quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Política Partidária - Gabinete 24 & Metáfora do Veado no Senado.

                                                                                                      Ubiracy de Souza Braga

                                          Não existe dinheiro público, existe dinheiro dos pagadores de impostos”. Margaret Thatcher            


             
Na política brasileira o Senado Federal suprimiu o gabinete número 24 desde 2014. Assim como a caipirinha, o samba e o Carnaval estão em pé de igualdade, o jogo do bicho sem temor a erro é uma invenção genuinamente brasileira. No dia 13 de janeiro de 2019, uma reportagem do Fantástico, da Rede Globo de televisão, rememorou que a numeração da ala do Congresso com gabinetes de senadores “pula do número 23 para o número 25”. O número 24 é omitido. No jogo do bicho, 24 é o número que representa o veado. No Brasil, tanto o animal quanto o número são associados à questão homoerótica masculina (cf. Nolasco, 1983), e empregados de forma pejorativa, frequentemente jocosa. Assim como aconteceu com outros xingamentos associados a minorias, hoje muitas tendências em torno desse grupo se apropriam do termo, e tratam uns aos outros como veados de forma não pejorativa. É comum o uso da grafia viado. A carga negativa se mantém, no entanto, para grande parte da sociedade civil. Do ponto de vista analítico as metáforas possuem efeitos de poder para preencher as lacunas da linguagem, amplificam o debate nas sociedades democráticas, em torno do discurso político, mas também agem poderosamente no inconsciente freudiano.
Ainda em 2016, o presidente da Aliança Nacional LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, em uso socialmente desde 1990 , e agora com o acréscimo do “I” de “Intersexo” é o termo comummente usado para “designar uma variedade de condições em que uma pessoa nasce com uma anatomia reprodutiva ou sexual que não se encaixa na definição típica de sexo feminino ou masculino”. Toni Reis, denunciou em um artigo ao site “Congresso em Foco” a inexistência do gabinete de número 24, e pediu que a falta fosse corrigida. - “Eliminaram o número 24 por preconceito, estigma e discriminação?”. Apesar de o caso não ser novidade, o contexto político contribuiu para que a omissão repercutisse em redes sociais e na imprensa a partir da reportagem da Rede Globo. Dois pesos e duas medidas. Há quatro anos o Senado ratificou praticamente uma cena pública e política de preconceito social com o gabinete n° 24 que foi usado até o ano legislativo de 2014, pelo senador Eduardo Amorim (PSDB-SE). Ele trocou de gabinete e diz não ter ideia do que aconteceu. Como se as intrigas e picuinhas que ocorrem no cotidiano de Brasília não se tornassem públicas internacionalmente – Cinicamente o parlamentar responde: - “O meu gabinete foi entregue”. Escólio: Os gabinetes serão entregues pelo Departamento de Apoio Parlamentar, no edifício Anexo IV, térreo, a partir do dia da posse parlamentar.  
E afirma: - Eu troquei por causa da distância. Eu saí de lá e era 24. Eu não sei quem entrou depois”. O novo inquilino foi Dário Berger (MDB-SC), 62, cujo gabinete partiu o pedido de mudança do n° 24 para o número 26. O presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE) que assumiu o comando da Casa dois anos depois do “sumiço” do gabinete 24, se disse surpreso: - “Fui surpreendido, estou tomando conhecimento no dia de hoje. Eu sinceramente, não encontro justificativa para que a numeração não seja seguida. Isso não aconteceu na minha gestão. Se tivesse tomado conhecimento antes teria dito á diretoria para voltar ao número anterior”. O presidente do Congresso nacional naquela conjuntura, Renan Calheiros (MDB-AL) também diz que “nunca” soube da referida troca, e que esse tipo de coisa não é assunto que chegue à cúpula. O diretor-geral era Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, exercendo os cargos de Secretário-geral da Mesa do Senado e de Conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público. Confirmou ter “havido um pedido para mudança do número 24 para 26, mas disse não se lembrar de quem partiu o pedido”. 
                        

O indivíduo privatista é o mesmo que pensa ser justificada a existência do espaço público apenas na medida em que satisfaz os interesses dos indivíduos privados. O mesmo indivíduo que tolera, admite e recomenda a privatização da vida pública em que seus representantes aparentemente se constituam em modelos de probidade. Na esfera pública da cidadania comparativamente, não obstante, quase sempre confunde princípios políticos com metas econômicas e está disposto a abrir mão da aparente moralidade e pudor quando um representante demonstra ser um bom administrador. O mesmo que exige probidade moral e pública e desrespeita as regras mínimas da convivênciabilidade em nome da satisfação de interesses privados. A distorção entre o campo social e o político decorre da moderna concepção da sociedade, a qual encara a política como um espaço de regulação da esfera privada. Arendt defendia um conceito de pluralismo no âmbito político. Graças ao pluralismo, o potencial de uma liberdade e igualdade política seria gerado entre as pessoas.
O que significa o juízo? Primeiramente, organização e subsunção do individual e particular ao geral e universal, procedendo-se então a uma avaliação ordenada com a aplicação de parâmetros pelos quais se identifica o concreto e de acordo com decisões. Por trás de todos esses juízos há um prejulgamento, um preconceito. Somente o caso individual é julgado, não o próprio parâmetro ou a questão de ele ser ou não uma medida adequada do objeto que está sendo medido. Num dado momento, emitiu-se um juízo sobre o parâmetro, mas agora esse juízo foi adotado, tornando-se, por assim dizer, um meio para se emitirem futuros juízos. Mas juízo pode significar algo totalmente diferente e sempre significa de fato quando nos confrontamos com algo que nunca vimos e para o que não temos nenhum parâmetro à disposição. Esse juízo que não conhece parâmetro só pode recorrer à evidência do que está sendo julgado, e seu único pré-requisito é a faculdade de julgar, o que tem muito mais a ver com a capacidade de discernir do que com a capacidade de organizar e subordinar. Tais juízos sem parâmetros nos são bastante familiares quando se trata de questões de estética e gosto, que, como observou Immanuel Kant, não se podem discutir, mas de que se pode, seguramente, discordar e concordar. Na vida cotidiana, como sabemos isso se verifica “em face de uma situação desconhecida, que fulano ou beltrano fez um juízo correto ou equivocado”.
Melhor dizendo, em toda crise histórica, são os preconceitos os primeiros a se esboroar e deixar de ser confiáveis, ipso facto, é essa pretensão de universalidade que distingue muito claramente ideologia de preconceito (sempre parcial por natureza). A ideologia afirma peremptoriamente que não devemos mais nos fiar em preconceitos - declarados como literalmente inapropriados. A falta de padrões no mundo moderno - a impossibilidade de formar novos juízos sobre o que aconteceu e o que acontece todos os dias com base em padrões sólidos, reconhecidos por todos, e de subsumir esses eventos a princípios gerais bem conhecidos, assim como a dificuldade estreitamente associada, de se proverem princípios de ação para o que deve acontecer agora - tem sido frequentemente descrita como niilismo inerente à nossa época, como desvalorização de valores, uma espécie de crepúsculo dos deuses, uma catástrofe na ordem moral do mundo. Todas essas interpretações pressupõem tacitamente que só se pode esperar que os seres humanos tivessem juízos se tiverem parâmetros, que a faculdade de julgar não é, mais do que a habilidade de consignar casos individuais aos seus lugares corretos e adequados dentro de princípios gerais aplicáveis e sobre os quais estão todos de acordo. 
Escólio: Fazem parte da tabela do jogo 25 bichos, cada um correspondendo a quatro dezenas, somando 100 dezenas finais nos sorteios da loteria. O número do bicho é chamado de grupo. Para saber qual é o bicho (grupo), divide-se a dezena por 4 e se houver resto, aumenta-se 1 ao quociente. Ex.: 33 divididos por 4 é igual a 8, resta 1, logo o grupo do bicho é 9, que é “cobra”. O jogo do bicho foi criado pelo Barão João Batista Viana Drummond, carioca que viveu no final do século XIX, na cidade do Rio de Janeiro. O barão de Drummond era um empresário de grande prestígio na Corte, participava de vários empreendimentos e investimentos e era acionista da Cia Ferro Carril Vila Isabel. O primeiro bairro planejado da cidade do Rio de Janeiro foi Vila Isabel. No projeto de criação do bairro estava previsto a instalação de um parque e de um jardim zoológico, jardim esse que mais tarde seria o nascedouro do jogo de bicho.   
O então Comendador Drummond, conhecendo o projeto, solicitou, em 1884, permissão para instalar o jardim zoológico. Quatro anos depois, em julho de 1888, houve a inauguração oficial do empreendimento que se tornou um sucesso. Nesse mesmo ano, Drummond recebeu do Imperador Pedro II o título de Barão. Em 1890, o Barão, executando a segunda parte do projeto, ampliou as instalações do zoológico e criou um parque com plantas exóticas. Todavia, a situação financeira do zoológico, que já era difícil mesmo com a ajuda financeira recebida pela municipalidade, piorou com a criação do parque. O orçamento já não era suficiente para cobrir as despesas com a alimentação dos animais e a manutenção do parque. O Barão tentou solucionar o problema cobrando ingressos dos visitantes, mas essa medida não foi bem aceita e provocou um efeito contrário: os frequentadores do jardim zoológico desapareceram. O Barão recorreu, mais uma vez, à Intendência Municipal, visando obter licença para explorar jogos públicos lícitos nas dependências do zoológico, com a finalidade de trazer de volta o público visitante. A licença permitida “desde que não incluíssem os chamados jogos de azar, conforme estava previsto no Código Penal de 1890”. 
O mexicano Ismael Zevada, auxiliar do Barão, com o intuito de colaborar para a solução do problema mencionou o “jogo das flores” que existia em sua terra e que poderia ser adaptado para os “bichos”. A idéia etnograficamente foi analisada e posta em prática: foram pintados 25 quadros, cada quadro com um bicho, numerados a partir de 1. Antes de abrir o zoológico, o Barão escolhia um quadro e colocava-o em uma caixa que ficava estrategicamente a sua entrada. Em cada ingresso havia a figura de um dos vinte e cinco bichos. Às 15h, a caixa era aberta e aqueles que tivessem no ingresso o bicho sorteado, eram os ganhadores de um prêmio em dinheiro. O primeiro sorteio ocorreu num domingo, em 3 de julho de 1892. O bicho sorteado foi o avestruz. Nessa ocasião foram disponibilizados para o público, entre outros entretenimentos correlatos, porem o jogo do bicho foi o que obteve maior aceitação e mais repercussão na imprensa diária, mais do que a própria reinauguração do zoológico.
Nesta época foram abertos os chamados “bookmakers”, casas de apostas que vendiam “poules” (“pule”) das mais diversas apostas permitidas ou não, inclusive a do jogo do bicho, que passou a ter validade por quatro dias. Assim o apostador não precisava ir ao zoológico nem estar presente no momento do sorteio. Além dos bookmakers, o Barão espalhou pela cidade seus agentes para vender os bilhetes do bicho, sendo essa participação dos vendedores ambulantes importante para o sucesso do jogo entre os apostadores. Mesmo clandestino, sobrevive por mais de um século graças às relações entre bicheiros e apostadores. Geralmente, os postos de trabalho dos “apontadores” de jogo e seus “clientes” são pessoas da mesma vizinhança, que discutem juntos as apostas. O prêmio é pago em dia um requisito básico para manter a credibilidade do sorteio e os apontadores tradicionais sabem de memória o palpite de seus clientes.
Alguns apostadores protegem os bicheiros da polícia, escondendo-os em suas casas quando passa a fiscalização. Por causa da repressão, o resultado do bicho é divulgado de maneira disfarçada, para não chamar a atenção da polícia. Um dos costumes é anunciar os animais sorteados em classificados ou em rádios clandestinas. Em alguns bairros, para evitar que os apontadores sejam pegos com a prova do crime, os bicheiros pregam os resultados do sorteio em um lugar público. Cada apostador arranca uma folha com o bicho do dia e leva o seu “fruto” tranquilamente para casa. Para ser vendido nas ruas, o jogo do bicho passou por várias adaptações: a primeira foi vincular os bichos aos números, depois veio a divisão em grupos e dezenas. Em 1897, morre o Barão de Drummond, mas o jogo continua. Em 1899, foi promulgada a Lei 628 que instituiu a pena de um a três meses de prisão para os acusados da prática do jogo do bicho. A imprensa teve sua contribuição na legitimação do jogo do bicho. Nas primeiras décadas do século XX, jornais foram criados em função do jogo. Em 1903 “O Bicho”, o primeiro dedicado ao jogo, mais tarde surgiram o “Talismã” e o “Mascotte”.
Historicamente em 1915, o senador Érico Coelho apresentou um projeto de lei para legitimação do jogo do bicho, mas não foi aprovado. Segundo Magalhães (2006), o poder público responsável pela Capital Federal, jamais conseguiu definir uma estratégia efetiva para combater os chamados “bicheiros” ou deixar claro por que algumas loterias eram permitidas e outras não. Em 1941, o jogo do bicho é incluído na lei de Contravenções Penais. Cavalcanti (1995) afirma que depois de 1946, com a cassação de todas as licenças concedidas para funcionamento de casas de jogo no Brasil, o jogo do bicho se expandiu muito mais, acompanhando o crescimento de áreas periféricas. O bicheiro era conhecido pela honra à palavra empenhada, obtendo com isso a confiança e o respeito do apostador, que recebia ajuda pessoal e benfeitorias públicas em troca da sua lealdade. Dessa forma, o jogo do bicho, mesmo perseguido, passou a fazer parte do cotidiano, do folclore e da vida do povo brasileiro, já tendo sido motivo para discórdia e infelicidade; tristeza e alegria. Já foi tema para letra de música, roteiro de filmes, novela e enredo de escolas de samba. Foi também assunto para trabalhos acadêmicos, livros, artigos de revistas e manchetes de jornais. A sua história já foi várias vezes sufocada à margem da sociedade, mas continua presente na cultura popular. A loteria foi “batizada” de jogo - bilhetes começaram a ser vendidos não apenas no zoológico, mas em lojas pela cidade.
O jogo do bicho é semelhante a uma loteria federal, mas com algumas diferenças: uma delas é que o jogador pode apostar qualquer valor, que muitas vezes é bem acima de suas possibilidades. Quanto maior o valor apostado em uma sequência numérica (milhar, centena, dezena, etc.), maior será o prêmio em caso de acerto. Com essa flexibilidade de apostas, o jogador é livre para escolher pelo menor valor possível o seu número da sorte nas dez mil chances disponíveis em cada sorteio. Exemplo: um apostador pode jogar apenas R$ 1,00 em uma milhar no primeiro prêmio, reconhecido como “cabeça por ser a primeira milhar no topo da lista de resultados”. A repressão do Estado não demorou e autoridades criminalizaram a atividade nos anos 1890, pelo bem da segurança pública.
Vale lembrar que a nação é um produto cultural, político e social que surge na Europa a partir do fim do século XVIII e que se constitui efetivamente em uma “comunidade política imaginada”. Nesse processo de construção histórica, a relação entre o velho e o novo, o passado e o presente, a tradição e a modernidade é uma constante e se reveste de importância fundamental, pois, a nação é uma comunidade de sentimento que normalmente tende a produzir um Estado próprio, é preciso invocar antigas tradições (reais ou inventadas) como fundamento “natural” da identidade nacional que está sendo criada. Isso tende a obscurecer o caráter histórico e relativamente recente dos estados nacionais. Assim como o Estado-nação procura delimitar e zelar por suas fronteiras geopolíticas, ele também se empenha em demarcar suas fronteiras culturais, estabelecendo o que faz e o que não faz parte da nação. Através desse processo se constrói uma identidade nacional que procura dar uma imagem à comunidade abrangida por ela. Nesse sentido o processo de consolidação dos Estados-nações é extremamente recente. Mesmo em sociedades que atualmente parecem ser bem integradas. Mas há casos em que uma mesma sociedade é representada como se fosse dividido em duas grandes regiões antagônicas o que é recorrente para o Brasil. 
 No âmbito da historiografia Carlos Guilherme Mota observou que depois de 1967, “tornou-se possível o balanço da produção, a avaliação dos trabalhos de Gilberto Freyre – o que não devia ser nada fácil antes dessa época, pelo que se pode verificar no livro comemorativo dos vinte e cinco anos da Casa-Grande & Senzala”  (cf. Mota, 1975), tendo em vista o ecletismo entre ensaístas tais como: Astrojildo Pereira, Fernando de Azevedo, Jorge Amado, Antônio Cândido, Miguel Reale, Anísio Teixeira, Luís Viana Filho, Cavalcanti Proença, o que demonstra, por um lado, o estudo da trajetória e dos vários impactos sociais e políticos na apreensão da obra de Gilberto Freyre sobre os meios intelectuais representando a cristalização de uma ideologia com base no editorialismo, caracterizado com “grande poder de difusão”, e por outro, contém ambiguidades daquilo que se poderia denominar uma “geração de explicadores” da cultura brasileira representando por assim dizer, sociologicamente “uma espécie de caso-limite”.     
Metodologicamente Gilberto Freyre pode ser interpretado como historicista no sentido do approach de Wilhelm Dilthey quando propõe uma abordagem empática da realidade social, que lhe permitiu desenvolver uma interpretação pari passu histórica e sociológica. Melhor dizendo, a experiência imediata e “vivida na qualidade de realidade unitária” (“Erlebnis”) seria o meio a permitir a apreensão da realidade histórica e humana sob suas formas concreta e viva. Seu objetivo é alcançar a subjetividade, é apreender a vida em seu interior. Trata-se em verdade de uma interpretação de uma história política, psicológica, vitalista, dionisíaca e não intelectualista o que não é pouco. A interpretação de seus “tipos inconciliáveis” se faz como é sabido, pelo “accountability” contido nos símbolos &: das obras: “Casa Grande & Senzala”, “Sobrados & Mocambos”, “Ordem & progresso”. Ao formular tipos ideais se aproxima de Weber; ao interpretá-los, aproxima-se de Georg Simmel. Para compreender a interconexão dos tipos ideais, ele estudou  a vida cotidiana, um campo de pesquisa original inovador para a antropologia nascente.
       O antropólogo Freyre apresenta quatro facetas do Brasil do final do século XIX que ajudam a explicar a emergência e o interesse popular sobre o jogo do bicho: 1) População urbana crescente e excluída do mercado de trabalho; 2) Fluxo de imigrantes com redes familiares que incentivavam a participação no comércio; 3) Aumento na circulação de capital, motivada por fatores como a abolição da escravatura e a industrialização nascente; 4) Sistema judicial fraco na repressão criminal. Alguns articulistas confirmaram o grande número de visitantes inclusive autoridades, políticos e senhoras da alta sociedade carioca. Outros informavam qual o animal sorteado e as novas linhas de bondes criadas especialmente para facilitar o acesso ao Jardim Zoológico. Logo o zoológico transformou-se em um lugar de lazer bastante concorrido. Duas semanas depois do primeiro sorteio, o valor do prêmio já havia quadruplicado. Os compradores dos bilhetes do jogo de bicho eram tantos que por mais de uma vez houve conflitos no local e o Barão foi obrigado a chamar a polícia para garantir a ordem. O zoológico foi transformado em lugar praticado de jogatina, a situação virou um escândalo o que desagradava às autoridades. O Barão não poderia imaginar que estava inaugurando um dos jogos mais populares e polêmicos do Rio de Janeiro e do Brasil.
O animal veado tem como representação o número 24 no popular jogo do bicho. A explicação mais comum é que expressa forte apelo na linguagem do jogo do bicho  popularizado no Brasil. Primeiramente, não é correto dizer que a palavra seria escrita como “viado”, tendo sua origem na simples corruptela de “desviado”. O estigma de ser um desviado, além de uma agressão de gênero, é ridículo, ainda mais se considerarmos as opções vernaculares disponíveis na língua portuguesa.  O jogo do bicho é uma bolsa de apostas em números que representam animais. Foi criado em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, no bairro de Vila Isabel. A fase de intensa especulação financeira e jogatina na bolsa de valores nos primeiros anos da República brasileira causou grave crise ao comércio. Os problemas do jogo com a lei começaram apenas duas semanas após seu lançamento.
Assim como hoje, os chamados “jogos de azar” eram proibidos no Brasil do século XIX, e todo o tipo de sorteio deveria ser previamente aprovado pelas autoridades locais. Apesar de na época ter dado o sinal verde para a operação do Jogo do Bicho, logo a polícia do Rio de Janeiro se arrependeu de sua decisão, tendo considerado que o jogo havia saído do controle, como demonstra este informe público do jornal O Tempo, ainda em 1892: - Ao Dr. 2º Delegado dirigiu ontem o Dr. Chefe de Polícia o seguinte ofício: - “No empenho de procurar atrair concorrência de visitantes ao Jardim Zoológico, solicitou o seu diretor para certo recreio público licença, que lhe foi concedida pela polícia, em vista da feição disfarçadamente inocente que da simples primeira descrição do divertimento parecia se deduzir. Entretanto, posta em prática essa diversão, se verifica que tem ela o alcance de verdadeiro jogo, manifestamente proibido. Os bilhetes expostos à venda contêm a esperança aleatória de um prêmio em dinheiro, e o portador do bilhete somente ganha o prêmio, se tem a felicidade de acertar com o nome a espécie do animal que está erguido no alto de um mastro”.
Na interpretação da Lei brasileira esta diversão é prejudicial aos interesses dos encantos, que com a esperança enganadora de um incerto lucro se deixam ingenuamente seduzir. É precisamente um verdadeiro jogo de azar, porque a perda e o ganho dependem exclusivamente do acaso e da sorte. Neste momento começou a história de problemas do Jogo do Bicho com a lei, que foi marcada por idas e vindas, até a sua proibição definitiva, em 1941, quando foi promulgada a lei de proibição dos jogos de azar no Brasil. Apesar de sua popularidade e de ser tolerado por muitas autoridades, o jogo do bicho é uma contravenção no Brasil, de acordo com o artigo 58 da Lei de Contravenções Penais, Decreto-lei 3 688, de 3 de outubro de 1941. As pessoas que o exploram  de acordo com a malandragem são passíveis de prisão e multa e os apostadores são passíveis de multa
Para estimular as vendas, os comerciantes instituíram sorteios de brindes. Assim é que, querendo aumentar a frequência popular ao zoológico, o barão decidiu estipular um prêmio em dinheiro ao portador do bilhete de entrada que tivesse a figura do animal do dia, o qual era escolhido entre os 25 animais do zoológico e passava o dia inteiro encoberto com um pano. O pano somente era retirado no final do dia, revelando o animal. Posteriormente, os animais foram associados a séries numéricas da loteria e o jogo passou a ser praticado largamente fora do zoológico, a ponto de transformar a capital da República de 1889 a 1960 na “capital do jogo do bicho” (cf. Cavalcanti, 1995; Magalhães, 2006). O jogo do bicho continua a ser praticado em larga escala nas ruas das principais cidades do Brasil, mesmo sendo considerada, ideologicamente, uma prática social de contravenção pela legislação penal considerando um “jogo de azar”.
Cada bicho era representado por quatro números consecutivos compreendidos entre 00 e 99. Havia 25 bichos numerados de 01 até 25 por ordem alfabética. Os números de 00 a 99 correspondiam aos 25 bichos conforme uma progressão aritmética, calculando o próximo múltiplo de quatro. Por exemplo, o camelo (8) é 29-32, e a vaca (25), 97-00. Hoje, o bicho correspondendo a um número entre 0000 e 9999 é indicado pelos dois dígitos finais. Ao final do dia, os organizadores do jogo revelavam o nome do bicho vencedor e afixava o resultado num poste, o que até os dias de hoje continua tradicionalmente sendo feito. Historicamente o jogo do bicho permitia apostas de “simples moedas a tostões furados” numa época que a recessão tomava conta do Brasil.
A organização do jogo de bicho preserva uma hierarquia como a de atores, teatro e plateia: banqueiros, gerentes e apostadores. Nessa hierarquia, o “banqueiro” é quem banca a totalidade do jogo e quem paga a banca. O “gerente de banca” ou do ponto é quem repassa as apostas ao banqueiro e o prêmio ao vendedor. O vendedor é agregado ao gerente de banca e é quem escreve e intermedia o pagamento entre o apostador e o gerente. A banca é um lugar praticado e o ponto não necessitam de um lugar fixo para operar: seus funcionários são, frequentemente, encontrados nas ruas sentados em cadeiras ou caixas de frutas de madeira. Em outras regiões do Brasil, pode-se entrar em contato por telefone e um motoboy vem buscar o jogo em sua casa ou trabalho.
O jogo do bicho tem algumas regras que estipulam limites nas apostas: um exemplo é a “descarga” de alguns números muito apostados, como o número do túmulo do presidente-populista Getúlio Vargas, ou, de sincretismo religioso com o número do cavalo no dia de São Jorge. Para os organizadores, os números muito jogados são cotados a fim de evitar a “quebra da banca” tanto por parte das bancas de apostas como durante a apuração no sorteio. Pelo fato de ser uma atividade que envolve dinheiro não controlado pelo governo, o jogo tem atraído a atenção das autoridades corruptas e criou-se um complexo e eficiente sistema para a realização da venda de facilidades.

Em geral, seu animal ganha se os dois últimos números do milhar anunciado na Loteria Federal correspondem ao número do bicho. Por exemplo: se a loteria sorteou o número 3350, o vencedor é o galo (49 a 52). É possível também apostar no milhar (a chamada aposta "na cabeça"): escolher os quatro números e torcer para os quatro saírem no primeiro sorteio. É a jogada mais alta: costuma pagar R$ 4 mil por R$ 1 apostado. – “Os bicheiros tentam expandir seus negócios e oferecer algo que atraia os apostadores. Quando uma aposta dá certo em um lugar, provavelmente ela será copiada pelos vizinhos e testada em outros mercados”. A estrutura do jogo tem três níveis de hierarquia. Os bicheiros ou anotadores são a face mais visível do negócio: vendem as apostas com seus bloquinhos e carimbos. Os gerentes são contadores que cuidam dos bicheiros de determinada área, e o contato de fluxo de dinheiro aos banqueiros, reconhecidos como bicheiros, a elite financeira especulativa do jogo.
A ligação do jogo do bicho com o carnaval começou por volta dos anos 1930, através de Natal da Escola de Samba Portela. A escola foi fundada oficialmente como um bloco carnavalesco, chamado Conjunto Oswaldo Cruz, em 11 de abril de 1923, no bairro de Oswaldo Cruz do subúrbio carioca. Embora haja estudiosos que acreditam que a escola tenha sido fundada em 1926. Natal, desde cedo, esteve envolvido com o mundo do samba já que, no quintal de sua casa na esquina com a estrada do Portela no subúrbio de Oswaldo Cruz, realizavam-se rodas de samba. Nesse local, foi fundado o bloco carnavalesco “Vai como pode”, que se transformaria na Portela. Após perder um braço por causa de um acidente de trem, Natal perdeu o emprego e foi trabalhar como “apontador de bicho” na região de Turiaçu. Em pouco tempo, tornou-se gerente de banca e, depois, conseguiu montar a sua própria, vindo a se tornar banqueiro de jogo do bicho, controlando a área do subúrbio da zona norte carioca em torno do bairro de Madureira.
Com a morte de seu grande amigo Paulo da Portela, Natal, como forma de homenageá-lo, resolveu investir dinheiro na Portela para que ela pudesse se transformar em uma grande escola de samba, criando aí a figura do “bicheiro patrono”. Somado a suas práticas clientelistas com a população de Madureira já que, devido a sua infância pobre, Natal sempre procurava ajudar aos pobres através de doação as igrejas, a instituições de caridade, pagamento de enterros etc., sua ligação com o carnaval começou a adquirir prestígio, sendo até mesmo convidado pelo então ministro Negrão de Lima ao apresentar a Portela para a Duquesa de Kent no Palácio Itamaraty em 1959. Como forma de se legitimar perante a sociedade, os demais banqueiros de jogo do bicho passaram a seguir o exemplo de Natal, vinculando-se às escolas de samba de suas respectivas áreas de atuação, o que também seria usado, segundo algumas investigações policiais, “como determinada forma de lavagem de dinheiro da contravenção”. Desde 2014, tramita no Senado o Projeto de Lei n° 186, que dispõe sobre a exploração de jogos de azar no Brasil, incluindo o jogo do bicho. O tema esta sendo analisado pelos senadores e debatido publicamente junto à chamada sociedade civil organizada.  
Bibliografia geral consultada.

BARROS, Hugo Laércio, O Fabuloso Império do Jogo do Bicho. Rio de Janeiro: Editora e Gráfica Rosaly, 1957; ABREU, Waldyr, O Submundo da Prostituição, Vadiagem e Jogo do Bicho: Aspectos Sociais, Jurídicos e Psicológicos. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1968; PRICE, Derek J. de Solla, O Desenvolvimento da Ciência: Análise Histórica, Filosófica, Sociológica e Econômica. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1976; NEGRI, Antonio, Il Dominio e il Sabottagio Sul Metodo Marxista della Transformazione Sociale. Milan: Multhipla Edizione, 1979; NOLASCO, Sócrates, O Mito da Masculinidade. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1983; SOARES, Simone Simões Ferreira, Jogo do Bicho. A Saga de um Fato Social Brasileiro. Tese de Doutorado em Antropologia. Brasília: Universidade de Brasília, 1992; CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro, O Mecenato do Jogo do Bicho no Carnaval Carioca. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995; MATTA, Roberto da & SOÁREZ, Elena, Águias, Burros e Borboletas: Um Estudo Antropológico do Jogo do Bicho. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997; THOMPSON, Edward Palmer, Costumes em Comum. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998; MAGALHÃES, Felipe Santos, Ganhou, Leva, Só Vale o Que Está Escrito: Experiência de Bicheiros na Cidade do Rio de Janeiro: 1890-1960. Tese de Doutorado. Departamento de História. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005; CHAZKEL, Amy, “Beyond Law and Order: The Originis of the Jogo do Bicho in Republican Rio de Janeiro”. In: Journal of Latin American Studies, volume 39, n° 4, 2007; pp. 535-565; CECCHI, Ana, “Policía y Juego. La Policía en Perspectiva Histórica: Argentina y Brasil”. In: Anais. Buenos Aires, 2008; pp. 01-22; LABRONICI, Rômulo Bulgarelli, Para Todos Vale o Escrito: Uma Etnografia do Jogo do Bicho. Dissertação de Mestrado. Departamento de Antropologia. Universidade Federal Fluminense, 2012; FÁBIO, André Cabette, “O que a ausência do gabinete 24 revela sobre o preconceito”. In: https://www.nexojornal.com.br/2019/01/21; entre outros.  

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