Ubiracy de Souza
Braga
“Não basta ser ocupado. A pergunta é: estamos
ocupados com o quê?”. Henry Thoreau
A história das ideias nos Estados
Unidos da América teve seu início somente no século XVIII. No século anterior,
os primeiros colonizadores investiram nas tarefas imediatas da prática; no nível
de domínio das ideias religiosas, contentavam-se com o calvinismo puritano,
transplantado da velha Europa. Mas é neste século que surgiram as primeiras
reflexões teóricas com as quais Jonathan Edwards que defende o “idealismo
imaterialista”, enquanto Samuel Johnson, influenciado por George Berkeley,
preocupa-se em criticar o materialismo de orientação newtoniana. Por outro
lado, como veremos un passant,
Benjamin Franklin, notável por suas contribuições científicas para a teoria da
eletricidade, acreditava nas condições e possibilidades de explicação
totalmente mecânica dos fenômenos naturais. Além de Franklin, outros foram
influenciados pelo raciocínio iluminista, que dominava os principais centos de
irradiação do pensamento europeu. Nesse quadro em que a
consciência despertava, ganharam particular relevo as ideias
políticas, vinculadas intimamente ao processo revolucionário que conduzia à
Proclamação da Independência norte-americana.
Em 1783, sete anos após a Declaração
de Independência dos Estados Unidos foi declarada no dia 4 de julho de 1776 e
colocou fim ao vínculo colonial que existia entre as Treze Colônias e a Inglaterra, a giant nação imperialista. Com essa conquista, os Estados Unidos
transformaram-se na primeira nação do continente americano a ter sua Independência
política. E comparativamente o Haiti, a primeira República negra do Novo Mundo (cf. Roupert, 2011). O único
vínculo institucional que unia os treze Estados norte-americanos eram Confederation Articles, firmados em
1782. A debilidade do Congresso norte-americano e a autonomia dos Estados eram
patentes. As decisões políticas importantes requeriam o apoio de sete delegados
estatais ao Congresso; as resoluções acerca da guerra e da paz, os tratados com
o estrangeiro, a impressão de papel-moeda e outras questões fundamentais deviam
contar como nove votos estatais afirmativos. Dessa forma, as abstenções
representavam verdadeiros vetos. O Congresso não tinha ainda autoridade direta
sobre os/cidadãos. Mas somente através dos Estados, e, aliás, não tinha meios
de impor sua vontade. Os congressistas foram incapazes de encaminhar
medidas eficazes para as dificuldades econômicas (cf. Faulkner, 1956) que
apareceram na Guerra de Independência. Não conseguiram impor a
estabilidade, nem a uniformidade da moeda dos Estados, nem recolher os
impostos necessários ao pagamento de dívidas. O Congresso foi incapaz de
proteger determinadas indústrias que deviam enfrentar a competição de mercado da
Inglaterra.
A
tentativa de alguns Estados de desenvolver uma política protecionista e instituir impostos em seus territórios delimitados levou
à criação de barreiras aduaneiras que os separavam uns dos outros, acentuando
as tendências à dissolução. A debilidade constitucional também refletiu-se na
esfera política: os governos estatais começaram a disputar entre si, e alguns
deles não somente armaram milícias como
também chegaram a ter seus próprios barcos de guerra. Para solucionar esses
problemas, o Congresso decidiu autorizar a realização de uma Convenção de
representantes inclusiva a todos os Estados que foi realizada em Filadélfia, em
maios de 1787. Aprovada uma Constituição, ela deveria ser submetida à sanção
dos Estados, realizada entre 1787 e 179 depois de implantada a forma de governo que o texto constitucional propunha: George
Washington (1732-1799) já havia sido feito presidente, por aclamação dos
membros da Convenção, em 1789. Durante o período em que estava sendo discutida
a Constituição nos Estados, foram publicados por jornais de Nova York artigos
de políticos que defendiam o texto proposto: Alexander Hamilton (1757-1804),
James Madison (1751-1836) e John Jay (1745-1829). Estes artigos, que seriam
compilados em O Federalista,
representavam o pensamento político dos lideres criadores do futuro partido
político que viria a nascer com o mesmo nome.
A
analogia das palavras não deve levar a confusões. Chamam-se igualmente partidos
as facções que dividiam as República antigas, os clãs que se agrupavam em torno
de um condottiere na Itália da
Renascença, os clubes onde se reuniam os deputados das assembleias
revolucionárias, os comitês que preparavam as eleições censitárias das
assembleias revolucionárias, bem como as vastas organizações populares que enquadravam a opinião pública nas
democracias modernas. Essa “identidade nominal”, segundo Duverger (1980: 19 e
ss.), justifica-se por um lado, pois traduz certo parentesco profundo: todas
essas instituições não desempenham o mesmo papel, que é o de conquistar o poder
político e exercê-lo? Porém se vê, apesar de tudo, que não se trata da mesma
coisa. De fato, nenhum país do mundo (salvo os Estados Unidos) reconhecia
partidos políticos no sentido moderno do termo: encontravam-se tendências de
opiniões, clubes populares, associações de pensamento, grupos parlamentares,
mas nenhum partido propriamente dito. Em 1950, estes funcionavam na maior parte
das nações civilizadas, os outros seguramente apenas se esforçavam por
imitá-las.
A
questão que se coloca-se e a seguinte: como se passou do sistema de 1850 para
1950? Para Duverger a questão não surge apenas da simples curiosidade
histórica. Da mesma forma que os homens que os homens trazem durante toda a sua
vida a marca da infância, assim também os partidos experimentam profundamente a
influência das suas origens. É quase impossível, por exemplo, compreender a
diferença de estrutura que separa o Partido Trabalhista britânico do Partido
Socialista francês, se não forem conhecidas as diferentes circunstâncias do seu
nascimento. É impossível analisar seriamente o pluripartidarismo francês ou
neerlandês, ou o bipartidarismo norte-americano, sem se reportar às origens dos
partidos em casa um desses países, que explica sua proliferação em alguns e sua
restrição no outro. Em seu conjunto, o desenvolvimento dos partidos parece
associado ao da democracia, isto é, à extensão do sufrágio popular e das
prerrogativas parlamentares. Quanto mais as assembleias políticas veem
desenvolver-se suas funções e sua independência, tanto mais os seus membros se
ressentem da necessidade de se agruparem por afinidades eletivas a fim de
agirem de comum acordo. Quanto mais o direito de voto se estende e se
multiplica, tanto mais se torna necessário enquadrar os eleitores por comitês
capazes de tornar conhecidos os candidatos e de canalizar os sufrágios em sua
direção político-eleitoral.
O
nascimento dos partidos políticos encontra-se, portanto, ligado ao dos grupos
parlamentares e comitês eleitorais. Não obstante, alguns manifestam uma
natureza mais ou menos aberrante em relação ao esquema geral: sua gênese fora
do ciclo eleitoral e parlamentar, formando essa exterioridade, aliás, seu
caráter comum mais nítido. Mas o mecanismo geral dessa gênese é simples:
criação de grupos parlamentares, de início; surgimento de comitês eleitorais,
em seguida; enfim, o estabelecimento de uma ligação permanente entre esses dois
elementos. Na prática, a pureza desse esquema teórico é modificada de diversas
formas. Os grupos parlamentares geralmente vem á luz antes dos comitês eleitorais: com efeito,
houve assembleias políticas antes que se realizassem as eleições. No âmbito da
divisão social do trabalho, os grupos parlamentares são concebíveis no âmbito
de uma Câmara autocrática bem como de
uma Câmara eleita: na realidade, a luta das facções geralmente se tem
manifestado em todas as assembleias hereditárias ou cooptadas, que se tratasse
do Senado da Roma clássica, quer da Dieta da antiga Polônia. Certamente, quem
diz facções, distingue e ainda não
refere ao grupo parlamentar: entre os
dois, existe a diferença que separa o inorgânico
do organizado. Mas o segundo decorre da primeira, por uma evolução política mais
ou menos rápida.
A priori, afigura-se que a comunidade de doutrinas políticas constitui o leitmotiv da formação dos grupos parlamentares. Contudo, os fatos sociais nem sempre confirmam esse teste de hipótese. Muitas vezes a vizinhança geográfica ou a vontade de defesa profissional parece ter imprimido o primeiro impulso: a doutrina não surgiu senão depois. Em certos países, os primeiros grupos parlamentares foram assim de grupos locais que se transformaram ulteriormente em grupos ideológicos. O nascimento dos partidos no âmbito da Constituinte francesa de 1789 proporcionou um bom exemplo desses mecanismo. Em abril de 1789, os deputados das províncias nos Estados-Gerais começaram a chegar a Versalhes, onde se encontram assaz deslocados. Procuram então unir-se aos deputados de outras províncias que partilham os seus pontos de vista: assim o “clube bretão” assume o aspecto de um grupo ideológico. Quando a assembleia foi transferida de Versalhes para Paris, o clube teve de interromper de imediato suas sessões e procurar um novo local. Quase todo mundo “esqueceu” o clube bretão, mas que não conhece o dos jacobinos? Processo análogo, transformando um grupo local em animador de facção doutrinária, fará surgir mais tarde o Clube dos Girondinos.
O
exemplo dos jacobinos merece ainda ser citado: parece caracterizar com efeito
toda uma fase da pré-história partidária. Do mesmo modo, na Constituinte
francesa de 1848 encontrava-se o grupo do Palácio nacional e do Instituto (republicanos moderados), o da Rue de
Poitiers (monarquistas católicos), o da Rue de Castiglione e o da Rua das
Pirâmides (esquerda). Além disso, no
Parlamento de Frankfurt podia-se encontrar o partido do café Milani (extrema-direita), o do hotel da
Wurtemberg (centro-esquerda, do qual
se destacaram o partido da Westandhal e o do hotel de Augsburgo), o do hotel da
Alemanha (esquerda), enfim, o do
hotel de Mont-Tonnère (extrema-esquerda).
Trata-se de um fenômeno muito diferente
do Clube bretão ou do Clube dos Girondinos: os deputados reúnem-se num
mesmo local porque têm ideias após se reunirem por causa de sua identidade de origem. Encontra-se em
face de um grupo ideológico e não de um grupo local: mas o emprego de reunião
para designá-lo atesta que as doutrinas ainda são muito pouco precisas para
servir para caracterizá-lo. Enfim, aos lado dos fatores locais e dos fatores
ideológicos, é preciso igualmente dar lugar ao interesse: por exemplo, certos
grupos tem um caráter mais ou menos nítido de sindicato de defesa parlamentar.
A preocupação pela reeleição naturalmente desempenhou relevante papel: jamais
desaparece inteiramente dos grupos
parlamentares, mesmo tendo alcançado a maturidade. As técnicas do escrutínio
que exigem um esforço coletivo, notadamente o escrutínio de lista e a
representação proporcional, reforçam essa tendência natural: em certos países a
formação dos primeiros grupos parlamentares realmente organizados coincide com
a adoção dos sistema proporcional partidário.
Ao
defender a Constituição norte-americana que haviam ajudado a elaborar, os
autores expressavam seus pontos de vista acerca do governo que consideravam
ideal. Enfim, durante a Convenção, o
objetivo de muitos democratas liberais era tornar mais fáceis as reformas
constitucionais, possibilitar a interferência das massas na política,
estabelecer o sufrágio universal para os homens e instituir apenas um
Parlamento. Os federalistas frustraram esses objetivos factuais, conseguindo
fazer aprovar um texto completamente diferente: a possibilidade de emendas à Constituição
foi dificultada, o número de eleitores bastante restringido, graças à exigência
material de propriedade para votar, criou-se um Congresso com duas câmaras
parlamentares e, finalmente, o exercício da liberdade primordial foi buscado,
ainda que não totalmente, nos princípios da tradição política britânica. Com
exceção da Câmara dos Deputados (concessão aos liberais) todas as autoridades
importantes do governo, tais como o presidente da federação, senadores e
juízes, não deviam ser escolhidos diretamente pelo povo, mas, respectivamente,
pelo colégio eleitoral, pelos legislativos estaduais e por nomeação. A Suprema
Corte, considerado órgão mais elevado do Poder Judiciário, podia vetar como
inconstitucionais as medidas aprovadas pela maioria das duas casas do
Congresso. O processo negava a soberania popular, por uma medida dos
representantes do “povo” podia ser avaliada por um organismo judicial que
estaria fora do controle da maioria.
Entre
os diversos participantes do processo de Independência norte-americana o papel
fundamental foi desempenhado por Thomas Jefferson (1985). Mas sua carreira foi
marcada pela ambiguidade no cenário político. Como redator da Declaração dos Direitos do Homem e do Estatuto de Liberdade Religiosa da Virginia,
Jefferson incluiu-se entre aqueles políticos que acreditavam que todos os
homens possuem certos direitos inalienáveis, mas ao mesmo tempo, nunca fez uma
proposição prática para libertação dos escravos, durante sua longa carreira política. Rico,
latifundiário, sempre teve escravos. Sua mentalidade cosmopolita absorveu as
ideias mais liberais de seu tempo; acreditava nessas ideias e confirmou sua fé
numa linguagem que se tornou clássica. Quase todas essas ideias aparentemente
avançadas, no entanto, encontram-se apenas em sua correspondência particular.
Depois de redigir a Declaração e o Estatuto, evitou expressar em público
aquilo que pensava na intimidade. Em sua vida política tornou-se líder dos
pequenos agricultores, mas também representava os interesses dos grandes
proprietários. Dirigiu uma facção popular que se opunha ao domínio dos
interesses dos comerciantes, mas essa facção populista também procurava representar outro setor dos
proprietários, que também tinha suas próprias aspirações e motivações sociais.
O aspecto singular e sociológico do populismo nos Estados Unidos da América é sua perspectiva ideológica de que não existem classes sociais na sociedade. Esta ideia se baseia na proposta de Declaração de Independência, de 1776, em que “todos os homens são iguais” e que a história oficial dos Estados Unidos se tem encarregado de reforçar. Esta história tem incluído movimentos sociais e políticos para empreender reformas, dentro de segmentos sociais de diferentes classes sociais tem formado alianças políticas temporais. O centro da ideologia populista tem como representação social a ideia de um povo que luta contra alguma instituição fabulosa, tais como os bancos, os detentores da riqueza e a burocracia governamental. O populismo norte-americano reúne aspectos multiculturais espraiados dos mais diversos segmentos capitalistas da classe média sob um estandarte. Ideologicamente o populismo na aparência não se coloca contrário ao capitalista. Historicamente o movimento que comumente se associa com a ascensão do populismo é a luta dos pequenos agricultores desde a década de 1890 até os anos 1930. Sua mobilização se dirigiu em primeiro contra as ferrovias, os grandes bancos e as empresas de produtos agropecuários. Este foi um movimento de agricultores pobres, pequenos comerciantes rurais e grupos da classe operária. Para os norte-americanos, a palavra populismo não tem conotações positivas nem negativas. Não é progressista nem conservadora. Para Michael Kazin no ensaio: The Populist Persuasion (1995), mais do que representação da ideologia, é técnica retórica que define o terreno entre os debaixo e os de cima, melhor dizendo, o povo e as elites.
Henry
Thoreau será testemunha, segundo Costa (2015) de todas estas mudanças e será
precisamente perante a alteração da natureza e significado do trabalho, com tudo aquilo que acarreta,
que contará com a sua mais firme oposição. O trabalho, neste novo sistema
económico, encontra-se desnaturalizado, já não cumpre função social alguma ou,
pior do que isso, não cumpre com qualquer função formativa para o ser humano. O
trabalho, a questão central em Thoreau, torna-se impeditivo de uma vida plena:
ocupa tempo e obstaculiza uma vida reflexiva ou contemplativa, aquela que
permite, a cada ser humano, racionalizar e conhecer em todas as suas formas de implicações,
o valor e as consequências de cada decisão tomada. A vida, indefectivelmente,
parecer ter sido mecanizada convertendo os seres humanos em meros autômatos. A ligação
privilegiada com a natureza, própria do Transcendentalismo,
é sacrificada; o ser humano deixa de estar regido pelos ciclos naturais; o
ideal jeffersoniano, entendido por ele, de uma nação de base agrícola fundada
sobre uma democracia da frugalidade e do mérito e com capacidade de gerar uma
elite em cada um dos âmbitos da sociedade, que é abandonado em favor de uma
democracia populista de carácter industrial e capitalista.
Nascido
em 1743 dentro de uma rica família de fazendeiros da Virginia, Thomas Jefferson
iniciou sua vida política participando dos órgãos da administração inglesa na
colônia: com 26 anos, ocupava uma cadeira na Casa dos Burgueses. Durante os
anos que precederam a Independência, indispôs-se com a administração inglesa,
cuja atuação considerava prejudicial ao interesse dos colonos. Em 1774,
escreveu um ensaio em que apelava aos direitos naturais para justificar as
aspirações dos colonos. Graças a essa obra ganhou grande reputação coo político
e escritor e, posteriormente, foi escolhido especialmente para redigir a Carta Declaração de Independência. Além disso,
sob sua liderança, pouco tempo depois da Independência, os proprietários de
terras reformistas da Virginia levaram adiante uma série de medidas, entre as
quais a abolição do direito de primogenitura, a separação da Igreja e do Estado
e a proibição de discriminações sociais e políticas baseadas em diferenças
religiosas. Depois de uma experiência como governador da Virgínia (1779-1781),
Jefferson foi eleito para o Congresso, onde permaneceu até 1784. Entre 1785 e
1789 foi embaixador norte-americano em Paris e testemunhou o início da
Revolução clássica Francesa. Foi solicitado e aceitou auxiliar na redação da Declaração dos Direitos do Homem (1789).
Na Europa, observando os regimes políticos de vários povos, chegou à conclusão
de que a República que se constituía na América do |Norte era melhor do que
qualquer um desses povos.
Vale
lembrar do ponto de vista da análise comparada que Jefferson estava na Europa
durante a Convenção, da qual resultou
a Constituição norte-americana. De voltas aos Estados Unidos aceitou o convite
para ser secretário de Estado no governo federalista chefiado por Washington. Apesar
de ser membro do governo, divergia de muitas orientações, como as iniciativas
de Hamilton, líder federalista e secretário do Tesouro. Nos anos que seguiram posteriores
à Revolução Francesa, Jefferson defendia aproximação com a França, enquanto Hamilton
mostrava maior simpatia pelos ingleses. Além disso protestava contra a
excessiva centralização. Mas para o que nos interessa do ponto de vista das
análise política é a sua compreensão da categoria social povo. Jefferson concebia o “povo” de maneira muito
particular, pois para ele era sinônimo de fazendeiros. Pois acreditava que a
vida do campo estimulava “o desenvolvimento das virtudes cívicas e da vitalidade individual”; por isso os
fazendeiros constituiriam, para ele, a melhor base sociológica para uma
democracia. – “Aqueles que trabalham na terra - dizia ele – são o povo
escolhido por Deus, se alguma vez houve povo escolhido”.
Consequentemente,
afirmava, a economia americana devia permanecer agrícola. Por ouro lado, conservador,
tinha grande desconfiança das fábricas, das cidades, das classes proletárias
urbanas. Ipso facto, aceitava várias
ideias dos federalistas, como a defesa do governo equilibrado e do controle
sobre o povo. Considerava despótico todo governo em que não há uma divisão e
equilíbrio de poderes, sempre controlados uns pelos outros. Para ele o simples
fato democrático de que um corpo de governantes fosse eleito pela maioria não
lhe daria caráter democrático. Ele só teria essa característica quando nele
estivessem representados diferentes interesses e princípios da pessoa. Como os federalistas, Jefferson
também não via com bons olhos as multidões urbanas. Contudo, não se preocupava
com elas, pois não acreditava que pudessem surgir num futuro próximo, porque as
terras da América do Norte estariam abertas e transformariam em proprietários
os possíveis elos descontentes. Do ponto de vista das frações da classe
dominante Jefferson via a América como uma nação de proprietários e acreditava
que essa condição social era necessária para formar uma mentalidade política estável. A característica específica da democracia
proposta por Jefferson está em sua vinculação com a ordem agrária autoritária de seu tempo. Achava que ela
constituía o único tipo de sociedade que tornava viável o governo republicano.
Paradoxalmente, a nação que se constituía de grandes cidades, industrializada e
com uma classe trabalhadora numerosa, dificilmente seus princípios morais e
políticos poderiam ser levados à prática.
É
difícil representar - mutatis mutandis
- o que é relacional nos últimos dois séculos entre norte-americanos, em algum
movimento intelectual que tenha sido mais rico em suas determinações essenciais
e diversificado nas suas consequências do que o transcendentalismo. O exercício
da imaginação moral que é um resíduo próprio do gênio romântico carrega a
responsabilidade de despertar sinais para a atenção da mente da letargia do
costume. E é exatamente por essa
exuberância de visões sobre política, filosofia e reformas sociais, que para a
história do pensamento moral de Henry Thoreau podemos situá-lo nesta esfera de
discussões articulada com interesses e opiniões tão diversas quanto os de
Frederic Hedge, Ralph Waldo Emerson, Amos Bronson Alcott, George Ripley,
Margaret Fuller, Theodore Parker e Orestes Brownson. O contato mais próximo
entre eles durou perto de seis semanas em 1836, quando Thoreau lecionou em
Canton, Massachusetts, para ajudar a custear seus estudos em Harvard. A biografia intelectual de Thoreau demonstra um
permanente interesse pelo progresso pessoal. A variedade de seus interesses e
expectativas sobre distintos aspectos ocorre na poesia romântica, religiões
orientais, botânica, técnicas para fabricação de lápis, agricultura, zoologia,
etnias indígenas, filosofia, política, economia, música, navegação, história,
línguas, alpinismo, pesca. Walden
(cf. Simões, 2010) descreve “a construção de uma moradia”, assim como,
comparativamente a construção do caráter. A versão romântica da self-culture, em resposta à natureza da
identidade nas mãos de Thoreau, é um exercício analítico para colocar limites
no gênio, e os primeiros passos para sua perfeita execução são mapear o terreno
e identificar a vizinhança ou proximidade que nos cabe.
Henry
Thoreau foi um autor norte-americano naturalista e transcendentalista. Ele é reconhecido
por seu livro Walden (1989), uma
reflexão sobre a vida simples cercada
pela natureza, e por seu ensaio: A
Desobediência Civil (2012). Nasceu em Concord, Massachusetts em 12 de julho de 1817. Descendente
de huguenotes franceses, ainda menino
Thoreau aprendeu a amar a natureza “quando levava o gado da família da mãe para
pastar”. Na adolescência, ajudou o naturalista suíço Louis Agassiz a coletar
espécimes da região. Em 1837, formou-se em Literatura Clássica e Línguas. Fundou
junto com o irmão uma nova escola, em 1838. Seu método teórico e prático inovador
de ensino, incluía “passeios ao campo” (field-trips)
e não utilizava castigos físicos, mas não foi bem aceito nos Estados Unidos em
sua prática pedagógica. Em 1835, conheceu Ralph Waldo Emerson, poeta e escritor
com quem manteve amizade. Fez parte do grupo dos chamados transcendentalistas, mas se esquivava de algumas ideias e divagações
místicas típicas deste grupo. Ao contrário dos colegas, ele mantinha sua visão de mundo no real e no tempo presente. Quando debatia-se o recorrente tema de
vida após a morte, Thoreau replicava: - “Uma vida de cada vez”. Com a morte do
irmão, Thoreau fechou a escola. Realizando trabalhos como agrimensor e como
ensaísta, acreditando que “o homem devia ganhar somente o necessário para
sobreviver”. Com a morte do pai foi
trabalhar na fábrica de lápis da família quando precisou ajudar a mãe e as suas
irmãs.
A publicação do artigo Nature, de Ralph Emerson torna-se o
divisor de águas da conjuntura mediante a qual o Transcendentalismo emerge num grande movimento cultural. Emerson
escreveu: “Nós andaremos com nossas próprias pernas; trabalharemos com nossas
próprias mãos; falaremos com nossas próprias mentes...Uma nação de homens
finalmente existirá, porque cada um de nós inspira a Alma Divina”. E conclui o
artigo conclamando para uma revolução do pensamento humano mediado por uma nova
filosofia idealista. No mesmo ano, o transcendentalismo tornou-se um movimento
coerente com a fundação do Transcendental
Club em Cambridge, Massachusetts, em 8 de setembro de 1836, por Ralph Waldo
Emerson, Frederick Henry Hedge e outros. Os objetivos pragmáticos dos
transcendentalistas eram variados. Alguns ativistas do grupo ligavam o movimento
com uma ideia sociológica de mudança social utópica e, como Orestes Browson
disse, estava também ligado ao socialismo, enquanto outros o viam como um
projeto individualista e idealista. Emerson era partidário da segunda visão. Em
sua leitura de The Transcendentalist,
em 1842, Emerson sugeriu que “o objetivo de uma visão de vida puramente
transcendental era impossível de se obter na prática”.
Numa
primeira aproximação não devemos perder de vista que a Fenomenologia do Espírito, de Hegel (Phänomenologie des Geistes, 1807) representa a elaboração inicial
de um julgamento filosófico a respeito da história, e isto é importante na
medida em que a noção de consciência
(Bewusstsein), formulada assim,
sugere ser tema central desse estudo. O espírito, dizia Hegel, não pode conhecer-se
diretamente. É preciso que negue previamente, de certo modo, que saia de si e
se torne “estranho a si mesmo”, exteriorizando-se e produzindo sucessivamente
todas as formas do real – quadros do pensamento, natureza, história; e depois
que reverta à origem, alcançando assim o conhecimento verdadeiro, a filosofia
do espírito absoluto. Afastando-se de si, exteriorizando-se, para voltar depois
a si mesma, a idéia triunfa do que a limitava, afirmando-se na negação das suas
negações sucessivas. A Fenomenologia do
Espírito mostra como a consciência se eleva, pouco a pouco, desde as formas
elementares da sensação até à ciência, identificada por Hegel, aliás, com a
racionalidade da religião, tal como o valor absoluto da religião cristã se
integra na verdade aparente do saber.
Como é sabido, todavia, o prólogo à Fenomenologia é posterior a redação da obra. Foi escrito, passado já o tempo, quando o próprio Hegel pode tomar consciência de seu avanço e sua descoberta. Tinha como objetivo principal assegurar o ligamento entre a Fenomenologia, a qual só aparece como “a primeira parte da ciência”, e a Lógica que, situando-se em uma perspectiva distinta da adotada pela Fenomenologia, deve constituir o primeiro momento de uma Enciclopédia. Explica-se, pois, que neste prólogo que é algo assim como um gonzo entre a Fenomenologia e a Lógica, Hegel se sentira fundamentalmente preocupado em dar uma ideia geral de todo o seu sistema. Aliás, sem nos perdermos em digressões inúteis e vazias de sentido, vale lembrar que, como é bem conhecido, é no começo de sua metafísica que Aristóteles põe o problema do saber por excelência, que é justamente aquilo que chamou de filosofia primeira. Só depois da Edição de Andrônico de Rodes é que se passou a chamar tradicionalmente metafísica. Por quê? Os livros de filosofia primeira foram colocados depois dos de física, e levaram a denominação tà metà tà physikà; esta denominação puramente editorial, in statu nascendi interpretou-se de acordo com especialistas filósofos, positivamente, como um mais além da física, como uma “transfísica”, e deste acaso, nasceu o nome e a concepção filosófica Metafísica.
Com Hegel ocorreu algo semelhante ha história da dialética, no caso por pressão de seu Editor. Hegel renunciou a publicação de todo seu sistema (System der Wissenschaft) em uma só obra. Ao longo de sua redação, a Introdução acabou convertendo-se na primeira parte do “sistema da ciência” e assim nasceu a Phänomenologie des Geistes, quando todavia o contrato com o Editor Joseph Anton Göbhardt, em Bamberg, previa uma Lógica e uma Metafísica como primeira parte do sistema precedidas por uma Introdução que levaria o título de Fenomenologia. Desta forma, a Introdução (Eileintung) à Fenomenologia foi concebida ao mesmo tempo em que a obra é redatada em primeiro termo; parece, pois, que encerra o primeiro pensamento do que saiu toda a obra. Verdadeiramente constitui uma Introdução em sentido literal aos três primeiros momentos de toda a obra, isto é: a consciência, a autoconsciência e a razão -, enquanto a última parte da Fenomenologia, que contêm os particularmente importantes desenvolvimentos sobre o Espírito e a Religião, ultrapassa por seu conteúdo a Fenomenologia tal como é definida stricto sensu na citada Introdução. Ao que parece é como se o próprio Hegel entrasse no marco de “desenvolvimento fenomenológico” com algo que em princípio não deveria haver ocupado um posto nele. Não obstante, seu estudo, em maior medida que o do prólogo, nos permitirá elucidar o sentido da obra que Friedrich Hegel quis escrever, assim como a técnica de interpretação que para ele representa o desenvolvimento fenomenológico.
Precisamente
porque a “Introdução” não é, como ocorre no “Prólogo”, um anexo posterior que
contêm consideráveis informações gerais sobre o objetivo que se propunha o
autor e as relações que sua obra tem com outros tratados filosóficos do mesmo
tema. Ao contrário, de acordo com Hyppolite (1974), “a introdução é parte
integrante da obra, constitui o delineamento mesmo do problema e determina os
meios postos em prática para resolvê-lo”. Em primeiro lugar, Hegel define na
Introdução como se coloca para ele o problema do conhecimento. Vemos como em
certo aspecto retorna ao ponto de vista de Kant e de Fichte. A Fenomenologia não é uma noumenologia nem muito menos uma ontologia, mas
segue sendo todavia um conhecimento preciso do Absoluto, pois, que outra coisa poderia
conhecer se “só o Absoluto é verdadeiro, ou só o verdadeiro é Absoluto?”. Não
obstante, em vez de apresentar o saber do Absoluto “em si para si”, Hegel considera
o saber tal como é referido na consciência e precisamente desde esse saber fenomênico,
mediante sua autocrítica, é como se eleva ao saber Absoluto. Em segundo lugar,
Hegel define a Fenomenologia como desenvolvimento e cultura, - no sentido de
“seu progressivo afinamento da consciência” -, natural acerca da ciência, isto
é o saber filosófico, o saber do Absoluto; por sua vez indica a necessidade de
uma evolução.
Em
último lugar, Hegel precisa a técnica
do desenvolvimento fenomenológico, demonstra em que sentido este
desenvolvimento é precisamente obra própria da consciência e sua aparição na
experiência, em que sentido é suscetível de ser repensado em sua necessidade
pela filosofia. Na Introdução à
Fenomenologia Hegel repete suas críticas a uma filosofia que não fosse mais que
teoria do conhecimento. E não obstante, a Fenomenologia, como têm assinalado
seus melhores comentaristas, marca em certos aspectos um retorno ao ponto de
vista de Kant e o de Johann Fichte. Em que novo sentido devemos entendê-lo?
Ora, se o saber é um instrumento,
modifica o objeto a conhecer e não nos apresenta em sua pureza; se for um meio tampouco, nos transmite a verdade sem
alterá-la de acordo com a própria natureza do meio interposto. Se o saber é um instrumento, isto supõe que o sujeito do
saber e seu objeto se encontram separados; por conseguinte, o Absoluto seria
distinto do conhecimento: nem o Absoluto poderia ser saber de si mesmo, nem o
saber poderia ser saber do Absoluto. Contra tais pressupostos a existência
mesma da ciência filosófica, que conhece efetivamente, é já uma afirmação.
Não
obstante, esta afirmação não poderia bastar porque deixa a margem a afirmação
de outro saber; é precisamente esta dualidade o que reconhecia Schelling quando
opunha no Bruno o saber fenomênico e o saber Absoluto, mas não demonstrava os
laços articulados em torno da dialética entre um e outro. Uma vez colocado o saber
Absoluto não se vê como é possível no saber fenomênico, e o saber fenomênico por sua parte fica igualmente
apartado do saber Absoluto. De outra parte, na relação dialética Hegel volta ao
saber fenomênico, isto é, ao saber da consciência comum, e pretende demonstrar
como aquele conduz necessariamente ao saber Absoluto, ou também que ele mesmo é
um saber Absoluto que não se sabe como tal. Enfim, se a Fenomenologia é o itinerário da alma que se eleva ao
espírito por meio da consciência, fora de dúvida, a ideia de semelhante
itinerário foi sugerida a Hegel pari passu com a convergência entre as
obras literárias, como também aquelas que nos parecem referidas como “novelas
de cultura”, tendo em vista a leitura realizada sobre o extraordinário Emílio, de J.-J. Rousseau e que, na bendita obra encontrava uma primeira história da consciência natural
elevando-se por si mesma a liberdade, através das experiências que lhe são
próprias e que são particularmente formadoras.
Ou seja, ao nesta relação dialética estabelecida ao “formar a coisa, forma-se a si mesmo”.
Neste
aspecto queremos ressaltar que a forma não se torna um outro que a consciência
pelo fato de se ter exteriorizado, pois justamente essa forma é seu puro
ser-para-si, que nessa exteriorização vem-a-ser para ela verdade. Assim
precisamente no trabalho, onde parecia ser apenas um sentido alheio, a consciência,
mediante esse reencontrar-se de si por si mesma, vem-a-ser sentido próprio.
Para que haja tal reflexão são necessários os dois momentos: o momento do medo
e do serviço em geral , e também o momento do formar; e ambos ao mesmo tempo de
uma maneira universal. Sem a disciplina do serviço e da obediência, segundo
Hegel (2007), o medo fica no formal, e não se estende sobre toda a efetividade
consciente do ser-aí. Sem o formar,
permanece o medo como interior e mudo, e a consciência não vem-a-ser para ela mesma. Se a consciência se formar sem esse medo
absoluto primordial, então será apenas um sentido próprio vazio; pois sua forma
ou negatividade em si, e seu formar, portanto, não lhe pode dar a consciência
de si como essência. Como nesse caso a pura forma não pode tornar-se essência,
assim também essa forma, considerada como expansão para além do singular, não
pode ser um formar universal, conceito absoluto; mas apenas uma habilidade que
domina uma certa coisa, mas não domina a potência universal e a essência
objetiva em sua totalidade. Pois é isto o que o pensar significa: ser objeto
para si como Eu abstrato, mas como Eu que tem ao mesmo tempo o ser-em-si.
Para
o pensar, o objeto não se move em
representações ou figuras, mas sim em conceitos, o que significa: num ser-em-si diferente, que imediatamente
para a consciência não é nada diferente dela. O representado, o figurado,
o essente como tal, tem a forma de
ser algo outro que a consciência; mas um
conceito é, ao mesmo tempo, um essente, e essa diferença, enquanto está na
consciência mesma, é seu conteúdo determinado; porém por ser tal conteúdo, ao
mesmo tempo, algo conceptualizado, ela permanece imediatamente cônscia de sua
unidade como esse essente determinado e diferente. Não é como na representação
em que a consciência tem ainda de lembrar-se expressamente de que isso é sua
representação; ao contrário, o conceito é para Hegel, imediatamente, seu
conceito. No pensar, Eu sou livre; porque não estou em um Outro, mas pura e
simplesmente fico em mim mesmo, e o objeto, que para mim é a essência, é meu
ser-para-mim, em unidade indivisa; e meu movimento em conceitos é um movimento
em mim mesmo. Entretanto, na determinação dessa figura da consciência-de-si, é essencial reter com firmeza que ela é a
consciência pensante, em geral, ou
ques eu objeto é a unidade imediata
do ser-em-si e do ser-para-si. A consciência sua própria
homônima, que se repele de si mesma, torna-se para si elemento em-si-essente; mas, para si, só esse
elemento como essência universal em geral; não como esta essência objetiva no
desenvolvimento e no movimento interno de seu ser multiforme.
Como
é sabido, chama-se estoicismo essa
liberdade da consciência-de-si, quando surgiu em sua manifestação consciente na
história do espírito. Seu princípio é que a consciência é essência pensante e
que uma coisa só tem essencialidade, ou só é verdadeira e boa para ela, na
medida em que a consciência aí se comporta como essência pensante. O objeto
sobre o qual atuam a relação entre o desejo e o trabalho é a expansão
multiforme da vida, diferenciando-se em si mesma: sua singularização e
complexificação. Esse agir multiforme se condensou agora na diferença simples
que está no puro ato do movimento do pensar. A diferença comparativamente que
tem mais essencialidade não é a diferença que se põe como coisa determinada, ou como consciência de um determinado ser-aí natural, como um sentimento ou
como um desejo e fim para esse desejo; quer esse fim seja posto pela consciência própria ou alheia; mas somente a diferença que é
pensada, ou que não se diferencia imediatamente de mim. Essa consciência é por
isso negativa no que diz respeito à relação de dominação e escravidão. Seu agir
é o do senhor que tem a sua verdade no escravo, nem o do escravo que tem sua
verdade na vontade do senhor e em seu servir; mas seu agir é livre, no trono
como nas cadeias e em toda [forma de] dependência de seu ser aí singular.
[Seu
agir] é conservar-se na impassibilidade que continuamente se retira do
movimento do ser-aí, do atuar como do padecer, para a essencialidade simples do pensamento. A obstinação é a liberdade
que se apega a uma singularidade e se mantém dentro do âmbito da servidão; o estoicismo porém é a liberdade que
imediatamente saindo sempre da servidão retorna à pura universalidade do pensamento. Como forma universal do
espírito do mundo, [o estoicismo] só podia surgir num tempo de medo e de
escravidão universais, mas também de cultura universal, que tinha elevado o
formar até o nível do pensar. A liberdade do pensamento tem somente o puro
pensamento por sua verdade; e verdade sem a implementação da vida. Por isso é
ainda só o conceito de liberdade, não
a própria liberdade sendo viva. Mas porque a individualidade, como
individualidade deveria representar-se viva; ou, como
individualidade pensante, captar o mundo como um sistema de pensamento; teria de encontrar-se no pensamento
mesmo, para aquela expansão [do agir], um conteúdo do que é bom, e para
essa [expansão do pensamento, um conteúdo] do que é verdadeiro. Com isso não
haveria nenhum outro ingrediente, naquilo que é para a representação
da pura consciência, a não ser o conceito que é a essência.
Mas
essa igualdade-consigo-mesmo do
pensar é apenas a pura forma na qual nada se determina. Por isso os termos
universais do verdadeiro e do bem, da sabedoria e da virtude, onde o estoicismo
tem de parar, de certo são geralmente edificantes; mas como de fato não podem
chegar a nenhuma expansão do conteúdo, começam logo a produzir tédio. Essa
consciência pensante, tal como se determinou, como liberdade abstrata, é
portanto, somente a negação incompleta do ser-outro; apenas se retirou do ser-aí, para si mesma; e não se levou a
cabo como absoluta negação do ser-aí
nela. De certo, basta o conteúdo que vale para ela só como pensamento: aliás
como pensamento determinado, e ao mesmo tempo como determinidade enquanto tal. O
cepticismo é a realização do que o
estoicismo era somente o conceito; - e a experiência efetiva do que é a
liberdade do pensamento: liberdade que em-si é o negativo, e que assim deve
apresentar-se. Com a reflexão da consciência-de-si para dentro do pensamento
simples de si mesma, de encontro com essa reflexão caíram fora da infinitude
[do pensamento] o ser-aí independente e a determinidade permanente. No
cepticismo vem-á-ser [explícita] para a consciência a tal inessencialidade e a
não-autonomia desse Outro.
O
pensamento torna-se o pensar
consumado, que aniquila o ser do mundo multideterminado; e nessa multiforme
figuração da vida, a negatividade da consciência-de-si
livre assim torna-se a negatividade real. Fica patente que, como o estoicismo
corresponde ao conceito da consciência independente,
manifestada como relação de dominação e escravidão, assim o cepticismo
corresponde à realização da mesma consciência como atitude negativa para com o ser-Outro, [isto é], ao desejo e ao
trabalho. Mas, se o desejo e o trabalho não puderam levar a cabo a negação dialética
para a consciência-de-si, ao contrário, essa atitude polêmica para com a
múltipla independência das coisas, terá êxito: já que se volta contra elas como
consciência-de-si livre, previamente implementada em si mesma. Mais
precisamente, porque [essa atitude] tem em si mesma o pensar ou a infinitude, e por isso as independências, conforme suas
diferenças, para ela são apenas grandezas evanescentes. As diferenças que no
puro pensar de si mesmo são só abstrações das diferenças, tornam-se aqui todas
as diferenças ; e todo ser diferente se
torna uma diferença da consciência-de-si. Com isso se determinou o agir do
cepticismo em geral, e a maneira desse agir.
Madame Germaine de Staël. |
O
cepticismo revela para Hegel, o movimento dialético que são a certeza sensível,
a percepção e o entendimento; e também a inessencialidade do que na relação de
dominação e de servidão, e do que para o pensamento vale como algo determinado.
O dialético, como movimento negativo, tal como é, imediatamente, revela-se de
início à consciência como algo a que ela está entregue, e que não é por meio da
consciência mesma. Como cepticismo, ao contrário, o movimento dialético é
momento da consciência-de-si – para a qual [já] não acontece, sem saber como, que desavença seu verdadeiro e real. Pois
é essa consciência-de-si que na certeza de sua liberdade faz desvanecer até
esse outro que fazia passar por real; e não só o objetivo como tal: sua própria
relação com ele, na qual vale e é valorizada como objetiva. Também [faz
desvanecer] seu perceber, como
igualmente seu consolidar do que estava em risco de perder-se: a sofistaria e
seu verdadeiro determinado e fixado por
sua conta. Mediante essa negação consciente de si, garante a
consciência-de-si para si mesma a certeza
de sua própria liberdade: produz a experiência da liberdade, e a eleva |à
verdade.
No cepticismo a consciência se experimenta em verdade como consciência em si mesma contraditória; e dessa experiência surge uma nova figura que rejunta os dois momentos em que o cepticismo mantém sempre separados. A falta-de-pensamento do cepticismo a respeito de si mesmo tem de desvanecer porque de fato é uma consciência que tem nela essas duas modalidades. Essa nova figura é portanto uma figura que para si é a consciência duplicada de si como libertando-se, imutável e igual a si mesma. É a consciência de si como absolutamente confundindo-se e invertendo-se; e como consciência dessa sua contradição dialética. No estoicismo, a consciência-de-si é a simples liberdade de si mesmo. No cepticismo, essa liberdade se realiza, aniquila o outro lado do ser-aí determinado; aliás, melhor dito, se duplica, e agora é para si mesma algo duplo. Desse modo, a duplicação que antes se repartia entre dois singulares – o senhor e o escravo – retorna à unidade; e assim está presente a duplicação da consciência-de-si em si mesma, que é essencial no conceito de espírito. Mas não está ainda presente a sua unidade, e a consciência infeliz é a consciência-de-si como consciência duplicada e somente contraditória. Essa consciência infeliz, cindida dentro de si, já que essa contradição de sua essência é, para ela, uma consciência, deve ter numa consciência sempre também e mesma a outra; de tal maneira que é desalojada imediatamente de cada uma quando pensa ter chegado à vitória e à quietude da unidade.
Mas
nesse movimento interno a consciência experimenta justamente o surgir da
singularidade no Imutável e do Imutável na singularidade. Para ela, a
singularidade em geral vem-a-ser na essência imutável, e ao mesmo tempo sua
própria singularidade nela. Porque a
verdade desse movimento é precisamente o ser-uno dessa consciência duplicada.
Essa unidade vem-a-ser para ela, mas primeiro, como uma unidade tal em que o
dominante é ainda a diversidade dos dois termos. Assim, para essa consciência,
a singularidade se encontra vinculada ao Imutável de um modo tríplice: 1° - ela
mesma reponta de novo para si como oposta à essência imutável, e é recambiada
ao início da luta, que permanece o elemento da relação em seu todo. 2° - O
próprio Imutável tem nele a singularidade para a consciência, de maneira que a
singularidade é figura do Imutável, que se encontra por isso revestido de toda
a modalidade da existência. 3° - A consciência encontra a si mesma como este
singular no Imutável. O primeiro Imutável é para a consciência apenas a
essência alheia que condena a singularidade; e enquanto o segundo Imutável é
uma figura da singularidade, com a consciência mesma, eis que no terceiro
Imutável a consciência vem-a-ser espírito, tem a alegria de ali se encontrar a
si mesma e se torna consciente de ter conciliado sua singularidade com o
universal. O que se apresenta aqui como modalidade e relação com o Imutável
resultou como a experiência que a consciência cindida faz em sua infelicidade.
Ora, tal experiência não é, de certo, movimento unilateral seu, pois ela mesma
é consciência imutável e por isso, ao mesmo tempo, consciência singular também;
e como tal o movimento é igualmente movimento da consciência imutável que nele
reponta tanto quanto a singular.
Antes
dos 21 anos, Germaine de Staël escreveu um drama
romântico (1786), e uma tragédia
inspirada por Nicholas Rowe, Jane Gray (1790). Mas foi seu livro sobre J.-J.
Rousseau que a tornou reconhecida. Sob a influência de seu pai, um admirador de
Montesquieu, ela adotou posições políticas com base na monarquia parlamentar
inglesa. Em favor da Revolução Francesa, ela adquiriu uma reputação de
jacobinismo. O status diplomático de seu marido a protegia em Paris até 1793
quando ela se retirou para Coppet, uma comuna do cantão de Vaud, Distrito de
Nyon, situada junto ao Lago Lemano, Suíça. Foi lá que ela ganhou fama através
da criação de um ponto de encontro e de batalha
das ideias para alguns dos principais intelectuais da Europa ocidental.
Afetivamente desde 1789 ela foi a amante de Luís de Narbonne, um dos últimos
ministros de Louis XVI. Ele se refugiou na Inglaterra em 1792, onde ela se
juntou a ele em 1793. Ela voltou para a França, através de Coppet, no final da
fase política do Terror em 1794. Começou um período brilhante de sua carreira.
Seu salão floresceu, e ela publicou vários ensaios políticos e literários.
Assim começou a estudar as novas ideias que estavam sendo desenvolvidos
especialmente na Alemanha. Leu o crítico suíço Karl Viktor von Bonstetten, o filólogo
alemão Wilhelm von Humboldt, e, acima de tudo, os irmãos August Wilhelm e
Friedrich von Schlegel, que estavam entre os mais influentes românticos
alemães. Mas foi seu novo amante, Benjamin Constant, escritor e político, que a
influenciou diretamente em favor da proximidade com a cultura alemã. Sua
ligação amorosa, que flutuava constantemente, começou em 1794 e durou 14
anos.
Ipso facto, o saber que, de início ou imediatamente, é nosso objeto teórico, não pode ser nenhum outro senão o saber que é também imediato: - saber do imediato ou do assente. Devemos proceder também de forma imediata ou receptiva, nada mudando assim na maneira como ele se oferece e afastando-se de nosso apreender conceitual. O conteúdo concreto da certeza sensível faz aparecer imediatamente essa certeza como o mais rico conhecimento e até como um conhecimento de riqueza infinda, para o qual é impossível achar limite. Nem fora, se percorrermos o espaço e o tempo onde se expande. Nem dentro, se penetrarmos nele pela divisão no interior de um fragmento tomado dessa plenitude. Uma certeza sensível efetiva não é apenas essa pura imediatez, mas é um exemplo da mesma. Entre as diferenças sem conta que evidenciam, achamos em toda parte a diferença-capital: que ressaltam logo para fora do puro ser dos temas analisados e já mencionados: um este, como Eu; outro, como um este imaginário objeto de pensamento prenhe de uma explicação histórica, teórica e metodológica. Refletindo sobre essa diferença, resulta tanto um como outro não estão na certeza sensível apenas de modo imediato, mas, mediatizados. - Eu tenho a certeza por meio de outro, da coisa; e essa está igualmente na certeza mediante outro, mediante o Eu. A diferença entre a essência e o exemplo, entre a imediatez e a mediação, quem faz não somos nós apenas, mas a encontramos na própria certeza sensível; e deve ser tomada na forma em que nela se encontra, e não como aparentemente pressupomos saber determina-la.
Na certeza sensível, um momento é oposto como o essente simples e imediato, ou como a essência: a apreensão própria do objeto. O outro momento é posto como o inessencial e o mediatizado, momento que nisso não é “em-si”, mas por meio do Outro: o Eu, um saber, que sabe o objeto só porque ele é; que pode ser ou não. Mas o objeto é o verdadeiro e a essência: ele é, tanto faz que seja conhecido ou não. Permanece mesmo não sendo conhecido – enquanto o saber não é, se o objeto não souber que pode ser. Trata-se assim da singularidade imediata de apreensão do objeto. O outro momento, porém, é posto como o inessencial e o mediatizado, momento que nisso não é “em-si”, mas por meio de Outro: o Eu, um saber, que sabe o objeto só porque ele é; saber que pode ser ou não. O objeto é o verdadeiro e a essência: ele é, tanto que seja conhecido ou não. Permanece mesmo não sendo conhecido – enquanto o saber não é, se o objeto não é. O objeto deve ser examinado, para vermos se é de fato, na certeza sensível mesma, aquela essência que lhe atribui; e se esse seu conceito de ser uma essência corresponde ao modo imediato como se encontra na certeza sensível. Não temos de refletir sobre o objeto, nem indagar o que possa ser em verdade. Mas através da ideia de formação em considerá-lo como a certeza sensível o tem nela resultado.
A questão da consciência está no cerne do debate político levantado por Henry Thoreau que infere as seguintes questões: Deve o cidadão desistir da sua consciência, mesmo por um único instante ou em última instância, e se dobrar ao legislador? Por que então estará cada homem dotado de uma consciência? Na sua opinião devemos ser em primeiro lugar homens, e só então súditos. Não é desejável cultivar o respeito às leis no mesmo nível do respeito aos direitos. A única obrigação que temos de assumir é fazer aquilo que julgamos certo. Costuma-se dizer, e com toda a razão, que uma corporação não tem consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação com consciência. A lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente pela lei tem levado até mesmo os bem-intencionados a agir quotidianamente como mensageiros da injustiça. Um resultado comum e natural de um respeito indevido pela lei é a visão de uma coluna de soldados marchando para a guerra, cruzando morros e vales, contra a sua evidente vontade, e sempre contra o seu senso comum e a sua consciência; por isso essa marcha é muito pesada e faz o coração bater forte.
Desta forma, a “massa de homens”, afirma Thoreau, serve ao Estado não na sua qualidade de homens, mas sim como máquinas, entregando os seus corpos. Eles são o exército permanente, a milícia, os carcereiros, os polícias, posse comitatus, e assim por diante. Todos reconhecem o direito à revolução, ou seja, o direito de negar lealdade e de oferecer resistência ao governo sempre que se tornem grandes e insuportáveis a sua tirania e ineficiência. O soldado que se recusa a participar de uma guerra injusta é aplaudido por aqueles que não recusam apoio ao governo injusto que faz a guerra; é aplaudido por aqueles cuja ação e autoridade ele despreza e desvaloriza; tudo funciona como se o Estado estivesse suficientemente arrependido para contratar um crítico dos seus pecados, insuficientemente arrependido para interromper por um instante sequer os seus atos pecaminosos. Estamos todos, desta forma, de conformidade com a ordem e o governo civil, reunidos para homenagear e dar apoio à própria crueldade. Passamos do imoral ao não-moral, tão desnecessário assim para o tipo de vida que construímos. O mais amplo e comum dos erros, afirma Thoreau, exige a virtude mais generosa para se manter. Por que ele não sabe valorizar a sua sábia minoria? Por que ele chora e resiste antes de ser atacado? Por que ele não estimula a participação ativa dos cidadãos para que eles lhe mostrem as suas falhas e para conseguir um desempenho melhor do que eles lhe exigem? Por que eles lhe exigem? Por que ele sempre crucifica Jesus Cristo, e excomunga Copérnico e Lutero e qualifica Washington e Franklin de rebeldes?
Se
a injustiça social é parte inevitável do atrito no funcionamento da máquina
governamental, pois que seja assim: talvez ela acabe suavizando-se com o
desgaste - certamente a máquina ficará desajustada. Se a injustiça for uma peça
dotada de uma mola exclusiva - ou roldana, ou corda, ou manivela -, aí então
talvez seja válido julgar se o remédio não será pior do que o mal; mas se ela
for de tal natureza que exija que você seja o agente de uma injustiça para
outros, digo, então, que se transgrida a lei. Faça da sua vida um contra-atrito
que pare a “máquina”. O que é preciso fazer é cuidar para que de modo algum
participe das misérias que condeno. Mas nesse caso o Estado não forneceu outra
via: o mal está na sua própria Constituição. Isto pode parecer grosseria,
teimosia e intransigência, mas só quem merece ou pode apreciar a mais fina
bondade e consideração deve receber este tipo de tratamento. Todas as mudanças
para melhor são assim, tais como o nascimento e a morte, que produzem
convulsões nos corpos. O coletor de impostos é meu vizinho e concidadão, e é
com ele que tenho de lidar porque afinal de contas estou lutando contra homens,
e não contra o pergaminho das leis, e sei que
ele voluntariamente optou por ser um agente governamental. Haverá outro
modo dele ficar sabendo o que é e o que fiz enquanto agente do governo, ou
homem, a não ser quando forçado a decidir que tratamento vai dar a mim, o
vizinho que ele respeita como tal e como homem de boa índole, ou que ele
considera um maníaco e desordeiro?
Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o único lugar digno para um homem justo é também a prisão. Se há alguém que pense ser a prisão um lugar de onde não mais se pode influir, no qual a sua voz deixa de atormentar os ouvidos do Estado, no qual não conseguiria ser tão hostil a ele, esse alguém ignora o quanto a verdade é mais forte que o erro e também não sabe como a injustiça pode ser combatida com muito mais eloquência e efetividade por aqueles que já sofreram na carne um pouco dela. Manifeste integralmente o seu voto e exerça toda a sua influência; não se deixe confinar por um pedaço de papel. Uma minoria é indefesa quando se conforma à maioria; não chega nem a ser uma minoria numa situação dessas; mas ela é irresistível quando intervém com todo seu peso. Se a alternativa ficar entre manter todos os homens justos na prisão ou desistir da guerra e da escravidão, o Estado não hesitará na escolha. Se no ano corrente mil homens não pagassem seus impostos, isso não seria iniciativa tão violenta e sanguinária quanto o próprio pagamento, pois neste caso o Estado fica capacitado para cometer violências e para derramar o sangue dos inocentes. Esta é a definição da revolução pacífica, se é que é possível uma coisa dessas.
O
dinheiro acalma muitas perguntas que de outra forma ele se veria pressionado a
fazer; de outro lado, a única pergunta nova que o dinheiro suscita é difícil,
embora supérflua: - “Como gastá-lo?”. Um homem assim fica, portanto, sem base
para uma moralidade. As oportunidades sociais de viver diminuem proporcionalmente
ao acúmulo daquilo ao qual se chama de meios
de trabalho. A melhor coisa a ser feita em prol da cultura do seu tempo por
um homem rico é realizar os planos que tinha quando era pobre. Cristo respondeu aos seguidores de
Herodes de acordo com a situação deles. – “Mostrem-me o dinheiro dos tributos,
disse ele; e um deles tirou do bolso uma moeda. Disse então Jesus Cristo: - Se
vocês usam o dinheiro com a imagem de César, dinheiro que ele colocou em
circulação e ao qual ele deu valor; se vocês são homens do Estado e estão
felizes de se aproveitar das vantagens do governo de César, então paguem-no por
isso quando ele o exigir. Portanto, “dai a César o que é de César, e a Deus o
que é de Deus”; Cristo não lhes disse nada sobre como distinguir um do outro;
eles não queriam saber isso. Confúcio
disse: - “Se um Estado é governado pelos princípios da razão, a pobreza e a
miséria são fatos acabrunhantes; se um Estado não é governado pelos princípios
da razão, a riqueza e as honrarias são os fatos acabrunhantes”. Não! Até que eu
solicite um remoto porto sulino, que a proteção do Estado de Massachusetts me
seja estendida com o fim de preservar a liberdade, ou até que me dedique apenas
a construir pacificamente um patrimônio
aqui no meu Estado, posso negar a minha lealdade ao governo local e negar o seu
direito à minha propriedade e à minha vida. Sai mais barato, em todos os sentidos,
sofrer a penalidade pela desobediência do que obedecer.
O Estado nunca confronta intencionalmente o sentimento intelectual ou moral de
um homem, mas apenas o seu corpo, os seus sentidos. Ele não é dotado de gênio
superior ou de honestidade, apenas de mais força física. Estava claro que eles
não sabiam como lidar comigo e que se comportavam como pessoas pouco educadas.
Havia um erro crasso em cada ameaça e em cada saudação, pois eles pensavam que
o meu maior desejo era o de estar do outro lado daquela parede de pedra. Não pude
deixar de sorrir perante os cuidados com que fecharam a porta e trancaram as
minhas reflexões - que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade;
e o perigo estava de fato contido nelas. Como eu estava fora do seu alcance,
resolveram punir o meu corpo; agiram como meninos incapazes de enfrentar uma
pessoa de quem sentem raiva e que então dão um chuto no cachorro do seu
desafeto. Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às
voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir os seus amigos dos inimigos;
perdi todo o respeito que ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas
lamentável. É nesta medida que decorre a analogia - Não sou individualmente
responsável pelo bom funcionamento da máquina da sociedade. Não sou o filho do
maquinista. No meu modo de ver quando sementes de carvalho e de castanheira
caem lado a lado, uma delas não se retrai para dar vez à outra; pelo contrário,
cada uma segue as suas próprias leis, e brotam, crescem e florescem da melhor
maneira possível, até que por acaso acaba superando e destruindo a outra.
Se uma planta não pode viver de acordo com a sua natureza, ela morre; o
mesmo acontece com um homem.
Se
outros resolvem pagar o imposto que o Estado exige, nada mais fazem além do que
já fizeram quando pagaram o seu imposto, ou melhor dizendo, estimulam a
injustiça além do limite que o Estado lhes pediu. Se eles pagam o imposto
alheio a partir de um equivocado interesse pela sorte daquele que não paga, isto
é, para salvar a sua propriedade ou para evitar o seu encarceramento, isso só
ocorre porque não meditaram seriamente no quanto estão permitindo que os seus
sentimentos particulares interfiram no bem geral. Acredito que logo o Estado
será capaz de aliviar-me de todos os encargos deste tipo e então não serei mais
patriota do que o resto dos meus conterrâneos. Encarada de um ponto de vista
menos elevado, a Constituição, com todos os seus defeitos, é muito boa; a lei e
os tribunais são muito respeitáveis; mesmo o Estado de Massachusetts e o governo
são, em muitos aspectos, coisas admiráveis e bastante raras. Mas se elevarmos
um pouco o nosso ponto de vista, quem será capaz de dizer o que são elas, ou quem
poderá dizer que sequer vale a pena observá-las ou refletir sobre elas? Mesmo
no mundo tal como é, não passo muitos momentos sujeito a um governo. Se um homem
é livre de pensamento, para fantasiar, livre de imaginação, de modo que aquilo
que nunca é lhe parece ser na maior parte do tempo, admite Thoreau, “governantes
ou reformadores insensatos não são capazes de lhe criar impedimentos fatais”.
Enfim,
a autoridade do governo, mesmo do
governo ao qual estou disposto a me submeter é ainda impura; para ser
inteiramente justa, ela precisa contar com a sanção e com o consentimento dos
governados. Ele não pode ter sobre a minha pessoa e meus bens qualquer direito
puro além do que eu lhe concedo. O progresso de uma monarquia absoluta para uma
monarquia constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no
sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo. Será que a democracia tal como a
conhecemos é o último aperfeiçoamento possível em termos de construir governos?
Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os
direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que
ele venha a reconhecer no indivíduo
um poder maior e independente - do qual a organização política deriva o seu
próprio poder e a sua própria autoridade - e até que o indivíduo venha a
receber um tratamento correspondente. Fico imaginando, e com prazer, um Estado
que possa enfim se dar ao luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o
indivíduo respeitosamente, como um vizinho; imagino um Estado que sequer
consideraria um perigo à sua tranquilidade a existência de alguns poucos homens
que vivessem à parte dele, sem nele se intrometerem nem serem por ele
abrangidos, e que desempenhassem todos os deveres de vizinhos e de seres
humanos. Um Estado que produzisse esta espécie de fruto, e que estivesse
disposto a deixá-lo cair logo que amadurecesse, abriria caminho para um Estado
ainda mais perfeito e glorioso; já fiquei a imaginar um Estado desses, mas
nunca o encontrei em qualquer lugar.
Bibliografia
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