étnica pela confluência de contingentes díspares em suas características concretas raciais, culturais e linguísticas.
Estes contingentes básicos, embora exercendo papéis distintos, entraram a mesclar-se e a fundir-se culturalmente com maior intensidade do que em qualquer outro tipo de conjunção, chamado a exercer os papéis de liderança por força das condições de dominação impostas aos demais. Do negro, nela engajado como braço escravo; do índio, também escravizado ou tratado como mero obstáculo a erradicar, foi surgindo uma população distinta, nova, mestiça que fundia aquelas matrizes nas mais variadas proporções. Etnograficamente os Povos-Novos surgem hierarquizados, como os Povos-Testemunho, pela distância social que separa a sua camada senhorial de fazendeiros, mineradores, comerciantes, funcionários coloniais e clérigos da massa escrava engajada na produção. Constituíam-se de rudes empresários, senhores de suas terras e de seus escravos, forçados a viver junto a seu negócio e a dirigi-lo pessoalmente com a ajuda de uma pequena camada intermédia, de técnicos, capatazes e sacerdotes. Onde a empresa prosperou nas zonas açucareiras e mineradoras do Brasil e das Antilhas, puderam dar-se ao luxo de residências senhoriais e tiveram de alargar a camada intermédia, dos engenhos como das vilas costeiras, incumbidas do comércio exterior.
Bibliografia geral consultada.
COMBLIN, Joseph, Théologie de la Révolution: Théorie. Paris: Éditions Universitaires, 1970; Idem, “La Seguridad Nacional”. In: Mensaje, 25, 96-104; 1976; Idem, Le Pouvoir Militaire en Amerique Latine: l`ideologie de la Securite Nationale. Paris: Editeur J.-P. Delarge, 1977; MACIEL, Anamelia Dantas, Gênero e Autobiografia na Obra de Isabel Allende e Luzilá Gonçalves Ferreira. Considerações em torno de Meu País Inventado, Ines del Alma e A Garça Mal Ferida. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2007; FREITAS, Iara Maria Carneiro de, Análise da Construção de Personagens Femininos na Transmutação do Romance La Casa de los Espíritos para o Cinema. Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada. Dissertação de Mestrado. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 2010; SCHMIEDECKES, Natália Ayo, “Tomemos la Historia en Nuestras Manos”: Utopia Revolucionária e Música Popular no Chile (1966-1973). Dissertação Mestrado em História. São Paulo: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2013; MARRA, Fabiola Benfica, A América Latina e os Latino-americanos nas Narrativsa de Eva Luna e Isabel Allende. Dissertação de Mestrado. Instituto de Letras e Linguísticas. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2016; MIRANDA, Gonzalez Maria Antônia, Gênero e Literatura nos Contextos Imaginados de América Latina: Uma Leitura Política à Narrativa de Nélida Piñon e Isabel Allende. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2016; ALLENDE, Isabel, A Casa dos Espíritos. Tradutor Carlos Martins Pereira. 1ª edição. São Paulo: Editora Midiafashion, 2017; Idem, Longa Pétala de Mar. Tradução de Ivone Benedetti. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editor Bertrand Brasil, 2019; entre outros.

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