sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Duas Índias na História - Ética Solidária e Sodalidade de Casta.


                                                                                                    Ubiracy de Souza Braga

                    Não consigo levar a sério as pessoas com orgulho de casta”. Elias Canetti



            A desqualificação frequente de pessoas que se empregam para se submeter a um salário é um resultado direto do princípio de estratificação estamental, peculiar à ordem social e, decerto, da oposição desse princípio a uma distribuição de poder regulada exclusivamente por intermédio do mercado global entre nações e nacionalidades. A ordem estamental significa precisamente o inverso, ou seja, a estratificação em termos de “honras” e estilos de vida peculiares aos grupos estamentais organizados como tal. Se a simples aquisição econômica e o poder econômico puro, ainda trazendo o estigma de sua origem extra-estamental, pudessem conceder a quem os tivesse conseguido as mesmas honras que os interessados em estamentos em virtude de um estilo de vida que pretendem para si, a ordem estamental estaria ameaçada em suas bases mesmas, principalmente tendo em vista que, em condições de igualdade de honras estamentais, a posse per se representa um acréscimo, mesmo não sendo abertamente reconhecida como tal. Portanto, todos os grupos que têm interesses na ordem estamental reagem com especial violência precisamente contra as pretensões de aquisição exclusivamente econômica. O parvenu jamais é aceito, pessoal e sem reservas, pelos grupos estamentalmente privilegiados existentes antes do advento da chamada Sociedade Industrial.   
Se o conceito de nação pode, de alguma forma, ser definido sem ambiguidades,  certamente não pode ser apresentado em termos de qualidades empíricas comuns aos que contam como membros da nação. O conceito indubitavelmente significa que podemos apreender de certos grupos de homens um sentimento específico de solidariedade frente a outros grupos. Assim, o conceito pertence à esfera de valores. Não obstante, não há acordo sobre como esses grupos devem ser delimitados ou sobre que ação concertada deve resultar dessa solidariedade. Na linguagem comum, nação não equivale a povo de um Estado, ou seja, aos integrantes de uma determinada comunidade política. Além disso, uma nação não é a mesma coisa que uma comunidade que fala a mesma língua, pois uma língua comum não parece ser absolutamente necessária a uma nação. E certos grupos linguísticos não se consideram como nação à parte, pois língua comum e nação são de intensidade variada. A solidariedade nacional entre homens e mulheres que falam a mesma língua pode ser aceita ou rejeitada. Ao invés disso, pode estar ligada a diferenças dos valores culturais de contingência das massas que tem como representação um credo religioso. 

 

           
            Na verdade, em toda parte, os nacionalistas especialmente radicais são, com frequência, de origem estrangeira. Além disso, um tipo antropológico comum, específico, não seja relevante para a nacionalidade, não é bastante nem constitui pré-requisito para fundar uma nação. Não obstante, a ideia de nação pode incluir as noções de descendência comum e de uma homogeneidade essencial, embora frequentemente indefinida. A ação tem essas noções em comum com o sentimento de solidariedade das comunidades étnicas, que também é alimentado de várias fontes. Mesmo o sentimento de solidariedade étnica não faz, por si, uma nação. É um velho problema, saber se os judeus podem ser chamados de nação. As razões para que um rupo acredite representar uma nação varia muito, tal como a conduta empírica que na realidade resulta da filiação ou falta de filiação a uma nação. As camadas feudais, as camadas de funcionários, as camadas empresariais de várias categorias, as camadas de intelectuais ou de estamentos e castas, não têm atitudes homogêneas ou historicamente constantes em suas ações.                       
            Um em cada seis indianos não pertence a nenhuma das quatro castas do sistema hierárquico social da Índia. Estatisticamente representam 200 milhões de indianos, os párias, são considerados seres impuros e desprezíveis. Nos vilarejos indianos os párias fazem um trabalho braçal no campo e retiram o lixo, porém vivem à margem da sociedade. Em alguns lugares ainda não podem entrar nos templos, recolher água de poços que servem à comunidade, tocar em outros indianos ou viver dentro do vilarejo. As punições por violar os limites das castas são severas. Muitos párias, atraídos pelos missionários ocidentais, converteram-se ao cristianismo. Mas continuaram excluídos da sociedade (cf. Drèze e Amartya, 2015). Um puzzle do ponto de vista sociológico é que nenhuma religião na Índia conseguiu superar as divisões sociais do sistema rígido de castas do hinduísmo. A Constituição da Índia promulgada em 1947 proibiu a discriminação por castas e instituiu leis específicas de acesso à educação e ao emprego bem remunerado, porém o preconceito contra os párias ainda existe na sociedade indiana. Sujatha Gidla, em sua autobiografia, Ants Among Elephants: An Untouchable Family and the Making of Modern India (cf. Chaudhuri, 2.08.2018) narra as dificuldades de ascensão social de sua família de párias em meio às contradições da Índia presa às suas tradições sociais, talvez, como angrez na Índia é comparável ao uso da palavra “gringo” na América Latina.   
            O avô de Gidla, educado por missionários canadenses, ao ser expulso de seu vilarejo, alistou-se no Exército da Índia Britânica e, no início da década de 1940, foi lutar no Iraque. A partir desse episódio, a autora reconstitui a vida das crianças que o avô deixou para trás no contexto social e político do movimento de Independência da Índia. Satyamurthy, o filho mais velho, abraçou a causa nacionalista, mas sua crença na democracia foi efêmera. Inspirado pelas ideias de Mao Tsé-Tung, disseminando uma visão revolucionária do comunismo, desapareceu nas florestas da região central da Índia, onde participou do movimento de guerra de guerrilha contra o governo indiano. Embora Satyamurthy, de cujo significado tem como representação a ideia em desenvolvimento de que a pessoa inteira seja o tema principal do livro, a mãe de Gidla, Manjula, é a verdadeira heroína da história. Apesar da discriminação de casta e sexo, Manjula cursou a universidade, enfrentou um marido repressivo e criou três filhos. Ao voltar para a casa após a experiência de militância frustrada, Satyamurthy encontrou surpreso, uma família educada nas melhores instituições de ensino da Índia, um exemplo reflexivo da superação do preconceito social e da pobreza de forma generalizada. 

            O desenvolvimento do estamento é essencialmente uma questão de estratificação que e baseia na usurpação, que é a origem normal de quase toda honra estamental. Mas o caminho dessa situação puramente convencional para o privilégio local, positivo ou negativo, é percorrido facilmente, tão logo determinada estratificação da ordem social  tenha, na verdade, sido vivida e tenha conseguido a estabilidade em virtude de uma distribuição estável do poder econômico. Isto quer dizer o seguinte: onde as suas consequências se realizaram em toda extensão, o estamento evolui para uma casta fechada. As distinções estamentais são, então, asseguradas não simplesmente pelas convenções e leis, mas também pelos rituais. Isto ocorre de tal modo que todo contato físico com um membro de uma casta “superior” é considerado como uma impureza ritualística e um estigma que deve ser expiado por um ato religioso. O estigmatizado e o normal admitira Erving Goffman (2015), “são parte um do outro; se alguém se pode mostrar vulnerável, outros também o podem. Porque ao imputar identidades aos indivíduos, desacreditáveis ou não, o conjunto social mais amplo e seus habitantes, de certa forma, se comprometeram, mostrando-se como tolos”. As castas individuais criam cultos e deuses bem distintos. A casta, é realmente, a forma natural pela qual costumam socializar-se as comunidades étnicas que creem na relação estabelecida de parentesco de sangue com os membros de comunidades exteriores e relacionamento social. Esses povos formam comunidades que adquirem tradições ocupacionais específicas de artesanatos, ou de outras artes, e cultivam uma crença em sua comunidade étnica. 
            As castas já foram contestadas por vários movimentos hindus reformistas, muçulmanos, siques, cristãos e budistas. O Sikhismo ou siquismo é uma religião monoteísta fundada em fins do século XV no Punjab, região dividida entre o Paquistão e a Índia por Guru Nanak (1469-1539). É por vezes retratado como o resultado de um sincretismo entre elementos do hinduísmo e do Islamismo e Sufismo. Quando chegou à Índia, a Companhia Britânica das Índias Orientais criou leis constitucionais separadas por religião e casta. A Índia britânica tornou a organização por castas, a base do sistema de administração do país. Os jatis foram a base da etnologia das castas na Índia britânica. No censo de 1881 e posteriormente, os etnógrafos coloniais usaram os jatis para inserir num sistema de modo que pudesse classificar as pessoas. O censo de 1891 incluiu sessenta subgrupos, cada um deles dividido em seis categorias ocupacionais e raciais, e os números aumentaram nos censos subsequentes. A divisão por castas na Índia britânica, segundo Bayly (2001), “classificou os jatis indianos com base em princípios semelhantes aos da zoologia e botânica, ranqueando-os em ordem de pureza, origem ocupacional e reputação social”. O sistema ideológico compreendia aproximadamente 3 000 castas, englobando 90 mil subgrupos endogâmicos regionais.
            Apesar da proteção legal, a Índia continua marcada pelo o que ex-primeiro-ministro Manmohan Singh descreveu como “apartheid de castas”, um complexo sistema de estratos sociais profundamente arraigados na cultura indiana. Milhões de dalits, considerados intocáveis no sistema de castas, sofrem de forma permanente a discriminação, constantemente reforçada pelo Estado e por entidades privadas. Uma pesquisa realizada em 2014 pelo Conselho Nacional de Pesquisa Econômica Aplicada (NCAER) revelou que um em cada quatro pessoas entrevistadas, de diferentes grupos religiosos reconheceu ter sido praticado a intocabilidade. Lamentavelmente, a prática se manifesta de várias maneiras. Em algumas aldeias os estudantes das castas superiores se negam a comer alimentos preparados pelos dalits, um grupo que inclui várias comunidades marginalizadas. Um estudo detalhado, feito por Sarva Shiksha Abhiyan, um programa estatal para conseguir a educação primária universal, concluiu que existem três tipos de discriminação social, dos professores, dos colegas e de todo o sistema educacional. O sistema de castas, considerado uma característica dominante da religião hindu e praticamente visto como uma divisão divina do trabalho dá aos dalits as tarefas mais servis: coleta de lixo, remoção de excrementos humanos, varrer, pavimentar e eliminar corpos humanos e de animais. Dados estatísticos do censo de 2011 revelam que cerca de 800 mil dalits trabalhavam esvaziando manualmente latrinas, embora se estime que através da divisão do trabalho social essa tarefa pudesse afetar em torno de 1,3 milhão de pessoas.
A casta, isto é, os direitos e deveres rituais que ela dá e impõe, e a posição dos  brâmanes, é a instituição fundamental do hinduísmo que só pode ser compreendida em relação à casta, sem cujo entendimento é impossível compreender o hinduísmo que representa o terceiro dos três períodos da religião indiana, caracterizado por um extremo pluralismo de cultos, deuses e seitas; neobramanismo, neo-hinduísmo. Mas a posição social do hindu em relação á autoridade do brâmane pode variar extraordinariamente, desde a submissão incondicional até o desafio de sua autoridade. Quando algumas castas contestam a autoridade do brâmane, isto significa que o brâmane é rejeitado como sacerdote, que seu juízo nas questões controversas de ritual não é reconhecido como autorizado, e que seu conselho é jamais buscado. À primeira vista parece contrariar a regra de que as castas e os brâmanes pertencem ambos ao hinduísmo. Mas na realidade, se a casta é essencial ao hindu, o inverso não é válido, isto é, nem toda casta é uma casta hindu. Há castas entre os maometanos da Índia, copiadas dos hindus. E castas existentes também entre budistas. Até mesmo os cristãos indianos comparativamente não foram capazes de evitar, por motivos práticos, o reconhecimento das castas. Os jats são historicamente uma casta majoritária na região rural do estado de Haryana, mas presente em outros sete estados do norte da Índia, como no Uttar Pradesh, Rajastão e Gujarat. Mais de um século depois,  e com o fenômeno sociológico do êxodo rural, os jats passaram a exigir um maior reconhecimento das grandes cidades no perímetro urbano e da administração do Estado. Com cerca de 6 milhões de membros na Índia, os jats dividem-se em dois grupos religiosos, os Sikhs e os hindus.  

                
O sistema de castas na Índia tem como representação um modelo de organização da sociedade em divisão de classes baseado em preceitos religiosos. Nesse sistema, a estratificação da sociedade ocorre de acordo com o nascimento do indivíduo em determinada família. Esta crença está embasada no livro Veda que seria a escritura sagrada para os hindus. Por isso, quem nasce em uma casta inferior está pagando pelos pecados da vida passada e deve aceitar seu karma. E estas castas não-hindus careceram da ênfase tremenda que a doutrina da salvação especificamente hinduísta dava á casta, e lhes faltou ainda uma característica, ou seja, a determinação da posição social das castas pelas distâncias sociais em relação ás outras castas hinduístas, e com isso, em última análise, do brâmane. Esse aspecto afetivo e político são decisivos para a ligação entre as castas hindus e o brâmane; por mais intensamente que uma casta hindu possa rejeitá-lo como sacerdote, como autoridade doutrinária e ritual, e mesmo sob qualquer outro aspecto hierárquico, a situação sociológica objetiva continua sendo inegável: em última instância, a posição social é determinada pela natureza de sua relação positiva ou negativa em relação a posição social representada pelo brâmane. A casta é, e continua sendo essencialmente, o condicionamento herdado de uma posição social, e a situação central dos brâmanes no hinduísmo baseiam-se mais no fato de que a posição é determinada com referência a eles do que em qualquer outro aspecto político.
As corporações de comerciantes e de mercadores que figuravam como comerciantes ao venderem mercadorias de sua produção, bem como as corporações artesanais existiram na Índia durante o período de desenvolvimento das cidades e especialmente no período em que se originaram as grandes religiões salvadoras. No período de florescimento das cidades, a posição das corporações era comparável à ocupada nas cidades do Ocidente medieval. A corporação – a mahajan, literalmente o mesmo que popolo grasso enfrentava de um lado o príncipe e de outros os artesãos economicamente dependentes. Essas relações eram aproximadamente as mesmas que havia entre as grandes corporações de letrados e comerciantes e as corporações artesanais inferiores (popolo minuto) do Ocidente. Da mesma forma, associações de corporações artesanais inferiores existiram na Índia (o panch). Além disso, a corporação litúrgica de caráter egípcio e romano talvez não estivesse totalmente ausente nos estados patrimoniais que começavam na índia. A singularidade da evolução da Índia está no fato de que esse início da organização de corporações nas cidades não levou à autonomia urbana nem, após o desenvolvimento dos estados patrimoniais, a uma organização social e econômica dos territórios correspondente à “economia territorial” ocidental. 
O sistema hinduísta de castas tornou-se destacado. Em parte, esse sistema de castas deslocou totalmente as outras organizações, e, em parte, as mutilou, impedindo que alcançassem importância considerável. O “espírito” desse sistema de casta, porém, era totalmente diferente do espírito das corporações mercantis e artesanais. Essas corporações, no Ocidente, cultivaram interesses religiosos, tal como as castas. Em relação a esses interesses, as questões de classificação social também tiveram considerável papel nas corporações. Em fins da Antiguidade, a participação nas corporações litúrgicas era até mesmo uma obrigação compulsória e hereditária, ao modo de uma glebae adscriptio, que prendia o camponês ao solo. Havia também os ofícios que representavam “opróbio” no Ocidente medieval, e que eram religiosamente déclassés.. A diferença fundamental, porém, entre associações ocupacionais e castas não é afetada absolutamente por essas circunstâncias sociais. Primeiro aquilo que é em parte uma exceção e em parte uma consequência ocasional para a associação ocupacional é realmente fundamental para a casta: a distância mágica entre as castas em suas relações mútuas. As corporações mercantis e artesanais da Idade Média não aceitavam barreiras rituais entre as corporações individuais e a forma de organização dos artesãos.
Havia barreiras concretas restringindo o conúbio entre ocupações avaliadas de forma diferente, mas não havia barreiras rituais, como as que são absolutamente essenciais à casta. Dentro do círculo de pessoas “honradas”, as barreiras rituais do comensalismo estavam totalmente ausentes; mas tais barreiras pertencem às base das diferenças de castas. A casta é essencialmente hereditária. E esse caráter não foi, nem é, apensa o resultado da monopolização e restrição das oportunidades de lucro a uma quota máxima definida, como ocorria entre as corporações totalmente fechadas do Ocidente, que em momento algum foram predominantes numericamente. A corporação baseou-se regularmente na livre escolha de um mestre pelo aprendiz, e assim possibilitou a transição dos filhos para ocupações diversas da paterna, circunstância que jamais ocorre no sistema de castas. Essa diferença é fundamental. Enquanto o fechamento das corporações para o exterior se tornava  mais rigoroso, economicamente, com a redução das oportunidades de renda, entre as castas observou-se frequentemente o inverso: elas mantém seu modo de vida exigido ritualmente, e daí o comércio herdado, com mais facilidade quando as oportunidades de renda são abundantes. A despeito de suas formas legais, a cidade em fins da Idade Média baseava-se, de fato, na associação de seus cidadãos produtivos. Isso ocorreu quando a forma política da cidade medieval encerrava suas características sociológicas mais importantes. A estruturação da cidade em associações se realizava pela fraternização das corporações de ofício.  
Pela sua solidariedade, a associação das corporações indianas, a mahajan, era uma força que os príncipes tinham de levar em consideração. Dizia-se: - “O príncipe tem de reconhecer o que as corporações fazem para o povo, que seja ele misericordioso ou cruel”. As corporações adquiriram privilégios dos príncipes, para empréstimos de dinheiro, que são remanescentes de nossas condições medievais. Os shreshti (anciãos) das corporações pertenciam aos nobres mais poderosos e se classificavam em igualdade com a nobreza guerreira e sacerdotal de seu tempo. Contudo, a tendência posterior em favor do governo monopolista do sistema de casta não só aumentou o poder dos brâmanes, mas também o dos príncipes, e rompeu com o poder as corporações. As castas excluíam qualquer solidariedade e qualquer fraternização, politicamente poderosa, dos cidadãos e dos ofícios. Se o príncipe observasse as tradições rituais e as pretensões sociais baseadas nelas, que existiram entre as castas mais importantes para ele, podia não só jogá-las umas contras as outras – o que fez – como nada tinham a temer delas, especialmente quando os brâmanes estavam a seu lado. Não é difícil imaginar os interesses políticos que influíram durante a transformação em governo monopolista do sistema de castas. Essa transformação levou a estrutura social da Índia a uma evolução que a afastava de qualquer possibilidade semelhante. Nessas circunstâncias globais o contraste fundamentalmente importante entre “casta” e “corporação”, ou qualquer outra “associação ocupacional”, é revelado de forma notável.
Para uma leitura compreensiva do papel fundamental que ocupa a casta no sistema de classificação social Weber se propõe a responder a indagação: se a casta se difere fundamentalmente da corporação e de qualquer outro tipo de associação meramente ocupacional, como ela se relaciona com o “estamento”, que encontra sua expressão autêntica na posição social? O estamento é uma qualificação em junção de honras sociais ou falta destas, sendo condicionado principalmente através de um estilo de vida específico. A honra social pode resultar diretamente de uma “situação de classe”, que podemos expressar mais sucintamente como a oportunidade típica de uma oferta de bens, de condições de vida exteriores e experiências pessoais de vida, e na medida em que essa oportunidade é determinada pelo volume e tipo de poder, ou da falta deles, de dispor de bens e habilidades em benefício de renda de uma determinada ordem econômica, sendo, na maioria das vezes, determinada pela média da situação de classe dos membros efetivos  do estamento. A situação estamental, por sua vez, influi na situação de classe, pelo fato de que o estilo de vida exigido pelos estamentos leva-os a preferir tipos especiais de propriedade ou empresas lucrativas, e rejeitar outras. Uma casta é um estamento fechado, pois todas as obrigações e barreiras que sua participação encerra também existem numa casta, na qual são intensificadas por sinal em grau extremo.
           As normas do comensalismo são semelhantes às do conúbio: um estamento não tem relações com os que lhe são inferiores socialmente. Como representação de um “estamento”, a casta intensifica e transpõe esse fechamento social para a esfera da religião, ou antes, da mágica. O tradicionalismo do artesão, grande em si mesmo, foi necessariamente intensificado ao extremo pela ordem de castas. Segundo Weber, o capital comercial em sua tentativa de organizar o trabalho industrial à base do sistema de produção teve de enfrentar uma resistência, essencialmente mais forte na Índia do que no Ocidente. Os próprios comerciantes, em sua solidão ritual, permaneciam nas barracas da classe mercantil oriental típica, que em si jamais criara uma moderna organização capitalista do trabalho. Era como se apenas os diferentes povos hóspedes, como foram os judeus, ritualmente exclusivos entre si e para com terceiros, pudessem seguir seus ramos na área econômica. Algumas castas mercantis hinduístas, particularmente, a Vânia, foram chamadas os “judeus da Índia”, crenças transformadas numa segunda natureza, para agir conforme a tradição nesse sentido negativo, com razão. Eram, em parte, especialistas em conseguir lucros inescrupulosos. Na acumulação da riqueza, competem com outras que anteriormente monopolizavam as posições sociais de escribas, funcionários ou coletores de impostos arrendados, bem como oportunidades semelhantes de obter rendimentos determinados politicamente, típicos na formação dos Estados nacionais patrimoniais.
             A fábrica entrou na Índia sob o controle da administração britânica. Alguns dos empresários capitalistas também vieram das castas mercantis. O grupo articulado da manufatura é substituído pela conexão entre o trabalhador principal e alguns poucos auxiliares. A distinção essencial, dizia Marx, é entre os operários que se ocupam efetivamente  com as máquinas-ferramentas (a eles se adicionam alguns operários para vigiar ou abastecer a máquina motriz) e meros operários subordinados (quase exclusivamente crianças) a esses operadores de máquinas. Mas na empresa capitalista só podiam acompanhar  as castas dos letrados na medida em que adquiriam a educação. Max Weber de forma complementar observa que o capitalismo moderno sem dúvida jamais teria se originado dos círculos dos ofícios totalmente tradicionalistas da Índia. O artesão hinduísta é, não obstante, notório pela sua capacidade de industriosidade extrema. É considerado como essencialmente mais industrioso comparativamente do que o artesão indiano, que é no sentido religioso de fé islâmica. No conjunto, a organização de casta hinduísta desenvolveu com frequência uma grande intensidade de trabalho e de acumulação de propriedade, dentro das antigas castas ocupacionais. A intensidade do trabalho adquiriu centralidade na medida em que predominou mais entre as castas artesanais do que as castas agrícolas antigas. Incidentalmente, os Kunbis do sul da Índia conseguem acumular riqueza e, na verdade essa acumulação de capital adquire formas modernas. A tragédia de Bhopal foi narrada em livro. Lançado mundialmente em 2007, Animal`s People, segundo romance do indiano Indra Sinha, escritor, novelista e tradutor anglo-indiano  foi finalista do Man Booker Prize (2007) e vence­dor do Commonwealth Writer`s Prize (2008), dois dos mais importantes prêmios literários reconhecidos de língua inglesa.
               Enfim, o papel decisivo de um estilo de vida na honra do grupo significa que os estamentos são os portadores específicos de todas as convenções. De qualquer modo que se manifeste, toda a estilização da vida se origina nos estamentos ou é pelo menos conservada pr eles. Apesar de sua grande diversidade, os princípios das convenções estamentais revelam certos traços culturais típicos, especialmente entre as camadas mais privilegiadas. Quanto ao efeito geral da ordem estamental, somente uma consequência pode ser apresentada, mas sua importância é grande: o impedimento do livre desenvolvimento do mercado ocorre primeiro para os bens que os estamentos subtraem diretamente da livre troca da monopolização a qual designa uma situação particular de concorrência imperfeita, em que uma única empresa detém o mercado de um determinado produto ou serviço conseguindo, portanto, influenciar o preço do bem comercializado. Essa monopolização pode ser efetuada seja legal ou convencionalmente. As diferenças entre classes e estamentos se superpõem com frequência. Da contradição entre a ordem estamental e a ordem econômica, do ponto de vista da análise sociológica, segue-se que na maioria dos casos de honras peculiares ao estamento abomina de forma absoluta aquilo que é essencial para o mercado: o regateio. A ação racional com relação a um valor é a crença consciente no valor - interpretável como ético, estético, religioso, absoluto de uma determinada forma de conduta.
As honras abominam o regateio entre os pares e ocasionalmente tornam tabu o regateio em geral para os membros de um estamento. Portanto, alguns estamentos e habitualmente os mais influentes, se estratificam de acordo com os princípios de seu consumo de bens, representados por estilos de vida especiais. A atividade intelectual criadora de grupos de pesquisadores é também um estamento, pois reivindica as honras sociais apenas em virtude do estilo de vida especial que pode determinar. Sem estes impulsos morais não seria possível compreender a ideia de vocação profissional, concepção que subjaz as figuras modernas do operário e do empresário. Os estamentos se colocam na ordem social, isto é, dentro da esfera de ação social da distribuição de honras. Dessas esferas, as classes e os estamentos influenciam-se mutuamente e á ordem jurídica, e são por sua vez influenciadas por ela. O conhecimento dessas regras representa um aprendizado técnico especial, a que se submetem esses funcionários legalmente. Envolve jurisprudência e, claro, a redução do cargo a regras profundamente arraigada à sua própria natureza. Os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação. Esse sistema oferece aos governados a possibilidade de recorrer de uma decisão no processo hierárquico de uma autoridade mediante  uma estrutura social típica do sistema feudal medieval.
Bibliografia geral consultada.
SEBAG, Lucien, L`Invention du Monde chez les Indiens Pueblos. Paris: François Máspero, 1971;  HIRANO, Sedi, Castas, Estamentos e Classes Sociais - Discussões Técnicas Preliminares. Dissertação de Mestrado. Departamento de Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 1972; WEBER, Max, Ensaios de Sociologia. Organização e Introdução de Hans Gerth e Charles Wright Mills. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982; cap. XVI – “Índia: O Brâmane e as Castas”; pp. 449-470; Idem, Economia y Sociedad. Esbozo de Sociologia Compreensiva. México: Fondo de Cultura Económica, 1992; DUMONT, Louis, Homo Hierarchicus. O Sistema de Castas e suas Implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992; BAYLY, Susan, Caste, Society and Politics in India from the Eighteenth Century to the Modern Age. The New Cambridge History of India. Cambridge University Press, 2001; MARKOVITS, Claude, A History of Modern India, 1480-1950. Nova Deli: Anthem Press, 2004; KUIPER, Kathleen, (ed.), Culture of India. Estados Unidos: Rosen Publishing Group, 2010; OLIVEIRA, Mirian Santos Ribeiro de, A Nação e seus Emigrantes: Análise do Discurso Nacionalista Hindu Contemporâneo sobre a Comunidade Hindu Ultramarina. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Departamento de Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2012; GOFFMANN, Erving, Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Editora Perpsectiva, 2015; DRÉZE, Jean; SEN, Amartya, Glória Incerta - A Índia e suas Contradições. Rio de Janeiro: Editora Companhia das Letras, 2015; CAVALCANTI, Ana Paula Rodrigues, Relações entre Preconceito Religioso, Preconceito Racial e Autoritarismo de Direita: Uma Análise Psicossocial. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Psicologia Social. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2016; CHAUDHURI, Amit, “Ants Among Elephants by Sujatha Didla Review - Life as un Untouchable in Modern India”. In: The Guardian, 2 de agosto de 2018; CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto,  “Apesar da Proibição, Castas ainda Dividem País”. In: https://internacional.estadao.com.br/07/08/2019; ALVES, Sabrina, O Corpo como Arena Político-Religiosa do Ayurveda no Século XXI: Existências Fluidas de Ser nem Homem, nem Mulher. Tese de doutorado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2019;  entre outros.

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