quarta-feira, 9 de março de 2016

Naná Vasconcelos – Mito & Bricoleur da Percussão Corporal.

                                             Ubiracy de Souza Braga

 Naná usava muita percussão corporal, e isso pros gringos era uma coisa que não existia na década de 1970”. Hoto Júnior
    

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento técnico de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter o domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas ara que operem como se quer, com as técnicas segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis.  A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela associa o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e dela a relação de sujeição estrita.

O corpo, notoriamente, percorre a história da ciência e da filosofia. De Platão a Bergson, passando por Descartes, Espinosa, Merleau-Ponty, Freud, Marx, Nietzsche, Weber e Foucault, a definição de corpo demonstra um puzzle. Quase todos reconhecem a profusão da visão dualista de Descartes, que define o corpo como uma substância extensa em oposição à substância pensante. Podemos perceber que seguindo este modo de compreensão, sobretudo com o advento da modernidade, o corpo foi facilmente associado a uma máquina. O corpo foi pensado como um mecanismo elaborado por determinados princípios que alimentam as engrenagens desta máquina promovendo o seu bom funcionamento. Isto quer dizer que através dos exercícios de abstinência e domínio que constituem a ascese necessária, o lugar atribuído ao conhecimento de si torna-se mais importante: a tarefa de se pôr à prova, de se examinar, de controlar-se numa série de exercícios bem definidos, coloca a questão da verdade – da verdade do que se é, do que se faz e do que é capaz de fazer na constituição do sujeito moral. O ponto de chegada dessa elaboração é na e pela soberania do indivíduo sobre si mesmo.

Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. Entendida como consumo cultural, a prática do culto ao corpo situa-se como preocupação geral de mobilidade social, que perpassa a estratificação de classes sociais e faixas etárias, apoiada num discurso clínico difuso que se refere tanto a questão estética, quanto a preocupação alimentar com a saúde. Nas sociedades contemporâneas há uma crescente apropriação do corpo, com a dieta alimentar e o consumo excessivo de cosméticos, impulsionados pelo processo de massificação da propaganda/consumo a desde o desenvolvimento econômico dos anos 1980, onde o corpo ganha mais espaço, principalmente nos meios midiáticos. As fábricas de imagens estéticas do vencedor no cinema, televisão, publicidade, revistas etc., têm contribuído para isso. Ipso facto, nos leva a pensar que a imagem da eterna “fonte de juventude”, associada ao corpo perfeito ideal, ao sucesso na educação, no trabalho e na vida amorosa atravessa as etnias e classes sociais de maneiras diferentes em diversos estilos de vida.

            Para compreendermos a relação entre mito e música, em que Claude Lévi-Strauss desenvolve na parte inicial de Le Cru et le Cuit e também na parte final de L’Homme Nu (1971), na verdade, só ocorre quando o pensamento mitológico passou para segundo plano no pensamento ocidental da Renascença e do século XVIII, em que começaram a aparecer as primeiras novelas, em vez de histórias ainda elaboradas segundo o modelo da mitologia. Foi precisamente por essa altura que testemunhamos o aparecimento dos grandes estilos musicais, característicos do século XVII e, principalmente, dos séculos XVIII e XIX. Mais do que isso, o tema que deu origem à maior parte dos mal-entendidos, seja no mundo de língua inglesa, mas também em França, representado na ideia de que não havia uma única relação, mas dois tipos de relação – uma de similaridade e outra de contiguidade, possível para compreender um mito como uma sequência contínua. Fundamento da verdade não é, então, o mundo “material empírico”, mas o “mundo do pensamento”, que apreende a estrutura inteligível do real de análise. O espírito humano é compreendido como coextensivo ao mundo em que as leis da lógica exprimem as leis que estruturam a realidade.
Há cerca de duzentos anos, a ideia de que a verdade era produzida, e não descoberta começou a tomar conta do imaginário individual (o sonho) e coletivo (os mitos, os ritos, os símbolos) europeu. O precedente estabelecido pelos românticos conferiu a seu pleito uma plausibilidade inicial. O papel efetivo de romances, poemas, peças teatrais, quadros, estátuas e prédios no movimento social dos últimos 150 anos deu-lhe uma plausibilidade ainda maior, obtendo legitimidade, já que as ideias adquirem  força na história. Chamado de “el señor percusión” na Argentina e, reconhecido como “world`s most famous virtuoso of the berimbau” nos Estados Unidos da América, o pernambucano Juvenal de Holanda “Naná” Vasconcelos, tocou no Rio de Janeiro com Milton Nascimento no fim dos anos 1960 e, se apresentou em São Paulo com Geraldo Vandré - no III Festival Internacional da Canção, quando surgiram os “Especiais do Festival de Música Popular Brasileira”, pela TV Record, até o final da década de 1980, a televisão brasileira foi marcada pelo sucesso dos espetáculos transmitidos internacionalmente. Na década de 1970, Naná Vasconcelos ainda acompanhou jazzistas como Egberto Gismonti e Pat Metheny, entre outros, além de formar o grupo de jazz Codona, com o qual lançou 3 álbuns. Naná tem uma extensa carreira no exterior: atuou como percussionista ao lado de diversos e talentosos artistas representados por singularmente por B. B. King, Jean-Luc Ponty, David Byrne, Jon Hassell, Egberto Gismonti, Pat Metheny, Evelyn Glennie e Jan Garbarek.           

Formou entre os anos de 1978 e 1982, ao lado de Don Cherry e Collin Walcott, o grupo de jazz Codona. Em 1981, tocou no Woodstock Jazz Festival, realizado em 1981 em Woodstock, Nova York em comemoração ao 10º aniversário do Creative Music Studio. Em 1998, contribuiu com a música “Luz de Candeeiro” para o álbum “Onda Sonora: Red Hot + Lisbon”, compilação beneficente em prol do combate à AIDS, produzida pela Red Hot Organization, entidade internacional, sem fins lucrativos, dedicada ao combate à Aids através da cultura pop. No dia 9 de dezembro de 2015, Naná Vasconcelos recebeu o título de Doutor Honoris Causa na cidade de Recife junto à Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRuPE). E, por oito anos consecutivos (1983-1990), o prêmio de “Melhor Percussionista do Ano” da conceituada revista Down Beat, dedicada ao jazz. Seu primeiro número foi lançado em 1935, em Chicago. O seu nome deriva da expressão musical downbeat, também interpretado como ruído de “uma batida”. A Down Beat publica os resultados das enquetes anuais realizadas entre os seus leitores e críticos sobre uma grande variedade de categorias musicais. A Down Beat Jazz Hall of Fame inclui os vencedores das pesquisas feitas tanto entre os críticos como entre os leitores. Os resultados da enquete entre os leitores são publicados em dezembro e dentre os críticos em agosto; é considerada a “bíblia do jazz”. Em 2013, o músico fez a trilha sonora: “O Menino e o Mundo”, quando disputou o Óscar de melhor filme de animação em 2016.
       Esta é a razão por que devemos estar atentos e conscientes de que se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo de jornal, ou seja linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito. Isto porque, metodologicamente, seguindo a trilha aberta por Lévi-Strauss (1964; 1976; 1985; 1989) temos de apreendê-lo como uma totalidade e descobrir que o significado básico do mito não está ligado à sequência em que ocorrem os acontecimentos. Mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos distintos na história. Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página inteira. Melhor dizendo, não só temos de apreedê-la da esquerda para a direita, mas simultaneamente, na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber cada página como uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral. Escrita frase por frase, é que o podemos entender e descrever como uma totalidade e extrair o seu significado.            
       O objetivo de Claude Lévi-Strauss foi permanentemente o da consolidação de uma ciência social com um grau de objetividade e rigor presente nas ciências em geral. Para isso, seu programa estruturalista se fundamentava sob uma concepção metodológica interdisciplinar, sendo que a linguística se transformou em uma das principais disciplinas que inspiraram o estruturalismo lévi-straussiano. Sob a influência do linguista Roman Jakobson, de quem se torna colega nos Estados Unidos da América (EUA) nos anos 1940, e da obra de Ferdinand de Saussure, Lévi-Strauss concebe a idéia de que tanto na etnologia quanto na linguística, não é a análise comparativa que fundamenta a generalização, mas sim o contrário, uma vez que a atividade inconsciente do espírito é a de impor formas a um conteúdo, formas estas através de dimensões iguais para todos os espíritos. Por isso, seu objetivo principal através de um meticuloso exercício interpretativo é o de atingir a estrutura inconsciente, através de um encontro entre o método etnológico e o método linguístico. Não por acaso, para o autor a linguística é, dentre as ciências sociais, a que alcançou maiores progressos, isto porque esta ciência se preocupa em atingir a estrutura inconsciente (a da linguagem) e, toma como base da análise a relação entre os termos, além de introduzir a noção de sistema e de buscar descobrir leis gerais através de um processo cognitivo de indução.           
 
Naná Vasconcelos recebeu, na quarta-feira, dia 9/12/2015, o título de doutor honoris causa da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), localizada no bairro de Dois Irmãos, Zona Norte do Recife. O título foi concedido durante solenidade no salão nobre da universidade. Com o título, o doutor honoris causa recebe o mesmo tratamento que daquelas pessoas que fizeram tradicionalmente doutorado acadêmico. A iniciativa de entregar o título a Naná, considerado um dos grandes nomes da cultura pernambucana, brasileira e mundial, foi do Núcleo de Estudos Afro Brasileiros (Neab/UFRPE). Compareceram à solenidade amigos e parentes do artista, além da Ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, Nilma Lino Gomes. Nascido no dia 2 de agosto de 1944, em Recife, Naná Vasconcelos é responsável por unir três continentes: Europa, África e América do Sul, com sua música através do berimbau. Ganhou 8 prêmios Grammy e, como vimos, menção da revista “Down Beat”, e outras notáveis publicações especializadas.
Não há na música e percussão brasileira trajetória igual. Naná Vasconcelos é dos poucos artistas brasileiros que subiu dialeticamente nos palcos do mundo quando não brilha num papel de relevo é porque está desempenhando o papel principal. Quando partiu para os mais famosos palcos da Europa e dos Estados Unidos da América (EUA), Naná já havia redesenhado, na falta de melhor expressão, com a mediação complexa entre cores vibrantes o papel e singularidade instrumental do “berimbau” na música popular mundial brasileira. O berimbau é um elemento fundamental na capoeira, sendo reverenciado pelos capoeiristas antes de iniciarem um jogo. Antropologicamente alguns praticantes o consideram um instrumento sagrado. Ele comanda a roda de capoeira, a jinga do corpo, dita o ritmo e o estilo de jogo. São dados nomes às variações de toques mais conhecidas, e quando se toca repetidamente um mesmo toque, diz-se que está jogando a capoeira daquele estilo. As variações mais comuns são “Angola” e “São Bento Grande”. Na capoeira, até três berimbaus podem ser tocados conjuntamente, cada um com uma função técnica mais ou menos definida.
Esteticamente o berimbau (Brasil) ou “hungo” (Angola) é um instrumento de corda de origem angolana, também conhecido como “berimbau de peito”, em Portugal, ou como “hungu” em Angola e em grande parte do continente africano. Em Angola, também é conhecido por “m`bolumbumba” e é utilizado entre os quimbundos, “ovambos”, “nyanekas”, “humbis” e “khoisan”. Este instrumento foi levado pelos escravos angolanos para o Brasil, onde é utilizado para acompanhar uma dança/luta acrobática chamada capoeira. No sul de Moçambique, tem o nome de “xitende”. O instrumento é internacionalmente conhecido por ser tema de uma canção popular de Baden Powell, grande violonista brasileiro. A letra da música foi escrita por Vinícius de Moraes. Considerado um dos maiores percussionistas do planeta, Naná Vasconcelos especializou-se em instrumentos brasileiros, em especial o berimbau, inclusive expandindo a sua técnica. Preservado na Bahia até o presente, o “berimbau” sempre foi um souvenir típico do Estado, vendido aos turistas muito mais como adorno que como instrumento - colorido e enfeitado, bem diferente daquele que os capoeiristas utilizam.
Naná, que aos 12 anos tocava profissionalmente em bares e clubes noturnos (onde lhe exigiam autorização judicial), ao lado do pai, aprendeu a tocar sozinho, usando as panelas de casa, ainda na infância. Não frequentou aulas de música, não ingressou na faculdade. Em entrevista concedida ao “Viver”, ele afirmou: - “Quando você aprende teoria musical por livros, precisa sempre consultar os textos. Quando você aprende com o corpo, é como andar de bicicleta. Seu corpo se lembra”. Em 2015, ele passou quase um mês internado para tratar do câncer no pulmão esquerdo, no mesmo centro médico onde veio a falecer. Um de seus últimos projetos foi o “Café no bule”, em parceria com Zeca Baleiro e Paulo Lepetit. Compostas a distância, por telefone e e-mail, e em encontros em São Paulo, as 10 faixas mesclam referências de vários ritmos, como jazz, afoxé, samba, maracatu e jazz. Entre elas, três vinhetas, espécie de “gole d’água ou de vinho”, ideia conspícua de Naná Vasconcelos, que gostava de brincar com construções onomatopeicas dentre a realidade que a mesma representa. A palavra tenta imitar, pois, o som natural da coisa significada. Traduz ruídos, gritos, a linguagem sonora dos animais, o som de máquinas, a voz humana, expressão de alguns sentimentos como a dor, o riso, o barulho que acompanha os fenômenos da natureza, instrumentos musicais, etc.
 
O governador pernambucano Paulo Câmara decretou luto oficial de três dias no Estado. - “Pernambuco acordou triste. O silêncio causado pelo desaparecimento de Naná Vasconcelos em nada combina com a força da sua música, dos ritmos brasileiros que ele, como poucos, conseguiu levar a todos os continentes. Naná era um gênio, um autodidata que com sua percussão inventiva e contagiante conquistou as ruas, os teatros, as academias. Meus sentimentos e a minha solidariedade para com os seus familiares”, diz o documento assinado pelo político. O prefeito do Recife, Geraldo Júlio, também lamentou o falecimento do mestre Naná Vasconcelos, homenageado do Carnaval do Recife (2013) e lembrou que, por 15 anos, o percussionista fez a abertura oficial da folia do Recife. Nas redes sociais, amigos e artistas de Naná Vasconcelos prestaram as últimas homenagens, incluindo o rapper Emicida, que colaborou com Naná na trilha da animação “O menino e o mundo”, e Gilberto Gil, que publicou uma foto antiga dos dois juntos. Eleito oito vezes o melhor percussionista do mundo pela revista americana Down Beat(votação feita pelos críticos musicais da revista) e ganhador de oito prêmios Grammy (brasileiro com mais prêmio Grammy), era considerado uma autoridade mundial em percussão. Dotado de uma curiosidade intensa, indo da música erudita do brasileiro Villa-Lobos ao roqueiro Jimi Hendrix, Naná Vasconcelos aprendeu a tocar praticamente todos os instrumentos de percussão, embora nos anos 1960 tenha se especializado no berimbau.
Bibliografia geral consultada:
LÉVI-STRAUSS, Claude, O Cru e o Cozido (Mitológicas I). São Paulo: Editora Brasiliense, 1964;  Idem, “O Descobrimento da Representação nas Artes da Ásia e da América”. In: Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Editor Tempo Brasileiro, 1985; Idem, Mito e Significado. Lisboa: Edições 70, 1989; BACHMANN, Marie Laurie, La Rítmica Jacques-Dalcroze: Una Educación por la Música y para la Música. Madrid: Ediciones Pirámide, 1998;   ALMEIDA, Jorge, Ensino e Aprendizagem dos Alabês: Uma Experiência nos Terreiros Ilê Axé Oxumarê e Zoogodô Bogum Malê Rundô. Tese de Doutorado em Música. Salvador: Universidade Federal da Bahia,  2009; DI LUCA, Thiago, O Desenvolvimento de Competências Musicais a partir de Práticas Corporais e Criativas no Fazer Música em Grupo. Novo Hamburgo: Feevale, 2011; BOZZO JR., Carlos, “De como Juvenal se Tornou o Fenômeno Naná Vasconcelos”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/05/11; DEMENECK, Ben-Hur, “Naná Vasconcelos - O Berimbau Global”. Disponível em: Revista Internacional de Folkcomunicação. Volume 11, nº 22, 2013; SOUZA FILHO, Florival José de, Candomblé na Cidade de Aracaju: Território, Espaço Urbano e Poder Público. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Núcelo de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, 2013; CRUZ, Norval Batista, Corpo, Ancestralidade, Oralidade e Educação no Ile Aiê Omo Tifê: O Corpo de Xangô. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira. Faculdade de Educação. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2013; AMORIM, Roberto Ricardo Santos de, Batucadeiros: Educação Musical por Meio da Percussão Corporal. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Brasília: Universidade de Brasília, 2016; CHAGAS, Paulo Henrique Barbosa Souza, O Berimbau de Naná Vasconcelos na Música Contemporânea. Dissertação de Mestrado. Departamento de Música. Universidade de Évora, 2016; entre outros.   
______________
* Sociólogo (UFF), Cientista político (UFRJ) e Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).

sexta-feira, 4 de março de 2016

Reservas de Vagas - O Puzzle das Cotas Raciais no Brasil.

Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga

Não parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico”. Rosa Maria Pires Weber



            Atualmente, várias universidades oferecem a reserva de vagas como meio de acesso facilitado para alguns grupos de candidatos. As também chamadas cotas são carteiras destinadas a determinados segmentos sociais definidos pela instituição de ensino. O conceito de cotas como ação afirmativa surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos. No Brasil, o sistema demorou a chegar, as reservas de vagas surgiram com a Constituição Brasileira de 1988, garantindo um percentual dos cargos e empregos públicos aos portadores de deficiência física. Nas universidades, a adoção de reserva de vagas começou no ano 2000, com a aprovação de uma Lei Estadual no Rio de Janeiro, que garantia a reserva de 50% das carteiras para estudantes das redes públicas de ensino. Mas,  a lei só foi aplicada em 2004, no vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Em geral, o sistema favorece alunos regulares de escolas públicas, pessoas negras ou de etnia indígena, com deficiência física ou necessidades de educação especial. Com a Reforma Universitária, a maioria das Universidades Federais adotou a política de reserva de vagas. No último levantamento, 51% das universidades estaduais e 42% das federais, possuem sistemas de cotas. 
           A Lei de Cotas nas universidades completa três anos. Mas há algo mais a comemorar. As metas da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, têm sido atingidas antes mesmo do previsto pelas 128 instituições federais de ensino que participam do sistema. A lei reserva no mínimo 50% das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas, que são preenchidas por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à presença desses grupos na população total da unidade da Federação onde fica a instituição. Em 2013, o percentual de vagas para cotistas foi de 33%, índice que aumentou para 40% em 2014. Para se ter uma ideia do avanço, a meta de atingir 50% está prevista para 2016. Do percentual de 2013, os negros ficaram com 17,25%. O número subiu para 21,51% em 2014. De acordo com projeção da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a medida já abriu aproximadamente 150 mil vagas para negros. 
           A norma também garante que, das vagas reservadas a escolas públicas, metade será destinada a estudantes de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo. A medida é resultado de uma longa mobilização dos movimentos sociais para ampliar o acesso da população negra ao ensino superior. Os números demonstram o bom andamento da política de inclusão. Além das cotas, os estudantes também têm acesso a outros instrumentos oferecidos pelo Governo Federal, como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (ProUni), que auxiliam no ingresso e na permanência em instituições privadas de ensino superior. O Ministério de Educação e Cultura e a SEPPIR discutem uma política de cotas como tem ocorrido para a pós-graduação, seguindo o exemplo de experiências exitosas, como a instituição de cotas na pós-graduação criada pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
           As chamadas “cotas raciais” representam a reserva de vagas em instituições de nível superior públicas ou privadas para grupos específicos classificados por etnia, na maioria das vezes, negros e indígenas. Surgida nos Estados Unidos da América (EUA) na década de 1960, as cotas raciais são consideradas, pelo conceito original, antropologicamente “uma forma de ação afirmativa, algo para reverter o racismo histórico contra determinadas classes étnicas”. Apesar de muitos considerarem as cotas como “um sistema de inclusão social”, existem controvérsias quanto às suas consequências e constitucionalidade em muitos países. A validade de tais reservas para estudantes negros no Brasil foi votada pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. O STF decidiu por unanimidade que as cotas são constitucionais. Diz respeito à Lei 10.558/2002, conhecida como “Lei de Cotas”, que “Cria o Programa Diversidade na Universidade, e dá outras providências”. A revista The Economist cita dados estatísticos de 2010, segundo os quais “apenas um décimo das cerca de [aproximadamente] 2,4 mil universidades no Brasil são públicas e três quartos são privadas e com fins lucrativos”.
            A Lei de Cotas determina o mínimo de aplicação das vagas, mas as universidades federais têm autonomia para, por meio de políticas específicas de ações afirmativas, instituir reservas de vagas suplementares. O MEC oferecerá aos reitores das universidades federais planilha demonstrativa com as fórmulas para cálculo de implementação da Lei de Cotas. De acordo com texto do decreto, sempre que a aplicação dos percentuais para a apuração da reserva de vagas gerar um resultado com decimais, este será arredondado para o número inteiro imediatamente superior. O decreto ainda institui um comitê de acompanhamento e avaliação das reservas de vagas nas instituições federais de educação superior e de ensino técnico de nível médio. O grupo será composto por dois representantes do MEC, dois representantes da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, além de um membro da Fundação Nacional do Índio. Poderão ser convidados também representantes de movimentos sociais. De acordo com o ministro Mercadante, o MEC ainda está articulando com os reitores a política de acolhimento dos alunos cotistas, que deverá valer a partir de 2013. Um dos debates é em torno da política de tutoria e nivelamento, aplicada atualmente em algumas universidades que mantêm sistema de cotas.


 

     A Universidade do Estado do Rio de Janeiro é uma das maiores e mais prestigiadas universidades do Rio de Janeiro e do Brasil. A universidade está dentre uma das 35 melhores da América Latina segundo o “QS World University Rankings”, de 2013. Tem sua origem na  Universidade do Distrito Federal, com a fusão de quatro faculdades fundadoras: como a Faculdade de Ciências Jurídicas, a futura Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Faculdade de Ciências Econômicas e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Seu primeiro reitor, Rollando Monteiro, um dos fundadores da Faculdade de Ciências Médicas, tomou posse em 15 de fevereiro de 1952. Após a mudança da capital para Brasília, seu nome passou a ser Universidade do Estado da Guanabara - UEG. Em 1975, com a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro, passou a ter a denominação atual. Criada a partir da fusão da Faculdade de Ciências Econômicas do Rio de Janeiro, da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, da Faculdade de Filosofia do Instituto La-Fayette e da Faculdade de Ciências Médicas, a Universidade cresceu, incorporando e criando novas unidades com o passar dos anos. Às faculdades fundadoras uniram-se instituições como a Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI), o Hospital Geral Pedro Ernesto (HUPE), a Escola de Enfermagem Raquel Haddock Lobo, entre outras. Além disso, novas unidades foram criadas para atender às demandas da Universidade e da comunidade, como o Instituto de Aplicação (CAP) e a Editora da UERJ (EDUERJ), entre outros. Nesses sessenta anos de história, a Universidade cresceu em tamanho, estrutura e importância nos cenários regional, nacional e internacional. O campus Francisco Negrão de Lima, no bairro Maracanã, zona norte do Rio de Janeiro, foi erguido no local da antiga Favela do Esqueleto, reconhecida por esse nome, pois lá existia a estrutura abandonada da construção de um hospital público que, após sua conclusão, passou a ser o Pavilhão Haroldo Lisboa da Cunha.

             O campus foi oficialmente inaugurado em 1976 e possui atualmente mais de 160 000 metros quadrados de área construída, 292 salas de aula, 12 bibliotecas, 24 auditórios e 111 laboratórios distribuídos entre o pavilhão João Lyra Filho e o pavilhão Haroldo Lisboa da Cunha. O campus no Maracanã também abriga importantes espaços, enquanto lugares praticados, voltados para atividades artísticas e culturais, como o teatro Odylo Costa Filho - o segundo maior teatro do Rio de Janeiro, a galeria Cândido Portinari e a Concha Acústica. A universidade possui um Colégio de Aplicação tradicional, instituição de ensino fundamental e médio, que obteve, recentemente, destaque no Exame Nacional do Ensino Médio. A 200 metros do campus, em Vila Isabel, está localizado o Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), unidade de saúde de alta complexidade vinculada à UERJ, sendo referência em Pediatria, Urologia, Reumatologia, Dermatologia, Medicina de Família e Comunidade, Psiquiatria e Doenças Infectoparasitárias. Neste terreno está sediada a Faculdade de Ciências Médicas (FCM). As faculdades de Enfermagem e Odontologia também sediadas em Vila Isabel, próximas ao Hospital Universitário Pedro Ernesto.
             Vanessa Daudt foi aprovada como “cotista” na UERJ após se declarar “negra” ou “índia” no vestibular de 2013. Seu principal campus é o Francisco Negrão de Lima, que está localizado no bairro do Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro. A universidade conta ainda com os campi de Duque de Caxias, Ilha Grande, Nova Friburgo, Resende, Teresópolis e São Gonçalo. Os cursos de Medicina e Direito da Universidade figuram entre os melhores do país, segundo o ranking do “Exame Nacional de Desempenho de Estudantes”, publicado em 2007 e dados referentes ao número de aprovações no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, respectivamente, juntamente com o de Desenho Industrial. Os cursos de Engenharia, Geografia, Jornalismo, Letras e Economia também são referência no país, segundo publicação especializada. Sua Faculdade de Direito também já formou egrégios nomes como Ricardo Lira, Luiz Fux, Otávio Leite, Sérgio Campinho, Wadih Damous e Luís Roberto Barroso. Em um recente ranking elaborado pelo elitista jornal Folha de São Paulo, a universidade foi considerada a segunda melhor universidade do Estado do Rio de Janeiro e a décima primeira do Brasil.
           Para o que nos interessa objeto de reflexão sociológica, como cotista, Vanessa Daudt disputou 16 vagas com 34 candidatos - 2,19% interessados em cada cadeira. Na seleção normal, o processo seria bem mais apertado: teria que competir no âmbito do processo seletivo com 515 vestibulandos por 44 matrículas. O caso de Vanessa Daudt que foi aprovada como “cotista” na UERJ após se declarar “negra” ou “índia” no vestibular de 2013 é um dos mais de 60 casos sobre as mesas dos promotores de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Desde 2007, denúncias anônimas e dos próprios estudantes avolumam-se em um inquérito de mais de 3.000 páginas dedicado a descobrir se o sistema de cotas na UERJ, que toma previamente 45% das vagas da instituição, “é usado como atalho ilegal para estudantes que se aproveitam das fragilidades da lei estadual 5.346 – a que dispõe sobre o sistema de cotas nas universidades estaduais do Rio”. Como é sabido por todos os candidatos, basta declarar-se negro ou índio e apresentar comprovantes de baixa renda para ser avaliado como cotista, com absurdas vantagens sobre os demais concorrentes. Apesar da abundância de denúncias e de a lei determinar que “cabe à universidade criar mecanismos de combate à fraude”, a direção da UERJ não está preocupada com os “buracos” em seu sistema.
     Lei 5.346/08: “Lei Estadual sobre a Reserva de Vagas”. Art. 1º - Fica instituído, por dez anos, o sistema de cotas para ingresso nas universidades estaduais, adotado com a finalidade de assegurar seleção e classificação final nos exames vestibulares aos seguintes estudantes, desde que carentes: I - negros; II - indígenas; III - alunos da rede pública de ensino; IV - pessoas portadoras de deficiência, nos termos da legislação em vigor; V - filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço. § 1º Por estudante carente entende-se como sendo aquele assim definido pela universidade pública estadual, que deverá levar em consideração o nível socioeconômico do candidato e disciplinar como se fará a prova dessa condição, valendo-se, para tanto, dos indicadores socioeconômicos utilizados por órgãos públicos oficiais.
     § 2º Por aluno oriundo da rede pública de ensino entende-se aquele que tenha cursado integralmente todas as séries do 2º ciclo do ensino fundamental e do ensino médio em escolas públicas de todo território nacional. § 3º O edital do processo de seleção, atendido ao princípio da igualdade, estabelecerá as minorias étnicas e as pessoas portadoras de deficiência beneficiadas pelo sistema de cotas, admitida a adoção do sistema de autodeclararão para negros e pessoas integrantes de minorias étnicas, e da certidão de óbito, juntamente com a decisão administrativa que reconheceu a morte em razão do serviço, para filhos dos policiais civis, militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, cabendo à universidade criar mecanismos de combate à fraude. § 4º O candidato, no ato da inscrição, deverá optar por qual reserva de vagas estabelecidas no caput e nos incisos I ao V do presente artigo irá concorrer.
         O Ministério Público diante do volume de denúncias faz o que a instituição já deveria ter feito: evitar a farra que subverteu não só os critérios de meritocracia para ingresso na universidade, mas a própria lógica das cotas. Os “espertos” no âmbito da malandragem conseguem, com notas bem mais baixas, passar na frente de gente que estudou e recusou-se a recorrer ao engenhoso caminho da fraude. O descaso da universidade consegue algo inédito, que é unir gente a favor e contra as cotas. Afinal, um sistema de cotas raciais que não barra os falsos cotistas prejudica a todos, e não somente aos que, por lei – por pior que ela seja – teriam acesso legítimo ao benefício. Os promotores tentam, no âmbito criminal, encontrar uma saída para um problema criado por uma política social equivocada, que classifica pessoas segundo critérios raciais. Vitor Paulo de Souza Gilard (foto) foi aprovado como cotista após se declarar negro ou índio no vestibular de 2013 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 
     Malandragem define-se como um conjunto de artimanhas utilizadas para se obter vantagem em determinada situação muitas vezes ilícitas. Caracteriza-se pela engenhosidade e sutileza. Sua execução exige destreza, carisma, lábia e quaisquer características que permitam a manipulação de pessoas ou resultados, de forma a obter o melhor destes, e da maneira mais fácil possível. Contradiz a argumentação lógica, o labor e a honestidade, pois a dialética malandragem (cf. Assis, 1953; Schwarz, 1988; Candido, 1970; 1993) pressupõe que tais métodos são incapazes de gerar bons resultados. Aquele que pratica a malandragem, o “malandro”, age como no popular adágio brasileiro, imortalizado pelo nome de Lei do Gerson: “gosto de levar vantagem em tudo”. Junto ao “jeitinho” (cf. DaMatta, 1981), a malandragem pode ser considerado outro modo de “navegação social” tipicamente, mas não unicamente brasileiro.
     Porém, diferente do “jeitinho”, neste a integridade de instituições e de indivíduos é efetivamente lesada, e de forma juridicamente definível como dolosa. No entanto, a malandragem bem-sucedida pressupõe que se obtenham vantagens sem que sua ação se faça perceber. Em termos mais populares, o “malandro”, “engana” o “otário” (vítima) sem que este perceba ter sido enganado. A malandragem é descrita no imaginário individual (os sonhos) e coletivo brasileiro (os mitos, os ritos, os símbolos) como uma ideologia de justiça individual. Perante a força das instituições necessariamente opressoras, o indivíduo “malandro” é o curupira que só faz gol de calcanhar e sai comemorando de “moon Walker”. Tal como o “jeitinho brasileiro”, a malandragem é um recurso de esperteza, utilizado por indivíduos de pouca influência social, ou socialmente desfavorecidos. Isso não impede a malandragem de ser igualmente utilizada por indivíduos mais bem posicionados socialmente, sobre as políticas raciais e seus efeitos sociais e políticos. No Brasil, através da malandragem, obtêm-se vantagens ilícitas em jogos de azar, nos negócios e na vida social em sua totalidade.
     Pode-se considerar “malandro” o adúltero que convence a mulher de sua falsa fidelidade; o patrão que “dá um jeito” de não pagar os funcionários tal como deveria; o “jogador” que manipula as cartas e leva para si toda uma rodada de apostas, e assim por diante. Classificado na 166ª posição geral entre os vestibulandos de jornalismo, Gilard não teria conseguido uma das 50 vagas do curso em 2013 se não tivesse concorrido às vagas destinadas a cotistas. Na hora de comprovar a renda familiar, pode-se simplesmente omitir o rendimento de um ou mais integrantes da família. A lei 5.346 prevê um mecanismo para garantir que haja, pelo menos, algum controle sobre o que declara o candidato. O parágrafo 3º do artigo 1º estabelece que as universidades devam “criar mecanismos de combate à fraude”. De fato, existe na instituição uma “Comissão de Análise Socioeconômica”, formada por três servidoras públicas e 28 assistentes sociais. Após a análise da documentação, a comissão realiza, segundo a universidade, “visitas domiciliares a alguns candidatos para dirimir dúvidas”. Em 2010, foram realizadas 14 dessas visitas, segundo documento da UERJ enviado ao Ministério Público. Em 2011, foram três. Segundo declaração de Lena Medeiro de Menezes, Sub-Reitora de Graduação, não são feitas visitas fora do Estado do Rio. Ou seja, morar fora do território fluminense é garantia de que não haverá confirmação dos dados etnográficos e estatísticos apresentados como fundamento no critério de seleção.
         João Pedro Galiza Xavier (foto) foi aprovado como cotista no vestibular de 2013 no curso de Medicina. Classificado na 542ª posição geral entre os vestibulandos de Medicina, o estudante não teria conseguido uma das 94 vagas do curso naquele ano se não tivesse concorrido às vagas destinadas a cotistas. Como demonstra a ciência, não é possível classificar a descendência com base na cor da pele. Mas são estes – e os sinais inequívocos de condição social – os critérios que embasam denúncias dos próprios estudantes. A presença de cotistas brancos, com olhos claros, com celulares caros e aparelhos como iPads,  nome de um tablet produzido pela empresa Apple Inc. Pelo seu tamanho com tela de 9,7 polegadas e peso de cerca de 700 gramas, se situa entre um smartphone e um computador portátil. A questão da “cor da pele” tem revoltado universitários que precisaram estudar anos para conseguir uma vaga na UERJ. Alguns chegam a acusar a UERJ de “acobertar as fraudes”. O baixo número de sindicâncias instauradas é outro motivo de reclamações: foram apenas 17, naquele período. - “A UERJ está preenchendo vagas com pessoas que se dizem negras ou pobres sem comprovação válida. Apenas com uma declaração”, disse um dos denunciantes, em 2011.
     Pesquisa quantitativa do geneticista Sérgio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), identificou que 60% dos brasileiros “que se julgam brancos têm sangue africano ou indígena nas veias”. O caso do sambista Luiz Antônio Feliciano Marcondes, o Neguinho da Escola de Samba Beija-Flor, por exemplo, pode ser considerado simbólico. Exame estatístico feito pelo laboratório de Pena identificou que ele tem 67,1% dos genes de origem na Europa e apenas 31,5% da África. No intervalo de uma das aulas do curso de enfermagem da UERJ, Vanessa Dodt, a estudante loira a qual nos referimos brevemente, defendeu seu direito ao benefício. Vanessa disse que sua documentação foi aceita, e que é “carente”. Como não existe cota “para quem é branco e carente”, declarou-se “negra ou índia”. - “Digo que sou da cor que eu quiser”. Ela acertou em cheio a origem do problema ideológico ou cultural do sistema das políticas raciais.
     Vale, para os efeitos legais, a “auto declaração” da cor da pele. De acordo com a legislação brasileira, não é função “do Estado determinar a raça de uma pessoa”. Ou seja: é negro ou índio quem decidir assim se classificar perante a instituição. Quando a universidade tenta interferir, a confusão é imensa, como comprovou o caso dos gêmeos univitelinos Alex e Alan Teixeira da Cunha – o primeiro classificado como branco e, o segundo, como negro pela Universidade de Brasília (UnB). O disparate no enquadramento de pessoas geneticamente idênticas levou a UnB a modificar o ingresso dos cotistas. Em vez da simples declaração do estudante, há uma entrevista pessoal com o candidato – algo que, obviamente, não corrige uma política torta, mas afugenta quem tenta se aproveitar de brechas legais. Para o sociólogo Demétrio Magnoli, do “Grupo de Análises de Conjuntura Internacional” (Gacint) da USP, são claros os sinais de que os critérios raciais são um erro, e não atendem o objetivo de promover igualdade social. – “Polícias raciais dividem o país em grupos e produzem atritos, o que é perigosíssimo em qualquer sociedade. É preciso abolir o princípio da autodeclaração, para o bem do funcionamento do sistema”.
     O sociólogo Simon Schwartzman, um dos autores do livro: “Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo” (2007) avalia que os critérios de cotas dificilmente serão ajustados simplesmente por um aperto no controle. O mais adequado, afirma, seria que as instituições de ensino originassem soluções para privilegiar alunos carentes, em vez de tentar uma segregação. – “O sistema inteiro de cotas tem problemas. Todos os critérios são muito grosseiros. A solução não é apertar o controle, mas uma política mais inteligente de preferências, que amplie o sistema de apoio para quem realmente precisa”. A lei estadual fluminense que instituiu o sistema de cotas exige que pelo menos duas condições estejam atendidas. Baixa renda é o critério indispensável. A segunda condição pode ser étnica: declarar-se indígena ou negro, ou ser filho de policiais mortos em serviço ou inválidos ou, tratar-se de pessoa com deficiência física. O critério de renda é burlável. O candidato cotista deve comprovar renda familiar per capita bruta de até R$ 960.

          Enfim, paternalismo, em sentido lato, é um sistema de relações sociais e trabalhistas, unidos por um conjunto de valores, doutrinas políticas e normas fundadas na valorização positiva da pessoa do patriarca. Em sentido estrito, o paternalismo é uma modalidade de autoritarismo, na qual uma pessoa exerce o poder sobre outra combinando decisões arbitrárias e inquestionáveis, com elementos sentimentais e concessões graciosas. Do ponto de vista político é a forma mais sofisticada de dominação. Atua com aparência de solidariedade e bondade. Entretanto, parte de premissa de que o amparado encontra-se em nível inferior ao pretenso protetor, que obviamente não deseja seu crescimento para continuar a submissão. A cultura brasileira é impregnada de paternalismo apresentado como face aparentemente simpática do povo. Essa característica vem da colonia dominada pela escravatura, em que “homens livres” somente eram bem tratados pela bondade das “sinhás moças”, e não por dignidade. Difundiu-se a ideia de que trabalho é atividade indigna a ser exercida pelos socialmente ditos inferiores. Hoje, em alguns círculos sociais privilegiados, ainda é grande essa rejeição à atividade laboral. As novelas da TV Globo exploram de forma sadista esse aspecto cultural e político no Brasil. 

Bibliografia geral consultada.

GIANOTTI, José Arthur, A Universidade em Ritmo de Barbárie. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987; GOTO, Roberto, Malandragem Revisitada. Campinas: Pontes Editora, 1988; CUNHA, Luiz Antonio, Qual Universidade? São Paulo: Editora Cortez, 1989; SCHWARZ, Roberto, Ao Vencedor as Batatas: Forma Literária e Processo Social nos inícios do Romance Brasileiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1988; CANDIDO, Antônio, “Dialética da Malandragem”. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993; SCHWARTZMAN, Simon, “Fora de Foco: Diversidade e Identidades Étnicas no Brasil”. In: Novos Estudos. CEBRAP, São Paulo, v. 55, pp. 83-96, 1999; OLIVEIRA, Gesner, “Populismo das Cotas”. In: Folha de S. Paulo, 08.07.2006; ARBACHE, Ana Paula Ribeiro Bastos, A Política de Cotas Raciais na Universidade Pública Brasileira: Um Desafio Ético. Tese de Doutorado em Educação. Programa de Estudos Pós-Graduados. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006; FRY, Peter, MAGGIE, Yvonne, MONTEIRO, Simone e SANTOS, Ricardo Ventura, Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007; SOUZA, Marcilene Garcia de, Ações Afirmativas e Inclusão de Negros por Cotas Raciais nos Serviços Públicos do Paraná. Tese de Doutorado.  Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Universidade Estadual Paulista, 2010; ALENCAR, Rafael Augusto da Costa, Ações Afirmativas no Brasil: Um Estudo de Caso sobre o Estatuto da Igualdade Racial. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Brasília: Universidade de Brasília, 2010; ARAÚJO, Ionete Eunice de, Análise Socioeconômica das Qualidades de Cotas para Negros na Universidade de Brasília. Dissertação de Mestrado Profissional em Economia do Setor Público. Brasília: Universidade de Brasília, 2013; RIBEIRO, Gustavo Cezar, Modos da Soberania e a Questão Contemporânea do Poder. Rio de Janeiro: IESP/UERJ. Universidade de Paris, 2014; PETIT, Sandra Haydée, Pretagogia: Pertencimento, Corpo-Dança Afroancestral e Tradição Oral. Fortaleza: Editora da Universidade Estadual do Ceará, 2015;  entre outros.

Leviatã - Cinema, Política & Eufemização do Leste Europeu.


Giuliane de Alencar & Ubiracy de Souza Braga



Bibliografia geral consultada.
MACPHERSON, Crawford Brough, A Teoria Política do Individualismo Possessivo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979; RIBEIRO, Renato Janine, Ao Leitor sem Medo: Hobbes Escrevendo contra seu Tempo. Tese de Doutorado. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984; HABERMAS, Jürgen, La Techinique et la Science comme ´ideologie`. Paris: Éditions Gallimard, 1973; Idem, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico. 1ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1983; Idem, Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Editor Tempo Brasileiro, 1984; Idem, Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM Editor, 1987; Idem, “What Does Socialism Mean Today? The Rectifying Revolution and the Need for New Thinking on the Left”. Disponível em: New Left Review, n° 183, September/October 1990; OLIVEIRA, Neiva Afonso, Propriedade e Democracia Liberal: Um Estudo Estribado em Crawford Brough Macpherson. Porto Alegre: Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2004; HOBBES, Thomas, Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil.  edição. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores); Idem, Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. 1ª edição. São Paulo: Martin Claret, 2014; entre outros.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Filme 12 Anos de Escravidão: Ajustando o Foco das Lentes?

                                                                                            Ubiracy de Souza Braga
 
                                    A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. Martin Luther King Jr.

                                

              Martin Luther King Jr. nascido Michael King Jr na cidade de Atlanta, em 15 de janeiro de 1929 e assassinado em Memphis, 4 de abril de 1968, foi um pastor batista e ativista político norte-americano que se tornou a figura mais proeminente e líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos da América (EUA) de 1955 até seu assassinato em 1968. Luther King é amplamente reconhecido pela luta dos direitos políticos através da não-violência e desobediência civil, inspirado por suas crenças cristãs e o ativismo não-violento de Mahatma Gandhi. Martin Luther King liderou em 1955 o boicote aos ônibus de Montgomery e posteriormente se tornou o primeiro presidente da Conferência da Liderança Cristã do Sul (abreviado em inglês como SCLC). Como presidente da SCLC, ele liderou sem sucesso em 1962 a luta contra a segregação em Albany, e foi um dos participantes que organizaram os protestos não-violentos de 1963 em Birmingham. King ajudou na organização da Marcha sobre Washington onde ele ditou seu famoso discurso “I Have a Dream” aos pés do Memorial de Lincoln. 
        Em 14 de outubro de 1964, King ganhou o Prêmio Nobel da Paz por combater o racismo nos Estados Unidos através da resistência não-violenta. Em 1965, ele ajudou a organizar as Marchas de Selma a Montgomery. Nos seus últimos anos, ele ampliou seu ativismo contra a pobreza e a Guerra do Vietnã. O diretor J. Edgar Hoover do Federal Bureau of Investigation (FBI) ou Departamento Federal de Investigação é uma unidade de polícia do Departamento de Justiça dos Estados Unidos achava Luther King um liberal radical e fez dele alvo do programa de contrainteligência a partir de 1963. Os agentes do FBI o investigaram por possíveis laços comunistas, ameaçaram tornar público suas supostas relações extraconjugais e o denunciaram para agentes governamentais e, em 1964, mandaram a Luther King uma carta ameaçadora anônima, o qual ele interpretou como uma tentativa de alguém a incentivá-lo a cometer suicídio.

Antes de sua morte, o reverendo Luther King estava planejando uma ocupação em Washington, D.C., que seria denominada Campanha dos Pobres, quando ele foi assassinado em 4 de abril de 1968, em Memphis. Sua morte causou forte reação popular e foi seguida por manifestações em várias cidades dos Estados Unidos. Alegações que o assassino convicto de Luther King, James Earl Ray, ter sido coagido ou agido em conjunto com agentes do governo persistiram por décadas após o tiroteio. King foi premiado postumamente com a Medalha Presidencial da Liberdade e a Medalha de Ouro do Congresso. O Dia de Martin Luther King foi estabelecido como feriado em cidades e estados dos Estados Unidos da América a partir de 1971; o feriado foi promulgado a nível federal por uma legislação assinada pelo presidente Ronald Reagan em 1986. Centenas de estradas nos EUA foram renomeadas em sua honra, e um condado em Washington foi dedicado a ele. O Martin Luther King Jr. Memorial no National Mall em Washington D.C. foi inaugurado em sua homenagem em 2011.

A questão da escravidão continuaria a polarizar politicamente os Estados Unidos durante toda a primeira metade do século XIX, efetivamente dividindo o país entre os estados escravos e livres, na altura da linha Mason–Dixon. Durante o governo de Thomas Jefferson, o Congresso dos Estados Unidos passou uma lei proibindo a importação de escravos, em 1808, embora o tráfico ilegal, via Flórida espanhola, continuasse comum. O comércio interno de escravos, contudo, permaneceu legal e cresceu consideravelmente já que a demanda das plantações, movida principalmente pelo algodão no Sul, aumentava ano a ano. Na primeira metade do século XIX, mais de um milhão de escravos foram vendidos no sul, especialmente próximos a fronteira, e levados para as plantações no extremo sul do país em migrações forçadas. Nesse contexto, embora crianças não pudessem ser separadas de suas mães antes de completarem 12 anos, a prática era comum, assim como estupros a mulheres. Embora passassem por um processo de desumanização e maus tratos, as comunidades afro-americanas no Sul foram se desenvolvendo e tentavam preservar sua cultura. Em 1865, havia mais de 4 milhões de afro-americanos em condição de escravidão. No sul dos Estados Unidos, em 1860, eles eram 3,5 milhões (31% da população), com 25% da população branca no Sul tendo ao menos um escravo trabalhando para ele de forma permanente aluguel de escravos, também era uma opção comum para aqueles que não podiam pagar para manter um. No país como um todo, antes da guerra civil começar, cerca de 8% das famílias de americanos brancos tinha escravos.

            O filme 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave) do diretor inglês Steve  McQueen tem como escopo a “saga de Northup”, um drama universal, na sua relação social de poder e dominação e atemporal, nos seus aspectos dinâmicos na sociedade contemporânea: a) como a luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos da América (EUA) e, b) a eleição à presidência do negro Barack Obama, quanto em: c) àqueles aspectos que permanecem diacrônicos como o racismo. Com o vigor narrativo e o apuro visual que exibiu em seus dois longas-metragens anteriores, “Fome” (2008) e “Shame” (2011), McQueen, artista plástico por formação, fez “12 Anos de Escravidão” ser reconhecido por historiadores sociais e ativistas como aquele que mais fielmente reproduz o cenário de degradação moral, desumanização e violência física impostas pelo sistema escravagista norte-americano. Solomon Northup foi protagonista de uma saga absurdamente trágica, se já não é um truísmo, em seu minucioso relato na autobiografia (1853) visto na obra de ficção. Temos analiticamente um advogado opositor da escravatura (Brad Pitt) que luta institucionalmente pela liberdade desse homem.




A história social da escravidão (ou escravatura) nos Estados Unidos da América inicia-se no século XVII, quando práticas escravistas similares aos utilizados pelos espanhóis e portugueses em colônias na América Latina, e termina em 1863, com a Proclamação de Emancipação de Abraham Lincoln, realizada durante a Guerra Civil Americana. Na origem da guerra tem-se, grosso modo, a escravidão e dois modelos econômicos opostos. O norte em expansão econômica graças à industrialização, à proteção ao mercado interno e à mão-de-obra livre e assalariada, e o sul numa economia baseada na plantação e no escravismo. As diferenças culturais e políticas entre os estados do norte e do sul, ao contrário da dicotomização feita por alguns estudiosos, não são tão acentuadas, como é analisado por Lewis Cecil Gray no ensaio: “History of Agriculture in the Southern United states to 1860. Contributions to American Economic History” (1933).  

           Durante a maioria do século XVII e parte do século XVIII, escravos do sexo masculino eram em maior número que escravas do sexo feminino, fazendo com que os dois grupos tivessem experiências distintas nas colônias. Vivendo e trabalhando em uma ampla variedade de circunstâncias e regiões, homens e mulheres afro-americanos tiveram variadas experiências de escravidão. Com o aumento de mulheres africanas sequestradas, bem como os escravos nascidos nas colônias, estupros cresceram entre 1730 e 1750. - “A singularidade da situação das mulheres afro-americanas é que ela situa-se no cruzamento de duas das mais bem desenvolvidos ideologias na América, sobre as mulheres e sobre o Negro”. Possuindo identidades femininas e identidades negras, mulheres africanas escravizadas enfrentaram racismo e sexismo. A partir de 1700 e 1740, um número estimado de 43.000 escravos foi levado para a Virgínia e, a exceção de 4.000 escravos, que foram sequestrados diretamente da África.
        No período histórico da Revolução Americana (1775-1783), o status de escravo havia sido institucionalizado “como uma casta racial”, na parte mais baixa da hierarquia social, formada quase que exclusivamente por negros de ascendência africana, amparada por provisões legais dentro Constituição do país. Em 1789, o número de pessoas de cor livres que eram cidadãos e podiam votar era quase nulo. Porém, pouco tempo depois da guerra de independência, as primeiras Leis Abolicionistas foram passadas nos Estados do norte e o movimento para abolir a escravidão cresceu na primeira metade do século XIX. Os Estados nortistas dependiam de mão de obra livre e a maioria tinha abolido a escravidão por volta de 1805, embora nem todos os escravos tenham sido libertados de fato, imediatamente. A expansão da indústria do algodão no extremo sul após a invenção da máquina de tecer, fez com que a demanda por trabalho escravo no sul dos Estados Unidos aumentasse. Os escravagistas tentaram expandi-la para os Estados novos formados nos territórios do oeste para que assim eles pudessem manter sua influência política pela nação. Os líderes políticos sulistas queriam anexar Cuba como um território escravagista.
            Pesquisas recentes sugerem que o número de mulheres e homens transportados neste período foi semelhante, incluindo um elevado número de filhos. Como a maioria dos escravos provinham da África Ocidental, suas culturas eram centrais de meados ao fim do século XVIII da escravidão na Virgínia. Valores africanos foram predominantes e as culturas das mulheres da África Ocidental tinham fortes representações. Algumas representações culturais predominantes formavam os poderosos laços entre mãe e filho e entre as mulheres na comunidade feminina. Entre o grupo étnico Ibo da atual Nigéria, em particular, que incluía entre um terço e metade dos escravos no início do século XVIII, a autoridade feminina (a omu) “administrava sobre uma ampla variedade de questões importantes para as mulheres, em particular, e para a comunidade como um todo”. O grupo étnico lbo representava  pessoas trazidas para a Chesapeake, que pode se referir a várias localidades nos Estados Unidos porém, em geral, os africanos vieram traficados de uma variada gama de culturas. Todos vieram de comunidades onde as mulheres eram fortes, e foram introduzidas sociedade patriarcal, violentamente racista e exploradora; homens brancos normalmente caracterizavam todas as mulheres negras como uma erotização sexual, visando justificar seu abuso sexual e miscigenação.
         O caráter capitalista da “plantation” escravista do sul, análogo aos estados do norte, era em certa medida uma contradição, mas em última instância, de oposição assimétrica no sentido formal marxista interno ao sistema econômico. Contudo, em sua complementaridade uma economia escravista tende a inibir o desenvolvimento econômico de uma sociedade capitalista, tal como apontado, neste caso pelo sociólogo Max Weber em seu livro: The Theory of Social and Economic Organization. Além disso, o retorno dos lucros de volta à produção, no caso de Marx, presente no norte industrializado, não ocorria da mesma forma nos estados do sul, que tinha uma acentuada tendência a um consumo intenso, daí o binômio: produção-consumo. Assim, norte e sul diferem-se na medida em que o primeiro possui um progresso econômico qualitativo com o retorno dos lucros à produção, e o sul, por sua vez, ao dirigir seus lucros em escravos e terras, possui um progresso econômico quantitativo, levando em consideração a só aparente baixa produtividade da mão-de-obra escrava. 
 
                                      
        Esse fato histórico e ideológico (cf. Bailyn, 2003; Braga, 2012) se deve à mentalidade escravista do proprietário sulista, que investia na compra de escravos como fator de produção, pois “dava prestígio e segurança econômica e social numa sociedade dominada pelos plantadores”. Os consequentes saltos qualitativos na produção nortista levaram os proprietários sulistas a uma aguda disputa com os proprietários do norte. Se for aceita a condição capitalista para os estados do sul (Karl Marx), assim como para os estados do norte (Max Weber), tem-se então uma sociedade capitalista que impediu o desenvolvimento do próprio capitalismo, fato que historicamente tende a revoltas, guerras e revoluções, ainda mais considerando que o Sul apresentava economicamente problemas de produção de produtos para o consumo interno. Relatos do escravo Frederick Douglass demonstram que algumas plantações não forçavam seus escravos a trabalharem no período festivo do Natal. O motivo não era altruísta, essa folga era concedida para liberar tensão psicológica entre os trabalhadores, como ocorre comparativamente no período de carnaval para que eles continuassem sendo explorados mais um ano.
       Não era uma prática comum a todos os donos de escravos, mas pelos relatos, não era algo tão raro também. Apesar do tráfico de escravos ser proibido em 1815, o contrabando continuou até o ano de 1860, enquanto que no Norte crescia a campanha pela abolição. O Compromisso do Missouri de 1820, autoriza a escravidão apenas abaixo do paralelo 36º. O apoio que ainda poderia existir no Norte a favor da escravidão esvaiu-se com o livro A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Elizabeth Stowe, uma ardente abolicionista que o publicou em 1852. No final de 1860, o Estado da Carolina do Sul já havia se declarado fora da União, fato este que culminou na formação dos Estados Confederados da América. Poucos meses após a eleição de Abraham Lincoln (1809-1865), um republicano contrário à escravidão, a confederação, de cunho separatista, já aglomerava 11 Estados: Virgínia, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Geórgia, Flórida, Alabama, Mississippi, Louisiana, Arkansas, Texas e Tennessee. Assim, a guerra civil se deflagra e deixa um saldo de centenas de milhares de mortos e uma legião de negros marginalizados. Nenhum programa governamental é previsto para sua integração profissional e econômica. O Sul permanece militarmente, mas isso acontece até 1877, favorecendo o surgimento de outras novas religiões como uma que se chama: Os cavaleiros da Camélia Branca, essa perseguia os negros violentamente e defendia a segregação racial.         
          Na linguagem teórica, as palavras e expressões ipso facto funcionam como conceitos teóricos. Mas em sua periodização histórica, teórica e ideológica as palavras e expressões funcionam sempre de forma distinta, porque se referem a concepção de uma determinada teoria da história. A dificuldade própria da terminologia teórica consiste, pois, em que, por detrás do significado usual da palavra, é preciso sempre discernir o seu significado conceptual, que é sempre diferente do significado usual corrente nas fontes, nas atas, nos documentos oficiais, no âmbito da formação discursiva. Na sua significação mais geral deve nos permitir a compreensão que tem por efeito o conhecimento de um objeto: a narrativa da história. É assim que a história abstrata ou a história em geral não existem, no sentido exato do termo, mas apenas a história real, ou “como efetivamente ocorreu” (“essen Sie tatsächlich, es passierte”), desses objetos concretos e singulares que enformam a experiência da humanidade.    
        A tradição marxista concebe o Estado como um “aparelho repressivo”, uma “máquina de repressão”, ou, “comitê executivo da classe dominante” que permite às classes dominantes assegurar a sua dominação sobre a classe operária, extorquindo desta última a mais-valia. O Estado é, antes de tudo, o “Aparelho de Estado”, termo que compreende não somente o “aparelho especializado”, mas também o exército que intervém como força repressiva de apoio em última instância, o Chefe de Estado, o Governo e a Administração, definindo o Estado como força de execução e de intervenção repressiva a serviço das frações da classe dominante. A rejeição hegeliana parte da própria negação de “estruturas hegelianas” em Marx, onde a totalidade expressiva de Hegel cede lugar, na análise crítica de Louis Althusser, ao todo-estruturado. É um todo sobredeterminado (“uberdeterminierung”) com níveis de análise e instâncias (instare) relativamente autônomas. Na configuração social das esferas de ação há, diferente da lógica dialética, “todos parciais”, sem prioridade de um “centro”. Em nível de análise do econômico opera-se a rejeição da “unicausalidade econômica” da história e das lutas sociais e políticas atribuindo-se a instâncias, então determinadas do discurso como o político e ideológico, o “peso” de instâncias decisivas, dominantes em ser determinantes. 
           Enfim, a guerra civil se deflagra e deixa um saldo de centenas de milhares de mortos e uma legião de negros marginalizados. Nenhum programa governamental é previsto para sua integração profissional e econômica. O Sul permanece militarmente, mas isso acontece até 1877, favorecendo o surgimento de outras novas religiões como uma que se chama Os cavaleiros da Camélia Branca, essa perseguia os negros violentamente e defendia a segregação racial. Todas essas diferenças elencadas, não só nos aspectos produtivos, mas também em diferenças de mentalidades, tal como observadas por Alexis Tocqueville, estão diretamente ligadas à questão da escravidão. O orgulho pela plantation sulista, a posse de escravos, os problemas produtivos — tudo remete à escravidão, fator que pretendeu-se colocar como força matriz da Guerra Civil. A “era dos linchamentos” teve seu epicentro no Sul dos Estados Unidos da América. Se iniciou depois do fim da Guerra Civil americana e da declaração formal de fim da escravidão, em 1863. Para os pesquisadores, não se trata de coincidência. - “Depois da Guerra Civil, cerca de 4 milhões de escravos negros se tornaram livres e passaram a competir com os brancos (por empregos) nas economias dos estados do Sul”, explica Tolnay. - “Os negros foram ameaçados até que ficaram completamente privados de direitos de participação política, por volta do ano 1900, e o Sul ficou governado pelo sistema de castas raciais, no qual havia uma clara linha de separação entre a ´raça branca superior` e a ´raça negra subordinada`”.        
                                                
          Apesar de ser uma parte importante da história dos Estados Unidos, a “era dos linchamentos” é pouco reconhecida. Para mudar isso, em 26 de abril, foi inaugurado o Monumento Nacional pela Paz e Justiça em Montgomery, no Estado americano do Alabama. - “Diga o nome de um afro-americano linchado entre 1877 e 1950? A maior parte das pessoas não conhece nenhum. Milhares de pessoas morreram, mas não se pode nomear uma sequer? Por quê? Porque não temos falado sobre isso”, comentou Bryan Stevenson, fundador da EJI, sobre o motivo por trás da criação do Monumento. O Monumento espera apresentar para o público o contexto da história do terror racial nos Estados Unidos, com o uso de recursos artísticos. Além disso, foram criados mais de 800 memoriais de aço de cerca de 2 metros de altura, um para cada condado dos Estados Unidos onde afro-americanos foram linchados. Neles, estará grafado o nome das vítimas. Cada um desses monumentos tem uma réplica, que a EJI espera entregar para as regiões correspondentes. A ideia é que as esculturas sejam expostas nos próprios locais, recordando as violentas histórias racistas de linchamento.           
           O “pesadelo de Northup”, interpretado por Chiwetel Ejiofor, teve início em 1841, antes da guerra civil que oficializaria o fim da escravidão nos EUA. Ele vivia em Saratoga, no estado de Nova York, com a mulher e os três filhos (foto), e trabalhava como carpinteiro e músico, animando festas na região. Dois homens convidaram Northup para se apresentar em um circo em Washington. Constituíam-se em chefe de mercenários, bandidos, guerrilheiros como ocorrera historicamente na Itália medieval e renascentista. Neste caso, analogamente eram criminosos a serviço de fazendeiros do sul escravocrata que patrocinavam o sequestro de negros livres ao norte e, com aval de autoridades, falsificavam documentos de posse. Northup foi vendido a diferentes senhores até cruzar com o mais cruel deles, Edwin Epps (Michael Fassbender). Na fazenda de Epps, onde passou a maior parte de seu tempo de cativeiro, ele testemunhou horrores como os vividos pela jovem escrava Patsey (Lupita Nyong'o), alvo do furor sexual de seu dono e dos mais sádicos castigos. Filmes recentes como “Django Livre”, de Quentin Tarantino, e “Lincoln”, de Steven Spielberg, reacenderam o tema no cinema, mas nenhum deles atinge a força histórica, humanista e política representada em “12 Anos de Escravidão”. 
Indicado ao Oscar de direção, McQueen pode se tornar o primeiro cineasta negro a conquistar o prêmio. 12 Years a Slave estreou no Festival de Telluride em 30 de agosto de 2013 e tem sido amplamente elogiado pela crítica. Depois de estar em desenvolvimento há algum tempo, o filme foi anunciado oficialmente em agosto de 2011 com McQueen dirigindo e Chiwetel Ejiofor estrelando como Solomon Northup, um negro livre que foi sequestrado e vendido como escravo na Deep South. McQueen comparou a conduta de Ejiofor “de classe e dignidade” à de Sidney Poitier e Harry Belafonte. Em outubro de 2011, Michael Fassbender que atuou em filmes anteriores Hunger e Shame de McQueen se juntaram ao elenco. Chiwetel Umeadi Ejiofor, nascido em Londres, em 10 de julho de 1977 é um ator britânico, filho de pais nigerianos, cujos antepassados eram igbos. um dos maiores grupos étnicos africanos. Habitam o leste, sul e sudeste da Nigéria, além de Camarões e da Guiné Equatorial e falam a língua igbo é uma língua falada na Nigéria por cerca de 20-25 milhões de pessoas, os igbos, especialmente na região sudeste, anteriormente reconhecida como Biafra e em partes da região sul-sudeste da Nigéria. É escrita em alfabeto latino. O igbo é uma língua tonal, como o ioruba ou o chinês.


         Foram um dos povos mais atingidos pelos traficantes no comércio transatlântico de escravos. Também existem populações significativas nos Estados Unidos e em Trinidad e Tobago. Em 2006 recebeu duas indicações ao prêmio Golden Globe por Melhor performance.  Em 2013, interpretou Solomon Northup em 12 Anos de Escravidão, pelo qual recebeu indicações ao Óscar, Globo de Ouro e Screen Actors Guild, juntamente com o BAFTA Award de Melhor Ator. No início de 2012, o resto dos papéis foi lançado, e as filmagens estavam programadas para começar no final de junho de 2012. Para captar a linguagem e dialetos da época e regiões o professor de dialeto Michael Buster foi trazido para ajudar o elenco na alteração de seu discurso, cuja presença alterou o modo como os personagens se portam e falam no decorrer do filme. Para recriar o sotaque dos escravos, que não foi documentado, ele fez uma aposta ousada: misturou o sotaque dos idosos da Louisiana com o modo de falar de uma colega queniana, cujo inglês é ainda carregado com os modos de falar africanos. A linguagem tem uma qualidade literária relacionada com o estilo de escrita do dia e da forte influência do Bíblia do Rei Jaime. O estudioso de cultura e história afro-americano Henry Louis Gates Jr. foi consultor no filme.

Bibliografia geral consultada. 

GRAY, Lewis Cecil, History of Agriculture in the Southern United States to 1860. Contribution to American Economic History. Washington DC: Editor Carnegie Institute of Washington, 1933; TOCQUEVILLE, Alexis, De la Democratie en Amerique. Paris: Éditions Gallimard, 1951; FAULKNER, Harold Underwood, The Decline of Laissez Fare, 1897-1917. New York Press, New York, 1951; Idem, Historia Económica de los Estados Unidos. Buenos Aires: Editora Nueva, 1954; STAMPP, Kenneth Milton, La Esclavitud en los Estados Unidos (la ´Instituición Peculair`). Trad. esp. Barcelona: Ediciones Oikos tau, 1966; HOBSBAWM, Eric, Storia del Marxismo: I – Il Marxismo al Tempi di Marx. Roma: Giulio Einaudi Editor, 1975; GENOVESE, Eugene, A Economia Política da Escravidão. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 1976; Idem, A Terra Prometida: O Mundo que os Escravos Criaram. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988; BERLIN, Ira, “Time, Space, and the Evolution of Afro-American Society on British Mainland North América”. In: The American Historical Review, vol. 85, nº 1, pp. 44-78, February, 1980; MINTZ, Sidney; PRICE, Richard, O   Nascimento da   Cultura   Afro-Americana:   Uma Perspectiva Antropológica. Rio de Janeiro: Editora Pallas; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2003; BAILYN, Bernard, As Origens Ideológicas da Revolução Americana. Bauru: Editora da Universidade Sagrado Coração, 2003; NORTHUP, Solomon, Doze Anos de Escravidão: A História Real de Solomon Northup. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2014; BAPTIST, Edward, The Half Has Never Been Told: Slavery and the Rise of American Capitalism. New York: Basic Books Editor, 2014; PARRON, Tamis Peixoto, A Política da Escravidão na Era da Liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015; MARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo (Org.), Escravidão e Capitalismo Histórico no Século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2016; entre outros.

_________________

* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ) e Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará. Artigo publicado originalmente no blog Espaço Acadêmico sob a direção do sociólogo Antônio Ozaí da Silva.