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segunda-feira, 10 de abril de 2017

Django Livre - Episodicidade, Escravidão & Auf Wiedersehen.

                                                                                          Ubiracy de Souza Braga
 Tarantino demonstra a escravidão sem concessões em Django Livre, seu faroeste espaguete. Natalia Engler

Quentin Jerome Tarantino nasceu em Knoxville, em 27 de março de 1963, uma cidade localizada no estado norte-americano do Tennessee, no Condado de Knox. Foi fundada em 1791, e incorporada em 1815. É um realizador, argumentista, produtor, ator, diretor de fotografia e crítico de cinema norte-americano. É vencedor de dois Óscar de Melhor Roteiro Original e foi eleito o 19° maior diretor de cinema dos últimos 25 anos segundo o levantamento da Quartz através do Metacritic. Alcançou a fama rapidamente no início da década de 1990 com roteiros não lineares, violência gráfica, “humor negro”, fetichismo por “pés femininos”, referências à cultura pop e diálogos ricos numa mistura irônica de humor e violência. Ele é amplamente considerado um dos mais importantes cineastas de sua geração. Tarantino iniciou seus estudos na região de San Gabriel Valley, em 1968. Em 1971, sua família mudou-se para El Segundo, ao sul de Los Angeles, onde frequentou a Hawthorne Christian School. Ao sair da Narbonne High School, em Harbor City, Califórnia, iniciou aos 16 anos estudos em atuação na James Best Theatre Company.

Apesar de Tarantino ser reconhecido por seu trabalho de direção atrás das câmeras, ele também apareceu na primeira e na terceira temporadas da série de televisão Alias. Em 2005, ele anunciou um novo projeto chamado Grindhouse em parceria com Robert Rodriguez, onde escreveu e dirigiu Death Proof que foi estrelado por Kurt Russell e Rosario Dawson. Mais tarde, também anunciou continuidade para Kill Bill Vol. 2 e Bastardos Inglórios, mas declarou, em 2012, ter desistido destas ideias. No mesmo ano, lançou Django Livre, um faroeste que repetiu a parceria com Christoph Waltz.  Entre seus recentes créditos como produtor, estão: o filme de terror Hostel, que inclui referências a Pulp Fiction; a adaptação de Killshot, de Elmore Leonard; e Hell Ride, escrito e dirigido pela estrela de Kill Bill, Larry Bishop. Quase dois anos após o lançamento de Bastardos Inglórios, Tarantino confirmou a gravação de seu novo filme, Django Livre, um western no qual um ex-escravo torna-se um mercenário, com Jamie Foxx no papel principal. As gravações se iniciaram no estado da Louisiana, e a obra foi lançada em 2013.

Quentin Tarantino dirige grupo qualificado de atores e atrizes que frequentemente participam de seus filmes, incluindo Tim Roth (Cães de Aluguel, Pulp Fiction, Four Rooms e Os Oito Odiados), Harvey Keitel (Cães de Aluguel, Pulp Fiction e From Dusk Till Dawn), Uma Thurman (Pulp Fiction, Kill Bill: Vol. 1 e Kill Bill: Vol. 2), Michael Madsen (Cães de Aluguel, Kill Bill: Vol. 1, Kill Bill: Vol. 2 e Os Oito Odiados), Kurt Russel (Death Proof, Os Oito Odiados e Era uma Vez em... Hollywood), Steve Buscemi (Cães de Aluguel e Pulp Fiction), Bruce Willis (Pulp Fiction e Four Rooms), Christoph Waltz (Bastardos Inglórios e Django Livre), Leonardo DiCaprio (Django Livre e Era uma Vez em... Hollywood), Brad Pitt (True Romance, Bastardos Inglórios e Era uma Vez em... Hollywood) e Samuel L. Jackson (True Romance, Pulp Fiction, Jackie Brown, Kill Bill Vol. 2, Bastardos Inglórios, Django Livre e Os Oito Odiados).

A história social da escravidão ou escravatura nos Estados Unidos da América inicia-se no século XVII, quando práticas escravistas similares aos utilizados pelos espanhóis e portugueses em colônias na América Latina, e termina em 1863, com a Proclamação de Emancipação de Abraham Lincoln, realizada durante a Guerra Civil Americana. Na origem da guerra tem-se, grosso modo, a escravidão e dois modelos econômicos opostos. O norte em expansão econômica graças à industrialização, à proteção ao mercado interno e à mão-de-obra livre e assalariada, e o Sul numa economia baseada na plantação e no escravismo. As diferenças sociais e políticas entre os estados do norte e do sul, ao contrário da dicotomização na interpretação por estudiosos, não são tão acentuadas, como ocorre em Lewis Cecil Gray: History of Agriculture in the Southern United States to 1860. Contributions to American Economic History (1933).

A Guerra Civil Americana, também conhecida como “Guerra de Secessão” ou “Guerra Civil dos Estados Unidos”, representou na esfera de ação política uma guerra civil travada entre 1861 e 1865 nos Estados Unidos da América, depois de vários estados escravagistas do Sul declarar sua secessão e formarem os Estados Confederados da América, conhecidos como “Confederação” ou “Sul”. Os estados que não se rebelaram ficaram conhecidos como “União” ou simplesmente “Norte”. O conflito teve sua origem na controversa questão da escravidão, especialmente nos territórios ocidentais. As potências estrangeiras não intervieram na época. Após quatro anos de sangrentos combates com mais de 600 mil soldados mortos destruindo parte da infraestrutura do sul do país, a Confederação entrou em colapso, a escravidão foi abolida, um complexo processo de reconstrução nacional começou, a unidade nacional retornou e a garantia de direitos civis aos escravos libertos teve início através de uma longa jornada.


Na eleição presidencial de 1860 os republicanos liderados por Abraham Lincoln, se opuseram à expansão da escravidão em territórios sob a jurisdição dos Estados Unidos. Lincoln venceu, mas antes de sua posse em 4 de março de 1861, sete estados escravagistas, com suas economias baseadas na produção de algodão, formaram a Confederação. James Buchanan então presidente democrata, junto com os republicanos, rejeitou a secessão do sul como ilegal. Em seu discurso de posse, Lincoln declarou que sua administração não iria iniciar uma guerra civil. Os oito estados escravagistas continuaram a rejeitar pedidos de secessão. Os confederados tomaram vários fortes no território reivindicado pela Confederação. Uma conferência de paz em 1861, não alcançou qualquer resultado de armistício e ambos os lados prepararam-se para a sanguinolenta guerra civil. Os confederados assumiram que países europeus eram dependentes do comércio de algodão, interviriam no conflito e reconheceriam a existência dos novos Estados Confederados da América, o que não ocorreu.
Poucos meses após a eleição de Abraham Lincoln (1809-1865), um republicano contrário à escravidão, a confederação, de cunho separatista, já aglomerava 11 estados. Assim, a guerra civil se deflagra e deixa um saldo de centenas de milhares de mortos e uma legião de negros marginalizados. Nenhum programa governamental é previsto para sua integração profissional e econômica. O sul permanece militarmente, mas isso acontece até 1877, favorecendo o surgimento de outras novas religiões como uma que se chama: “Os cavaleiros da Camélia Branca”, essa perseguia os negros violentamente e defendia a segregação racial. Todas essas diferenças como hierarquia em classe, não só nos aspectos produtivos, mas também diferenças de mentalidade, tal como observadas por Alexis de Tocqueville, estão diretamente ligadas à questão da escravidão. O orgulho pela “plantation” sulista, a posse de escravos, os problemas produtivos – tudo remete à escravidão, fator que se pretendeu colocar como força motriz no âmbito da contradição histórica da Guerra Civil.
Nenhum país reconheceu a Independência da Confederação, reconhecendo-a como um novo país, com exceção do reino alemão de Saxe-Coburgo-Gota. Diplomatas da União persuadiram as potências europeias a não reconhecer a independência da Confederação. O bloqueio em terra e mar da Confederação, por parte da União, reduziu ao mínimo a importação de armas da Europa e a exportação de algodão e de alimentos. Além disto, o algodão necessário à indústria têxtil europeia começou a vir da União, do Brasil e das colônias britânicas de Egito e Índia, e os alimentos passaram a ser fornecidos diretamente pela União e pelo Canadá, então ainda colônia britânica. Próximo ao final da guerra, em novembro de 1864, Jefferson enviou Duncan F. Kenner à Europa para propor a abolição da escravatura na Confederação em reconhecimento da independência da mesma por parte do Reino Unido e/ou da França. Ambos os países rejeitaram a proposta.  A origem da divisão ideológica dos EUA em “Norte” e “Sul” data dos tempos coloniais, quando a área que atualmente constitui os Estados Unidos ainda era colônia de três países, a saber: Espanha, França e Reino Unido.



Como quase todos os filmes sobre escravidão na filmografia de “brancos para brancos”, o filme: Django Livre é essencialmente sobre a “culpa branca”. Nos termos de exploitaition tão caros ao cineasta, podemos dizer que se trata de uma releitura de “Sweet Sweetback’s Baadasssss Song”, de Melvin Van Peebles, na qual a raiva incontida que o cineasta exibia enquanto construía sua série de imagens de abuso é substituída por iguais doses de arrependimento. Só que, se filmes de expiação do artista branco se caracterizam, en passant de Stanley Kramer a Steven Spielberg, pela nobreza nietzschiana da vontade de potência, nada poderia ser mais distante do que vemos aqui. Django Livre se constrói, assim como “Sweet Sweetback’s Baadasssss Song”, por meio de uma série de imagens de violência branca perpetuada por figuras de autoridade, oficial ou tendo o social pela culatra, sobre o corpo do seu protagonista. Quando Quentin Tarantino se dispõe a lançar uma manada de cães de caça sobre um  coadjuvante negro, ou quando coloca Jamie Foxx dependurado nu para ser torturado, é impossível esconder seu prazer em encenar tais situações sadistas de culpa branca (cf. Steele, 2007). Por mais que Tarantino seja identificado como cinéfilo, são poucos os que observam em seus filmes a incidência das várias referências que não sejam cinematográficas ou a importante presença da televisão na vida de seus personagens. Trata-se de um cineasta – e lembremo-nos: cinéfilo – que já parece pensar num cinema que seria incompleto caso não reconhecesse uma cultura publicitária e televisiva em sua construção, que também passa a ser um processo da reconstituição da cinefilia.
Contudo, se o sadismo nos filmes de “culpa branca” é geralmente apresentado com a distância de uma lição de civilidade, não haverá espaço para tais bons modos em Django Livre: longe de apaziguado, o sadismo aqui não foge ao seu papel de espetáculo. Se a última década da obra de Tarantino apostou na capacidade de redenção do próprio cinema, ele finalmente encontra um tema que o cinema e, por consequência, o próprio Tarantino, grande consumidor de imagens que ele é, não pode redimir – muito pelo contrario – fundado como o cinema norte-americano é sobre imagens de violência que frequentemente trazem consigo um forte componente racial. Se todos são muito conscientes do próprio papel em Django Livre, nenhum ator será mais consciente que o realizador, produtor e consumidor voraz do próprio sadismo e, por consequência, ao próprio espectador, a quem jamais será permitida a superioridade diante do que vê. Logo, não é surpresa que ele exploda a si mesmo com igual entusiasmo sádico minutos antes de implodir a casa grande tão simbólica, mas sobretudo representativa do racismo norte-americano durante o séc. XIX.
Primariamente, tais diferenças culturais começaram devido a diferenças com base no determinismo geográfico na região das Treze Colônias britânicas no âmbito do processo civilizatório. No sul, os primeiros ocupantes encontraram um clima quente e um solo fértil, ideal para o cultivo de tabaco. Grandes plantações de tabaco foram cultivadas, e mão-de-obra escrava foi trazida em quantidade do continente africano. Posteriormente, algodão e cana-de-açúcar passaram a ser cultivados nestes Estados. Rapidamente, a agricultura do sistema de Plantation e um estilo de vida primariamente rural passou a dominar os estados do Sul. Enquanto isto, o clima frio e o solo rochoso dos Estados do Norte mostraram-se pouco adequados à prática da agricultura.
Isto forçou os colonos desta região a procurarem outras fontes de renda como o comércio e a manufatura, favorecendo assim a criação de grandes cidades comerciais como Boston, Filadélfia e Nova Iorque - no ano do início da Revolução Americana de 1776, a maioria da população do Norte ainda vivia em áreas rurais, contrariamente a economia destes Estados já era baseada primariamente no comércio e na manufatura. Após a Independência dos Estados Unidos, e até a década de 1850, as diferenças entre o Norte, cada vez mais industrializado, e o Sul agropecuário aumentavam gradativamente. Na década de 1850, os Estados Unidos já haviam se expandido até seus atuais limites territoriais na América do Norte. Posteriormente, adquiriria o Alasca, da Rússia, Havaí e outros territórios ultramarinos. Então, os Estados Unidos já estavam em uma fase monopolista de rápida industrialização. Porém, o rápido crescimento econômico do país esteve concentrado primariamente nos Estados do Norte. Este crescimento causou o rápido crescimento populacional das cidades da região, gerando grandes avanços na área de transportes e comunicações. Apesar do Sul também ter passado por este processo, o progresso ocorreu muito mais lentamente do que no Norte.
O caráter capitalista da “plantation” escravista do sul, análogo aos Estados do norte, era em certa medida uma contradição, mas em última instância, de oposição assimétrica no sentido formal marxista interno ao sistema econômico. Contudo, em sua complementaridade uma economia escravista tende a inibir o desenvolvimento econômico de uma sociedade capitalista, tal como apontado, neste caso pelo sociólogo Max Weber em seu livro: The Theory of Social and Economic Organization. Além disso, o retorno dos lucros de volta à produção, no caso de Marx, presente no norte industrializado, não ocorria da mesma forma nos estados do sul, que tinham uma acentuada tendência a um consumo intenso, daí o binômio marxista: produção-consumo. Esse fato histórico e ideológico se deve à conservação da mentalidade (Weltanschauung) escravista do proprietário sulista, que investia economicamente na compra de escravos como mercadoria, pois “dava prestígio e segurança econômica e social numa sociedade dominada pelos plantadores”.
Os consequentes “saltos qualitativos”, na falta de melhor expressão, na produção nortista levaram os proprietários de terras sulistas a uma aguda disputa com os proprietários do norte. Se for aceita a condição capitalista para os estados do sul (Marx), assim como para os estados do norte (Weber), tem-se então uma sociedade capitalista que impediu o desenvolvimento do próprio capitalismo, fato que historicamente tende a revoltas, guerras civis e revoluções, ainda mais considerando que o sul apresentava economicamente problemas de produção de produtos para o consumo interno. Assim, norte e sul diferem-se na medida em que o primeiro possui um progresso econômico qualitativo com o retorno dos lucros à produção, e o sul, por sua vez, ao dirigir seus lucros em escravos e terras, possui um progresso econômico quantitativo, levando-se em consideração a só aparente baixa produtividade da mão-de-obra escrava.            
Quentin Jerome Tarantino é um premiado diretor, roteirista, produtor de cinema e ocasionalmente ator dos Estados Unidos. Alcançou a fama rapidamente no início da década de 1990 por seus roteiros não-lineares, diálogos memoráveis e o uso de violência que trouxeram uma vida nova ao padrão de filmes norte-americanos. É o mais famoso dos jovens diretores por trás da revolução de filmes independentes dos anos 1990, tornando-se conhecido pela sua verborragia, seu conhecimento enciclopédico de filmes, tanto populares, quanto os considerados “cinema de arte”. Aos 22 anos escreveu seu primeiro roteiro, “Captain Peachfuzz and the Anchovy Bandit”. Em 1984 Tarantino começou a trabalhar na Video Archives, uma locadora de filmes em Manhattan Beach; tornando-se amigo de Roger Avary, um colega de trabalho com quem mais tarde viria a colaborar em “Pulp Fiction”. Ele continuou seus estudos em atuação na Allen Garfield`s Actors' Shelter, em Beverly Hills, passando-se a se dedicar a escrever roteiros.
Seus primeiros roteiros vendidos, “True Romance” e “Natural Born Killers”, tiraram-lhe do anonimato. Ele conheceu Lawrence Bender numa festa em Hollywood, e Bender incentivou Tarantino a dirigir um filme. O produto final dessa conversa foi “Reservoir Dogs”, de 1992, um filme estiloso e de violência simbólica, que definiu a démarche de seus filmes seguintes. O script foi lido pelo diretor Monte Hell-man, que ajudou a levantar fundos junto à Live Entertainment, bem como garantir o lugar de Quentin Tarantino na direção do filme. Harvey Keitel ouviu falar do roteiro através de sua esposa, que foi colega de Lawrence Bender. Ele leu o roteiro e também contribuiu com investimentos, assumiu o papel de produtor executivo, e um personagem no filme. Em 2007, o cineasta Quentin Tarantino discutiu uma ideia particular para uma forma de western spaghetti nos Estados Unidos pré-Guerra Civil Deep South, que ele chamou de “a southern”, dizendo o que ele pretendia naquele empreendimento: - “Quero criar filmes que lidem com o horrível passado de escravatura da América, mas fazê-los como western spaghetti”, acrescentando que, sendo cinema de gênero, “enfrentarão tudo aquilo com que a América nunca se defrontou por sentir vergonha disso, e outros países não tratam sobre isso porque não sentem que tenham direito a fazê-lo”. Explicou posteriormente a gênese da ideia, “sim e não”. – “A ideia de fazer um spaghetti western é anterior, me acompanha há mais de dez anos e talvez tenha me acompanhado desde sempre, mas começou a nascer efetivamente há uns sete ou oito anos”.            
Para Tarantino foi precedida pelo seu desejo de escrever um livro sobre o outro Sergio (Corbucci). Revi seus filmes, fiz anotações. O meu Django começou a tomar forma. E já nasceu um ex-escravo. Estava num hotel no Japão, promovendo “Bastardos Inglórios”, quando a cena inicial me veio inteira. A fila de escravos, a explosão de violência, até o cavalo do Dr. Schultz. Falei com os produtores e, neste sentido, sim, o filme foi consequência do sucesso de Bastardos. Eles toparam na hora”.  Django (Jamie Foxx) é um escravo que tem seu destino completamente alterado quando é adquirido no mercado pelo Dr. King Schultz (Christoph Waltz), alemão com a insígnia de “caçador de recompensas” que se esconde atrás de um disfarce de dentista.
       A aquisição feita por King Schultz, no entanto, não é aleatória, pois ele precisa da parceria e ajuda de Django para identificar seus próximos alvos. Em contrapartida, Schultz promete libertar Django assim que a missão for cumprida. Depois de ser tornar um homem livre na sociedade escravocrata norte-americana, Django continua na estrada com Schultz, de quem agora é parceiro comercial, até que é chegada a hora do grande desafio na vida de um homem: enfrentar o poderoso Calvin Candie (Leonardo DiCaprio) para libertar sua esposa escravizada, Broomhilda von Schaft (Kerry Washington).  Kerry Marisa Washington é uma atriz norte-americana famosa pela sua atuação como protagonista na série de televisão Scandal. É reconhecida por seus papéis como Della Bea Robinson, no filme Ray (2004), por seu papel em O Último Rei da Escócia (2006), como Alicia Masters, nos filmes Quarteto Fantástico e Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado, e como Broomhilda von Schaft, no filme de Quentin Tarantino Django Unchained (2012). Estrelou em filmes aclamados na crítica “independente” como ocorreu em  Nossa Canção (2000), The Dead Girl (2006) e Noite nos pega (2010).
Uma inspiração para o filme é o Spaghetti Western de 1966 Django de Corbucci, cuja estrela Franco Nero tem uma breve aparição em “Django Unchained”. Outra inspiração é o filme de 1975 Mandingo, sobre um escravo treinado para lutar contra outros escravos. Tarantino incluiu cenas na neve como uma homenagem a “The Great Silence”. – “Silenzio ocorre na neve. Gostei da ação na neve tanto, Django Unchained tem uma seção de neve grande no meio”, disse Tarantino em entrevista. O título: “Django Unchained” alude os títulos do filme Django de 1966 de Corbucci; “Hercules Unchained”, o título norte-americano para o filme italiano épico de fantasia de 1959: “Ercole e la regina di Lidia”, que lida com a fuga do herói mítico da escravidão a um mestre ímpios, e “Angel Unchained”, o filme de motociclista estadunidense de 1970 que lida com uma vingança exigente de um motociclista em um grupo de rednecks.
O filme é um clássico tarantinesco que dialeticamente equilibra uma história social e política com faroeste, lendas alemãs, daí algumas expressões em alemão, referências pop, cenas aparentemente divertidas e  sangue para narrar a vida de um homem que já passou uma temporada no inferno e agora quer reencontrar seu grande amor e se vingar dos seus opressores. Durante a longa jornada de Django, vemos sua transformação na passagem de escravo submisso, assustado e compassivo em um homem seguro, frio e, muitas vezes, cruel, que faz o que tem que ser feito para alcançar seus objetivos pragmáticos. Uma peça crucial dessa metamorfose é, sem dúvida, Schultz, um homem impiedoso com bandidos, mas que no fundo, tinha um sentimento que não suportava ver inocentes sofrendo e que tinha nojo da escravidão. A amizade de Django e Schultz é incrivelmente sólida e verdadeira. Vale destacar as atuações inspiradas de Christoph Waltz, do fazendeiro arrogante vivido por Leonardo DiCaprio e do escravo racista e invejoso interpretado por Samuel L. Jackson.

Enfim, no ensaio coletivo: “O Gatilho mais Rápido do Sul: Estereótipos no filme Django Livre” (cf. Santos “et alii”, 2020), há uma cena de negociação com os mercadores de escravos para que o soltem, depois de o plano em Candyland ter desandado. Ele utiliza os mesmos truques, o que é significativo como expressão na sociedade norte-americana, e claro usual no cinema, que Schultz usou na cidade de Daughtrey para convencê-los a soltá-lo, mostrando o “panfleto da recompensa” do bando de Bacall. Os mercadores não ficam muito convencidos de que Django está falando a verdade. Para certificar-se disso, pedem aos outros negros, que estavam presos, se Django realmente era um “homem livre” vindo a Candyland “montado em um cavalo e acompanhado de um branco”. Depois destes terem confirmado o que Django dissera, os mercadores veem ali uma oportunidade de ganhar dinheiro e concordam com o “trato” que o ex-escravo propôs: de soltá-lo, dar a ele um cavalo e $500,00 do valor que seria recebido da recompensa. Eles oferecem a Django um cavalo, mas o mesmo recusa, dizendo: “eu não vou montar num cavalo com dinamites”; prontamente, os mesmos se põem a retirar as dinamites e dar-lhe uma arma. Assim que Django recebe a arma, ele mata todos os mercadores e explode o homem que estava transportando as dinamites, interpretado pelo próprio Quentin Tarantino. Esse momento do filme pode ser interpretado como o instante em que Django perde suas “correntes”, se tornando de fato unchained e se desprendendo totalmente de seu lado submisso, explodindo inclusive, figurativamente, o diretor do filme.  

O momento se torna ainda mais relevante quando Django surge em meio a fumaça da explosão, remetendo ao cowboy no “mito da fronteira”, o qual é relacionado à uma figura heroica, e deixando os escravos que estavam presos boquiabertos. Após esse acontecimento, Django cavalga rumo a sua vingança deixando para trás os presos. Na cena seguinte, dá-se um foco no rosto de um dos cativos, que está sorrindo, esse ato pode ser interpretado como um sentimento coletivo de vingança perante aos brancos. Até chegar ao encontro de Brunhilde, Django passa por alguns lugares. Um deles é uma pequena casa onde encontram-se alguns capangas da fazenda Candyland, onde o caçador de recompensas assassina todos os presentes. O último lugar pelo qual Django passa antes de se encontrar com sua amada é onde está o corpo falecido de Schultz. Assim que adentra, Django pega seu fiel chapéu. Durante todo este tempo, o caçador de recompensas mantém seu olhar fixo no corpo de seu amigo. Assim que coloca seu chapéu, Django vai até o mesmo, toca seus cabelos e dita as palavras: Auf Wiedersehen, o que denota, seu significado e sentido de Adeus, que o negro livre, mesmo que pouco, aprendeu certas palavras na língua nativa de Schultz (alemão), que no pragmatismo de Max Weber, quer dizer o seguinte: “fim é a representação de um resultado que se converte em causa de uma ação

Em 24 de fevereiro de 2005 foi anunciado que Tarantino dirigiria o episódio final da série CSI: Crime Scene Investigation uma popular e premiada série dramática norte-americana exibida pelo canal CBS. A série é centrada nas investigações do grupo de cientistas forenses do departamento de criminalística da polícia de Las Vegas, Nevada. Estes cientistas desvendam crimes e mortes em circunstâncias misteriosas e pouco comuns. O episódio de duas horas, “Grave Danger”, entrou no mercado da indústria cultural em 19 de maio, com audiência recorde e sucesso de críticas. Apesar de Tarantino ser mais conhecido por seu trabalho atrás das câmeras, ele também apareceu na primeira e na terceira temporadas da série de televisão “Alias”. Em 2005  anunciou um novo projeto chamado “Grindhouse” em parceria com Robert Rodriguez, onde escreveu e dirigiu “Death Proof” que foi estrelado por Kurt Russell e Rosario Dawson. Mais tarde também anunciou continuidade para Kill Bill (Vol. 2) e Inglorious Basterds, mas declarou em 2012 ter desistido destas ideias. No mesmo ano lançou Django Unchained, um faroeste que repetiu a parceria com Christoph Waltz. O lançamento da película nos Estados Unidos da América (EUA) ocorreu em 25 de dezembro de 2012, e no Brasil foi lançado dia 18 de janeiro de 2013. Entre seus recentes créditos como produtor, estão o filme considerado de terror “Hostel”, que inclui referências a “Pulp Fiction”; a adaptação de Killshot, de Elmore Leonard; e Hell Ride escrito e dirigido pela estrela de Kill Bill, Larry Bishop.
Tarantino esteve romanticamente envolvido com diversas mulheres, incluindo a atriz vencedora do Oscar Mira Sorvino; as diretoras Allison Anders e Sofia Coppola; a atriz francesa Julie Dreyfus; e a comediante Margaret Cho. Surgiram rumores de envolvimento com Uma Thurman, a quem ele se refere como “sua” musa. Entretanto, Tarantino nunca se casou e não tem filhos. Quase dois anos após o lançamento de Inglorious Basterds no cinema Tarantino confirmou a gravação de seu novo filme, “Django Unchained”, como vimos um western no qual um ex-escravo torna-se um perigoso mercenário, com Jamie Foxx no papel principal. As gravações se iniciaram no Estado da Louisiana e a obra foi lançada no início de 2013. Tarantino figura na lista de “Special thanks” do encarte do disco “In Utero” do Nirvana, lançado em 1993, onde curiosamente o nome do diretor aparece como “Tarentino, Quentin”. Segundo o site Filmdrunk, a razão do diretor aparecer nessa lista deve-se ao fato social de ele ter requerido inicialmente que Kurt Cobain atuasse em “Pulp Fiction” na interpretação do papel de Eric Stoltz. Em novembro de 2014 revelou durante uma entrevista relativa ao filme “The Hatefull Eight” que pensa reformar-se após concluir o seu décimo filme como diretor.
Bibliografia geral consultada.

GRAY, Lewis Cecil, History of Agriculture in the Southern United States to 1860: Contributions to American Economic History. Washington: Carnegie Institute of Washington, 1933; GENOVESE, Eugene, A Economia Política da Escravidão. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 1976; TOCQUEVILLE, Alexis de, De la Démocratie en Amérique. Paris: Éditions Flammarion, 1981; REIS, Helena Esser dos, A Liberdade do Cidadão: Uma Análise do Pensamento Ético-Político de Alexis de Tocqueville. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002; BAILYN, Bernard, As Origens Ideológicas da Revolução Americana. Bauru: Editora Universitária do Sagrado Coração, 2003; JASMIN, Marcelo, Alexis de Tocqueville: A Historiografia como Ciência da Política. 2ª edição. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais; Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro, 2005; STEELE, Shelby, White Guilt. USA: Editor Harper, 2007; LOPES, Gilberto, El Fin de la Democracia: Un Diálogo entre Tocqueville y Marx. Costa Rica: Editorial Juricentro, 2009; SANTOS, Fabrício Cordeiro dos, A Cinefilia no Cinema de Quentin Tarantino. Dissertação de Mestrado em Ciências. Faculdade de Informação e Comunicação. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2013; OLIVEIRA, Adriano Anunciação, Cópias em Glória: O Cinema Bastardo de Quentin Tarantino. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Instituto de Letras. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2014; COUTINHO, Mariana de Souza, Django Livre: Tradução Intersemiótica do Cinema para as Histórias em Quadrinhos. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação  em Estudos da Linguagem. Instituto de Letras. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2015; CARVALHO, Lúcio Flávio Teixeira de, Dos Filmes de Máfia para os de Velho Oeste. Um Estudo sobre os Contratos de Comunicação e Promessas na Obra de Quentin Tarantino. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2015; QUEIROZ, Filipe Artur de Sousa, Aproximação entre Atividades Narrativas: O Cinema e a História. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2016; entre outros.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Quentin Tarantino: Cinema Sobre Ódio (de Raça) & de Classe Social.

                                                Ubiracy de Souza Braga*

Eram sombrios, atormentados pelo passado. Eu quis fazer um filme de personagens como estes”. Quentin Tarantino


              O filme do diretor norte-americano Quentin Tarantino, Os Oito Odiados (2015), é o oitavo longa-metragem do cineasta. É um filme sem heróis, talvez condicionado historicamente pelo fim da Guerra de Secessão nos Estados Unidos da América entre os anos de 1861 a 1865. Uma diligência se desloca por uma paisagem montanhosa e invernal. Os passageiros são o caçador de recompensas John Ruth, interpretado por Kurt Russell, quase irreconhecível com farto bigode, que pretende entregar a fugitiva Daisy Domergue, representada por Jennifer Jason Leigh para obter dinheiro na cidade de Red Rock. Ao longo da estrada eles encontram dois contraditórios forasteiros: Marquis Warren, interpretado por Samuel L. Jackson, um ex-soldado negro que se tornou também um caçador de recompensas, e Chris Mannix, interpretado por Walton Goggins, no papel de um sulista renegado que diz ser o mais novo xerife da cidade. Um caçador de recompensas é um civil que tenta capturar criminosos fugitivos para receber recompensas financeiras. Nos Estados Unidos da América (EUA), os caçadores de recompensa econômica são homens relativamente comuns. Em 1873, na Suprema Corte de Justiça norte-americana, o caso Taylor vs. Taintor deu autoridade quase ilimitada para os caçadores de recompensas. No Brasil está em curso, não um prêmio, pois estes em geral obtém cargos como valor de troca, mas licença para matar. Diferente de um policial, eles não precisam de um mandado para invadir uma casa. Além disso, não precisam de treinamento e, geralmente, não possuem licença.
             Quando falamos em classe social para pensarmos esse determinado tipo de preconceito, não devemos considerar apenas esse sentido visto na dialética de Marx, o qual pressupõe a existência da luta de classes com interesses antagônicos e complementares na sociedade capitalista, o que não deixa de ser importante. Deve-se falar em classe social em sentido mais amplo, considerando os diversos grupos sociais numa classificação socioeconômica, sua posição ou status na estrutura social, fato que sugere a existência não apenas de duas classes, mas de tantas outras frações a depender como os níveis de renda, de escolaridade, de acesso à assistência médica, entre outros fatores. Em outras palavras, devemos pensar a ideia de preconceito de classe social para além da chave burguês/proletário. Considerando a existência de classes mais abastadas economicamente (milionários, ricos, classe média alta) e outras com menos recursos (classe média, média baixa, pobres, miseráveis), sendo o trabalho o fator determinante de sua posição social e, dessa forma, do preconceito de classe.
 

         Comparativamente o filme segue a tradição inaugurada de forma egrégia em O Anjo Exterminador, clássico surrealista do espanhol Luís Buñel, em que as convenções sociais desmoronam como um castelo de cartas, envolta em angústia, sofrimento, ódio e desespero, depois que aristocratas se veem presos na sala de uma mansão depois de um extraordinário jantar, mas seu ente mais próximo, seguindo tal direção, é “Cães de aluguel”, de 1992, estreia de Tarantino, em quase toda a ação se passava num galpão. Lá dentro, o espectador acompanhava o enquadramento muito perto de uma rede de suspeitas, combinando a tensão crescente no plano da ação e os acertos de contas de um bando de ladrões de diamantes. Analogamente, o filme: Os Oito Odiados é preciso, dentre os sentidos e sintomas claustrofóbicos mais atuais e conflitantes individual e coletivamente no cinema. Para sua trilha sonora, além disso, retoma o velho e bom “western” macarrônico de Ennio Morricone. A música evidentemente aumenta a aflição do espectador e evoca no imaginário individual (os sonhos) e coletivo (mitos, ritos, símbolos) a memória dos velhos e consagrados westerns da tradição cinematográfica.  

Exilado da Espanha, desde a Guerra Civil Espanhola (1936-39), Luis Buñuel foi convidado a voltar ao seu país natal em 1960 por General Franco. Nessa viagem de volta, Buñuel escreveu e dirigiu Viridiana, estrelado por Silvia Pinal com produção do marido dela, Gustavo Alatriste. Foi o primeiro filme espanhol do diretor. Lançado em 1961, o filme causou controvérsias tanto na Espanha quanto no Vaticano, tendo sido ordenado que todos os negativos fossem destruídos. A produção, contudo, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes e as cópias que tinham sido enviadas a Paris foram preservadas e mais tarde distribuídas. Viridiana foi lançado na Espanha, 16 anos depois, em 1977. Em seguida ao escândalo de Viridiana, Buñuel voltou ao México, mas manteve a mesma equipe de produção. Decidiu então fazer outro filme estrelado por Pinal. Originariamente com o título “Os náufragos da Rua da Providência”, foi renomeado como “O anjo exterminador”, que Buñuel tirou de uma peça inacabada de seu amigo José Bergamín. Foi lançado no México em 1962 gerou controvérsias como o filme predecessor. Buñuel completou a trilogia com Pinal e Alatriste  e o filme de 1965, Simón del Desierto.

 Neste filme, com influências do surrealismo, Buñuel despe a sociedade aristocrata, em que ricos personagens se veem presos numa das salas de uma mansão após um jantar formal. Não há nada físico que os impeça de sair, porém algo os faz refém de portas e grades imaginárias. Com o decorrer dos dias, as convenções sociais vão caindo, as barreiras imaginárias permanecem, e as máscaras desprendem-se de cada personagem, aflorando os mais primitivos instintos: o improviso de um banheiro, desejos sexuais reprimidos, a fome, a sede e até mesmo a morte. A crítica à Igreja, como sempre em Buñuel, está presente em diversos momentos, como com os cordeiros que passeiam pela mansão e são devorados pelas pessoas presas. Devido a uma nevasca, lembrando cenas de Akira Kurosawa, eles ficam presos num armazém, onde encontrarão figuras tão ou mais sinistras do que eles mesmos: um vaqueiro (Michael Madsen), um general confederado (Bruce Dern) e um enforcador (Tim Roth). 

Não é difícil imaginar porque será um encontro tenso. O próprio diretor, que também assina o roteiro, advertiu em entrevista: -“Ninguém é herói neste filme”. Um dos destaques está na música, composta pelo maestro Ennio Morricone. Em sua visita a São Paulo para divulgar o longa-metragem, Tarantino revelou que o italiano é o seu compositor favorito.  Morricone compôs o tema a partir da leitura do roteiro e sugere que a violência simbólica que está por vir, comentou o cineasta. A novidade que se esgueira como decorrência do ódio de classe e raça, é que nenhum deles, nem o público, como entre eles se revela as verdadeiras intenções um do outro. Entrementes esta trilha original já ganhou indicação para o Globo de Ouro na sua categoria, ao lado das nomeações para Melhor Roteiro Original (Tarantino) e Melhor Atriz Coadjuvante para Jennifer Jason Leigh, em premiação posteriormente concedida. O ódio de classe e raça já começa a se manifestar a partir da conversa entre essas quatro pessoas norte-americanas do século XIX, poucos anos após o fim da Guerra Civil. Lembra certamente um pouco No Tempo das Diligências (1939), da cinematografia de John Ford.  

Ao juntar um grupo heterogêneo de pessoas em um pequeno espaço. A diferença é que com Tarantino temos um elemento negro e forte, vivido por Jackson, e a mulher, por sua vez, não é nenhuma dama, mas uma potencial assassina, uma vadia como insiste o texto, que deve ser tratada pela violência masculina na pancada até ser devidamente enforcada. O ritmo do novo filme distingue-se em tempos e movimentos do palpitante Pulp Fiction. Parte dos críticos não gostou, menos pela falta de ideias, cenas mais lentas e o fato de que os silêncios diante da telona encontram-se mais a serviço da narrativa do que do domínio das imagens, identificado no universo extremo de um cineasta estiloso. A questão da modernidade do uso da técnica depois da análise social de Habermas, como se transmitem as marcas da violência constituída, se a realidade histórica do século XXI não é outra?
Segundo o teórico Jacques Aumont, o que caracteriza o plano-sequência não é apenas a sua duração, mas o fato de que tecnicamente pode ele ser articulado para representar o equivalente de uma sequência. Conviria, portanto, a distinção do plano longo onde nenhuma sucessão de acontecimentos é representada, tais como planos fixos de duração fora da média de diálogos ou simples localizações de personagens e cenários. Mas o próprio Aumont adverte que esta distinção é difícil. Por isso, muitas vezes, o conceito oriundo da comunicação social de “plano-sequência” é confundido com o de plano longo. Se fosse considerada apenas a duração, seria forçoso concluir que os filmes dos irmãos Lumière, já em 1895, eram formados por planos-sequência, uma vez que eram filmes inteiros rodados num único plano de 40 a 45 segundos de duração. Mas seria uma conclusão imprecisa, pois o próprio conceito de plano técnico ainda não tinha sido formulado.  
                Muitos historiadores consideram que o filme “Aurora”, de Murnau (1927)   conteria um dos primeiros verdadeiros planos-sequência filmados, no trecho em que o Homem (George O'Brien) corre em direção à Mulher da Cidade (Margaret Livingston), acompanhado pela câmara em movimento de travelling. Em “Ninotchka” (1939), de Lubitsch, há um longo plano em que o Conde d`Algout (Melvyn Douglas) tenta fazer rir a agente soviética representada por Greta Garbo, contando-lhe piadas das quais ela não acha graça, mas que termina com o conde caindo da cadeira e, finalmente, provocando na moça uma gargalhada. Em 1948, o genial Alfred Hitchcock tentou fazer um longa-metragem inteiro rodado num único plano-sequência, o extraordinário “Festim diabólico” que trás a marca da pulsão nietzschiana no cinema. Como os maiores rolos de película fabricados continuam sendo de 1000 pés (11 minutos), o filme acabou sendo rodado em 12 planos, entre 4 e 10 minutos cada, e com cortes aparentemente invisíveis entre eles, com a impressão de um único plano. Roberto Rossellini no cinema italiano, Kenji Mizoguchi no cinema japonês e Mikhaïl Kalatozov no soviético utilizaram o plano-sequência em seus filmes rodados entre as gloriosas décadas de 1950 e 1960.     
   
    
O plano-sequência continua sendo usado no cinema contemporâneo, mas normalmente sem a defesa ideológica que costumava acompanhá-lo nos anos 1960. É uma técnica audiovisual em que uma cena é apresentada sem cortes, geralmente para acompanhar o personagem a partir de uma única perspectiva e ao longo de uma ação planejada. Alguns cineastas como Brian De Palma, Stanley Kubrick, Alfonso Cuarón, Martin Scorsese, Paul Thomas Anderson, etc., souberam utilizar planos-sequências em momentos-chave, provocando no espectador a sensação de mudança na relação entre o tempo do filme e o tempo da história que ele narra, que normalmente é estabelecida pela decupagem e pela montagem. Já diretores como Theo Angelopoulos, Jim Jarmusch e Andrei Tarkovski tornaram-se conhecidos por rodarem filmes inteiros estruturados em um pequeno número de longos planos-sequência. Assim que a tecnologia digital superou a limitação dos rolos de 11 minutos, experiências mais radicais puderam ser tentadas: em 2002, Alexander Sokurov rodou “A Arca russa” em um único plano-sequência de 96 minutos; antes ainda, em 2000, Mike Figgis realizou “Timecode” em 4 planos-sequência de 97 minutos cada, rodados ao mesmo tempo com quatro câmaras digitais e, no filme, exibidos simultaneamente numa tela dividida em quatro. Em 2015, “Birdman” foi gravado em planos-sequências. Ganhou o prêmio de Melhor Filme no Oscar.

De todo modo a patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática, e nos faz lembrar a expressão de despedida de Gilles Deleuze, que tomamos de empréstimo, através das palavras, entre as palavras, que se vê e que se ouve: - “A vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever?”. Ipso facto, no prefácio à 2ª edição da obra Da Divisão do Trabalho Social, de Émile Durkheim (2010) lembra-nos da ideia que ficou na penumbra na primeira edição e que parece útil ressaltar e determinar melhor, pois ela esclarecerá melhor algumas partes do presente trabalho. Trata-se do papel que os agrupamentos profissionais estão destinados a desempenhar na organização social dos povos contemporâneos.  Mas o que proporciona, particularmente nos dias de hoje, excepcional gravidade a esse estado é o desenvolvimento então desconhecido, que as funções econômicas adquiriram nos últimos dois séculos, aproximadamente.

Estamos longe do tempo em que eram desdenhosamente abandonadas às classes inferiores, pois diante delas, vemos as funções militares, administrativas, religiosas recuarem cada vez mais. Somente as funções científicas, adverte o pragmático sociólogo, que encetou sua obra magnífica em torno de dez anos de produção ininterrupta, de reconhecimento, estão em condição de disputar-lhes o lugar – e ainda assim, a ciência contemporaneamente só tem prestígio na medida em que pode servir à prática, isto é, em grande parte, às “profissões econômicas”. É por isso que se pode dizer, não sem alguma razão, que elas são ou tendem a ser essencialmente industriais. Uma forma de atividade generalizada que tomou lugar na vida social não pode permanecer tão desregulamentada, em sua atividade, sem que disso resulte os impactos sociais sobre a divisão do trabalho e as mais profundas perturbações.

Mas sofrer na vida social e afetiva não é uma fatalidade. É, em particular, como decorre e testemunhamos, uma fonte de desmoralização geral real. Pois, precisamente porque as funções econômicas absorvem o maior número de cidadãos, para o pleno desenvolvimento da vida social, há uma multidão de indivíduos, como dizia Freud, cuja vida transcorre quase toda no meio industrial e comercial; a decorrência disso é que, como tal meio é pouco marcado pela moralidade, a maior parte da existência transcorre fora de toda e qualquer ação moral. A tese funcionalista expressa na pena de Émile Durkheim, como uma espécie de antídoto da civilização, e que o sentimento do dever cumprido se fixe fortemente em nós, é preciso que as próprias circunstâncias em que vivemos permanentemente desperto. A atividade de uma profissão só pode ser regulamentada eficazmente por “um grupo próximo o bastante dessa mesma profissão para conhecer bem seu funcionamento, para sentir todas as suas necessidades e poder seguir todas as variações destas”. O único grupo que corresponde a essas condições é o que seria formado por todos os agentes de uma mesma condição reunidos num mesmo corpo. E que a sociologia durkheimiana conceitua de corporação ou grupo profissional. É na ordem econômica que o grupo profissional existe tanto quanto a moral profissional. Desde que, não sem razão, com a supressão das antigas corporações, não se fizeram mais do que tentativas fragmentárias e incompletas para reconstituí-las em novas bases sociais. 

Uma das lições mais importantes de Sigmund Freud diz respeito à maneira como repetimos, de maneira inconsciente, situações traumáticas que nos causam desprazer. Isso vale tanto para o indivíduo, quanto para a sociedade. O indivíduo que não consegue esquecer uma determinada situação angustiante, ou que repete os mesmos erros, mesmo sabendo que são erros, está submetido a uma espécie de compulsão à repetição. Mas isso não vale apenas para o indivíduo, mas para a sociedade. Freud dizia que os limites entre a psicologia individual e a psicologia das massas são tênues. No texto “O homem Moisés e a religião monoteísta”, conjunto de três ensaios freudianos gestados durante anos e publicados em conjunto pela primeira às vésperas da 2ª guerra e da morte do criador da psicanálise. Em meio ao antissemitismo que varria a Europa, em meados da década de 1930, Freud estava interessado em entender por que os judeus atraíram para si tanto ódio no universo da arte, cultura e política.
A argumentação de Sigmund Freud, simplificadamente revela sua lógica interna: (1) um acontecimento traumático, violento ocorre a um determinado povo; (2) a lembrança desse acontecimento é reprimida para o inconsciente e/ou desmentida; (3) segue-se um período de latência; (4) um novo acontecimento faz emergir aquilo que havia sido recalcado/reprimido ou desmentido. O que retorna não retorna do mesmo jeito, evidentemente, mas retorna disfarçado, sob as novas formas de sentir, agir e pensar. Este retorno encarna culpa e ódio, uma vez que a ideia e o afeto se desligaram. Transmitimos essa herança através de nossos valores, de nosso discurso, do nosso modo de lidar com o outro. O esquecimento da violência traumática da escravidão deixa traços e vestígios, que, desmentidos e recalcados, retornam depois de algum período de latência, justamente quando uma massa de excluídos passa a contar politicamente, passa a ser incluída na sociedade e não mais em sua margem apenas, mas caminhos em que uma violência original é desmentida, mas retorna sob outros disfarces. 
Enfim, se o que ele narra é verdade ou mentira, pouco importa: é algo que existe na tela e na imaginação social do espectador. Estamos diante de uma obra de ficção, não da realidade. As fraturas raciais, psicológicas e sociais, as transgressões do individualismo possessivo na direção do individualismo fóbico, as tortuosas noções de Lei e Direito, que funcionam para uns e não para todos, tudo isso está presente no filme, mas em perpétuo movimento, como num carrossel. Não há discurso político pronto, e muito menos lição moral. Tudo somado, “Os Oito Odiados” podem ser visto como uma “comédia cruel”, mas com um refinamento melancólico, para lembramos de Walter Benjamin, onde a leitura de uma célebre carta, ao fim e ao cabo, mencionada ao longo de toda a narrativa tinge-se de uma triste ironia de fundo religioso. É quase um  “réquiem aeternam dona eis, Domine”, pelo país que poderia ter sido após o massacre de inocentes, índios e negros. Processo político em seus resquícios através dos quais tiveram suas raízes ideológicas e culturais abortadas no processo de insurreição e Independência no âmbito da revolução sócio-política liberal radical norte-americana.   
Bibliografia geral consultada.

GRAY, Lewis Cecil, History of Agriculture in the Southern United States to 1860: Contributions to American Economic History. Washington: Carnegie Institute of Washington, 1933; LYOTARD, Jean-François, Économie libidinaleParis: Éditions de Minuit, 1974; GENOVESE, Eugene, A Economia Política da Escravidão. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 1976; BERMAN, Marshall, All That Is Solid Melts into Air: The Experience of Modernity. London: Penguin Books, 1981; LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand, Vocabulário da Psicanálise. 9ª edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1986; FREUD, Sigmund, “Os Instintos e suas Vicissitudes”. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996; vol. XIV; TOCQUEVILLE, Alexis de, A Democracia na América. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000; JANK, Marcos Sawaya, Agricultura e política agrícola nos Estados Unidos da América. Tese de Livre Docência em Economia, Administração e Sociologia. São Paulo: Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, 2002; BAILYN, Bernard, As Origens Ideológicas da Revolução Americana. Bauru (SP): EDUSC, 2003; MORETTI, Franco, Signos e Estilos da Modernidade: Ensaio sobre a Sociologia das Formas Literárias. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007; ARENDT, Hannah, Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2007; GLUCKSMANN, André, O Discurso do Ódio. Rio de Janeiro: Difusão Europeia do Livro, 2007; DURKHEIM, Émile, Da Divisão do Trabalho Social. 4ª edição. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010; SANTOS, Fabrício Cordeiro dos, A Cinefilia no Cinema de Quentin Tarantino. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Mestrado em Comunicação. Faculdade de Informação e Comunicação. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2013; OLIVEIRA, Adriano Anunciação, Cópias em Glória: O Cinema Bastardo de Quentin Tarantino. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Instituto de Letras. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2014; ECO, Umberto, Apocalípticos e Integrados. Coleção Debate, vol. 19. 7ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015; COUTO, José Geraldo, “Os Oito Odiados, Réquiem pelos Estados Unidos”. In: http://outraspalavras.net/08/01/2016; ; entre outros.

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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais. Centro de Humanidades. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará (UECE).