domingo, 7 de julho de 2019

Michel de Montaigne - A Teoria e a Escrita do Ensaio.


                                                                                                      Ubiracy de Souza Braga
 
Teu saber nada valerá se não souberem que tens saber”. Pérsio Apud Montaigne (1980: 118)


                         
            Os Eyquem constituíram uma família de comerciantes de vinho, peixes salgados e pastéis na cidade de Bordeaux, nas proximidades do litoral francês. Começaram com uma mercearia na Rue de la Rousselle, mas o estabelecimento cresceu com o desenvolvimento do comércio. Ramon, o primeiro dos Eyquem adquiriu uma senhoria medieval, situada entre Guienne e Périgord, perto de Bordeaux. Tinha por capital Bordéus e encontrava-se a noroeste da Gasconha. O termo refere-se depois ao conjunto das posses francesas do Rei da Inglaterra após o tratado de París em 1259. Compreendia Limousin, Périgord, Quercy, Rouergue, Agenês, uma parte de Saintonge e de Gasconha. Seus limites variaram em função das vicissitudes da dominação inglesa. A propriedade possibilitou-lhe o título de nobreza e ele deixou de ser um simples Eyquem para ser Seigneur de Montaigne, pois esse era o nome que tinha como representação ideológica o domínio das terras adquiridas. A família elevava-se através do generalizado processo de ascensão da burguesia, que, de classe social marginalizada na Idade Média, começaram a aparecer os primeiros vestígios do capitalismo tornava-se a principal protagonista da história moderna.  
            Com Grimon, filho de Ramon e herdeiro das propriedades agrícolas comerciais em Bordeaux e das terras de Montaigne, a família ascendeu às honras oficiais. Grimon tornou-se magistrado civil e casou as filhas com membros da magistratura judiciária; dois de seus filhos tornaram-se advogados e conselheiros no parlamento de Bordeaux.  Pierre, o mais velho, abandonou os livros contábeis pela espada. Participou das guerras italianas e, ao voltar, dividia-se entre os afazeres comerciais, a vida no castelo de Montaigne e as honrosas tarefas decorrentes dos altos cargos municipais, para os quais fora eleito vezes proporcionando-lhe, em troca, uma vida inteira dedicada ao trabalho e engrandecimento da fortuna familiar. Pierre Eyquem de Montaigne casou-se, em 1528, aos 37 anos de idade, com Antoinette de Louppes de Villeneuve, filha de um vendedor de vinhos de Toulouse. Suas origens provinham de rica família de comerciantes judeus:  os Lopez de Portugal e Espanha. De simples Eyquem e Louppes combinaram o espírito empreendedor com a mentalidade aristocrática. Desta forma passaram a Seigneur de Montaigne, percebendo que na caminhada é preciso carregar as sutilezas cotidianas para manter a aparência social de nobres.


                
            O Château de Montaigne está localizado em Saint-Michel-de-Montaigne, no departamento de Dordonha, região Aquitânia, no sudoeste da França. Situado entre Libourne e Bergerac, é um castelo do século XIV, que foi concluído no século XIX. Era a residência do filósofo francês Michel de Montaigne, o fundador dos Ensaios. A arquitetura é projetada no estilo do neorrenascentista. Depois do grande portão de entrada, há um pátio quadrado delimitado por muros altos. A torre redonda da biblioteca  ao lado direito é o único remanescente do século XVI. O castelo está classificado como Monumento histórico da França, pelo decreto de 28 de março de 1952. A propriedade foi adquirida pelo comerciante de vinhos Ramon Eyquem em 1477, bisavô do filósofo Michel de Montaigne, que tinha vindo para a propriedade através de seu trabalho em Bordéus. Adquiriu o título hereditário de “Seigneur de Montaigne” e estabeleceu-se com sua família no local. Nesse castelo revela-se como e onde o pai de Michel, Pierre Eyquem, forneceu uma sólida educação clássica na infância de seu filho que diz nos Ensaios ter falado Latim como língua materna até os seis anos. De 1571 até sua morte em 1592, escreveu seus Ensaios, as obras principais do humanismo do renascimento, e os frutos de uma vida de reflexão e leitura. Após sua morte, a viúva Françoise de La Chassaigne continuou a residir no castelo. Ela recebia Marie de Gournay, tornando-se amigas em 1588, durante uma viagem à Paris e quando enviara cópia anotada dos Essays solicitando que ela cuidasse da publicação.
            Aos 35 anos, com a morte de seu pai, herdou as terras e o castelo de Montaigne, em Dordogne, na França. Desfrutando de boa situação financeira, retirou-se para a sua propriedade em 1571, quando começou a escrever a obra que se tornou clássica, fruto de meditação, reflexão e observações pessoais. Em seus escritos, Montaigne demonstra uma sólida cultura humanística apreendida com a interpretação dos clássicos latinos, como se observa na riqueza de citações de importantes pensadores como Horácio, Ovídio, Sêneca, Lucrécio, Plutarco, Cícero, Juvenal e outros, inventando um gênero literário que viria designar-se por ensaio - esse gênero sem gênero, de uma ambiguidade propositada, que encerra todos os cruzamentos da escrita -, e que ficaria indelevelmente ligado à construção da subjetividade cultural moderna. Os Ensaios constam metodologicamente de três livros e um total de 107 capítulos, nos quais são abordados  variados temas relacionados à existenz. A 1ª edição foi publicada em 1580; a 2ª edição, ampliada, em 1588, e a 3ª edição, póstuma, em 1593. Os temas que aborda não têm um encadeamento linear. E menos ainda um plano teórico preestabelecido, podendo ser lidos separadamente. Neles encontramos reflexões e pensamentos filosóficos (cf. Hartle, 2003). Sua filosofia não é abstrata, mas voltada para os fatos comuns da vida quotidiana, tendo o homem como centro de suas preocupações e sua pessoa (Eu) como exemplo das vicissitudes e contradições humanas (cf. Birchal, 2007). Os analistas classificam sua filosofia como um misto de ceticismo e estoicismo. Os Ensaios representam uma boutade autobiográfica.
A preocupação com a simbiose aristocrática explica o processo disciplinar dado à educação pessoal do filho Michel. O menino era acordado todas as manhãs ao som da espineta, instrumento musical de cordas beliscadas, dotado de teclado, da família dos cravos, para que seus ouvidos se tornassem refinados e, até os seis anos de idade, os familiares e serviçais da casa estavam proibidos de falar outra língua que não o Latim. As cordas são beliscadas com uma pena de ave. Seu uso foi muito difundido na Europa, paralelamente ao do cravo, desde o final do século XV até o século XVIII. Além disso, um preceptor alemão, incapaz de falar vulgarmente em francês, encarregou-se de ensinar-lhe as primeiras letras no idioma de Cícero. Cercado de cuidados, o menino Michel teve uma infância “isenta de sujeição rigorosa, sem pancadas nem lágrimas”. Não teve uma infância feliz, pois quase não irá falar, em seus escritos, sobre a relação com a mãe, e em seu ersatz todas as referências às mulheres serão curiosamente sempre negativas, com raras exceções. Também sobre os irmãos fornecerá poucos elementos.  Depois de Guyenne, Montaigne estudou Direito e formou-se. A carreira de advogado e os cargos de conselheiro no Tribunal de Périgord e no Parlamento de Bordeaux deixarão recordações desagradáveis, marcando a percepção pontual de bárbaras instituições jurídicas e sobre os processos de condenações, compreendidas como criminosas.
 
         Ipso facto, contrabalançando esses aspectos sociais negativos é nessa época que se tornou amigo de Etienne de La Boétie (1997), pois tinha nele o amigo essencial. - “Porque era ele, porque era eu”, constituindo-se uma de suas frases mais citadas, alude à comunhão de afinidades eletivas e interesses com o autor do clássico estudo: O Discurso da Servidão Voluntária publicado originalmente após sua morte em 1563, cujo retrato oblíquo aparece descrito no ensaio “Sobre a amizade”, que de forma direta e descritiva, longe do virtuosismo dos Ensaios, esta carta é um dos raros testemunhos sobre o jovem filósofo. Montaigne publicou-a em 1570, sete anos depois da morte do amigo e antes de renunciar à vida civil para incrustar-se em sua biblioteca (cf. Riendeau, 2005) e dedicar-se em tempo integral à sua obra. O mais profundo sentimento tomou conta dos dois quando nem afeição paternal nem, mais tarde, o amor conjugal foram capazes de superá-lo. Páginas comoventes serão escritas por Montaigne.
Para recordar essa religação e, quando a morte roubou o companheiro, em 1563, a sua existência tornou-se extremamente melancólica. Os prazeres que se lhe ofereciam como consolação - que lembra Sêneca - aumentava ainda mais a tristeza da perda. Os dois participavam juntos de tudo e Montaigne, ao ficar sozinho, decidiu não usufruir mais de nenhum prazer. O texto foi elaborado depois da derrota do povo francês contra o exército e fiscais do rei, que estabeleceram um novo imposto sobre o sal. A obra representa uma espécie de “hino à liberdade”, com questionamentos sobre as causas da dominação de muitos por poucos, da indignação da opressão e das formas como poderá vencê-las. Já no título transparece a contradição do significado do termo “servidão voluntária”, pois como se pode servir de forma voluntária, isto é, sacrificando a própria liberdade de espontânea vontade? Nela, o autor pergunta-se sobre a possibilidade de cidades inteiras submeterem-se a vontade soberana de um só. De onde um apenas tira o poder e o sentido das coisas para controlar todos? Isso só poderia acontecer mediante a  uma espécie de servidão voluntária, pois caso quisessem obter a sua liberdade de volta, precisariam apenas de se rebelar para consegui-la. Mas como recomenda a analítica do poder de Monsieur Michel Foucault: “é inútil revoltar-se”.  
Comparativamente enquanto Etienne vivia, Michel dedicou-se aos divertimentos mundanos, gostando de vestir-se bem, beber bom vinho e deliciar-se com as mulheres, vendo-as apenas como objeto de prazer sensível e achando-as, além de possessivas, incapazes de elevação espiritual. Por outro lado, o exercício da profissão cedo desfez as ambições do recém-formado que tentou fazer carreira na corte e acompanhou Carlos IX a Rouen, em 1562, mas percebeu não ter as qualidades de cortesão. Não gostava dos salamaleques e agradecimentos, nem de tais ou quais cumprimentos verbosos das regras protocolares. O Parlamento provavelmente não o agradava; renunciando ao cargo de conselheiro em favor de Florimond de Raemond, retirando-se para as terras de Montaigne, em 1570. Nesta altura com 37 anos, casado desde os 32 com Françoise de la Chassaigne, filha de um conselheiro do Parlamento de Bordeaux, aspirava apenas viver sossegadamente com os livros. A vida conjugal não o agradava e ter-se-ia “negado a desposar a própria sabedoria, se ela o houvesse querido”. Não procurando o casamento, foi levado a tanto por imposição de motivos ocasionais. Os filhos que teve morreram prematuramente, sobrevivendo apenas uma menina frágil e enfermiça de nome Eleonor, do occitano Aliénor, originou Eleanor em inglês, Éléonore e Lénore em francês, Leonor em português e espanhol, Eleonora e Leonora em italiano.
É a partir sucessivamente através da confluência de todas as formas do real – quadros do pensamento, natureza, história e melancolia que se recolhe à torre do castelo e as tristezas da solidão levaram-no a escrever: ora pelas oscilações da alma, ora pela imaginação caprichosa, ora, ainda, pelas manifestações do quotidiano obscurecido pelas guerras religiosas que assolavam a França. - O meu ofício, e a minha arte, é viver. Antes havia traduzido a Teologia Natural, do espanhol Raymond Seboud (1569), e editado os opúsculos de seu amigo Etienne de La Boétie, para os quais redigira um discurso preliminar. Eram trabalhos de circunstâncias - last but not least - concebidos por razões diversas como antídoto da alma. Agora, achava-se “inteiramente desprovido de qualquer assunto específico” e tomou então a si mesmo como objeto de análise e discussão. Os Ensaios, concebidos nessa ordem de ideias, extravagantes e fora de todas as regras convencionais, da tradição historiográfica de seu tempo, resultaram etnograficamente do costume de anotar as obras lidas quando lhe vinham ao espírito tantas fantasias “sem ordem nem propósito”. As ideias são colocadas nos Ensaios na forma de contradições aparentemente não-antagônicas e o leitor é conduzido, na leitura, por caminhos oblíquos e disfarçados.
Parece que Montaigne pretende desnortear o leitor superficial, apresentando-se como modelo de inconstância e incoerência, confundindo as pistas e falando por meias palavras, porque “é empresa difícil, e mais árdua do que parece, acompanhar o andar do espírito, penetrar-lhe as profundezas opacas e os ocultos recantos”. Leitor assíduo de Sêneca, Montaigne regozija-se em encontrar nele os lugares comuns da sabedoria, apresentados de forma estilosa, concisa e radiante. Diante da produção de conhecimento tomam-lhe de empréstimo as máximas, metáforas e antítese e, como estoico romano, procura familiarizar-se com aquele sentimento institucional da morte, adquirido nos tempos de mundanidade em meio às mulheres e divertimento. Admirador incondicional dos Opúsculos de Plutarco é encorajado pela reflexão disciplinada a exprimir opiniões sem preocupar-se com o assunto e composição. Nele tinha encontrado um autor pelo qual nutria simpatia fraterna e, desta forma, afetivamente nunca mais o abandonaria.    
Michel de Montaigne: as vigas da biblioteca.
O exercício da morte, tal como fora evocado por Sêneca, consiste em viver a longa duração da vida como se fosse tão curta quanto um dia e viver cada dia como se a vida inteira coubesse nele; todas as manhãs, deve-se estar na infância da vida, mas deve-se viver toda a duração do dia como se a noite fosse o momento da morte. Na hora de ir dormir, afirma na Carta 12, digamos com alegria, com um sorriso: “eu vivi”. Isto quer dizer que através dos exercícios de abstinência e de domínio que constituem a askesis necessária, o lugar atribuído ao conhecimento de si torna-se mais importante: a tarefa de se pôr à prova, de se examinar, de controlar-se numa série de exercícios bem definidos, coloca a questão da verdade do que se é, do que se faz e do que é capaz de fazer no cerne da constituição do sujeito moral. O ponto de chegada dessa elaboração é ainda e sempre definido pela soberania do indivíduo sobre si mesmo. Mas essa soberania amplia-se numa experiência vitalista, onde a relação social consigo assume a forma, não somente de uma dominação, “mas de um gozo sem desejo e sem perturbação”.
Ademais, é conhecida a amplitude tomada em Sêneca pelo tema da aplicação a si próprio: é para consagrar-se a esta que é preciso renunciar às outras ocupações: poder-se-ia desse modo tornar-se disponível para si próprio. Sêneca dispõe de todo um vocabulário para designar as diferentes formas que o cuidado de si deve tomar e a pressa com a qual se procura unir-se a si mesmo. Apressa-te, pois para o objetivo: - “dize adeus às esperanças vãs, acorre em tua própria ajuda se te lembras de ti mesmo, enquanto ainda é possível”. É possível dizer que não há idade para se ocupar consigo. - nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para ocupar-se com a própria alma. De sorte que devem filosofar o jovem e o velho, este para que, ao envelhecer, seja jovem em bens pela gratidão ao que foi, e o outro para que, jovem, seja ao mesmo tempo ancião pela ausência de temor pelo futuro. Aprender a viver era um aforismo citado por Sêneca e que convida a transformar a existência numa espécie de exercício permanente; e mesmo que seja bom começar cedo, é importante jamais relaxar.
Mas há uma advertência: “é preciso tempo para isso”. E é um dos grandes problemas dessa cultura de si, fixar, no decorrer do dia ou da vida, a parte que convém consagrar-lhe. Recorre-se a muitas fórmulas diversas. Pode-se reservar, à noite ou de manhã, alguns momentos de recolhimento para o exame daquilo que se fez, para a memorização de certos princípios úteis, para o exame do dia transcorrido; o exame matinal e vesperal dos pitagóricos se encontra, sem dúvida com conteúdos diferentes, nos estoicos; Sêneca, Epiteto, Marco Aurélio, fazem referência a esses momentos que se deve consagrar a voltar-se para si mesmo. Ocupar-se de si não é uma sinecura. Existem os cuidados de si com o corpo, os cuidados de si com regimes de saúde, os exercícios físicos, mas sem serem excessivos, a satisfação, tão medida quanto possível, as necessidades. Existem as meditações, as leituras, as anotações que se toma sobre livros ou conversações ouvidas, e que mais tarde serão relidas, a rememoração das verdades que já se sabe mas de que convém apropriar-se ainda melhor. Marco Aurélio fornece, assim, um exemplo de “anacorese em si próprio”: trata-se de um longo trabalho de reativação dos princípios gerais e de argumentos racionais que persuadem a não deixar-se irritar com os outros nem com os acidentes, nem tampouco com as coisas.
Abandonado seria o retiro na torre do castelo em 1574, depois de dois anos dedicados à redação da parte essencial do Livro I e dos seis primeiros capítulos do Livro II dos Ensaios. Nesse ano volta às tarefas de nobre, pois não era inimigo da agitação das cortes e tinha inclinação “para dar-se muito bem na alta sociedade”, contanto que pudesse dedicar-se a essas tarefas em momentos que lhe aprouvessem. No Bas-Poitou, antiga divisão territorial do Poitou, correspondente a sua parte ocidental, juntou-se ao exército encarregado de retomar Fontenay-le-Comte, em poder dos huguenotes. Isso lhe propiciava muito prazer, permitindo-lhe viver em companhia de homens nobres, jovens e ativos que o entusiasmavam, pois, como representava também “a contemplação de tantos espetáculos trágicos, a liberdade de conversar sem artifícios e de viver uma existência viril e sem cerimônia”. A harmonia da música guerreira parecia distrair e aquiescerem-lhe os ouvidos e a alma, fazendo-o refletir e pensar que “a morte é mais abjeta, mais doentia e penosa no leito do que em combate”. Os Ensaios ficarão repletos de reminiscências de sons de armas e planos estratégicos.
No mesmo ano Michel de Montaigne exerce também funções diplomáticas, aos encarregar-se de uma missão junto ao Parlamento de Bordeaux. Visita cidades termais dos Pirineus e recebe algumas recompensas cortesãs. Em 1576 escreve Apologia de Raymond Sebond, o mais longo de seus escritos e o mais rico do ponto de vista estritamente filosófico onde se encontram elementos essenciais de seu ceticismo. Em novo período de inteira concentração na obra escrita só recomeça em 1578; durante dois anos completa o Livro II dos Ensaios. Em 1580 publica os dois primeiros livros dos Ensaios e viaja por algum tempo pela Itália, onde é surpreendido pela sua eleição para o cargo de prefeito de Bordeaux. O próprio rei ordenou-lhe a posse, em 1581. Montaigne foi escolhido pela segunda vez e as funções de alcaide acabaram se estendendo até 1585. O capítulo final da sua gestão como prefeito não teria sido muito honroso, desde que se dê crédito a duas cartas de conselheiros da cidade, descobertas no século passado. Elas revelam que Montaigne se ausentou da eleição do seu sucessor em virtude da peste que grassava. Preferiu ficar a salvo na torre do castelo, noutro período atento e fecundo compreendido entre 1586 e 1588.
Foram então compostos os últimos Ensaios, que integram o Livro III. Logo após terminar a obra, viajou à Paris a fim de publicá-la e encontrou a capital convulsionada politicamente. Os opositores do Rei Henrique de Navarra vêem no Seigneur de Montaigne um inimigo, pois este era adepto da monarquia. Montaigne é preso e jogado na Bastilha por algumas horas. Da prisão só foi libertado por intervenção da rainha-mãe, Catarina de Médicis. Apesar do episódio inglório, a estada em Paris teve aspectos positivos. Serenados os ânimos, Montaigne acompanhou a corte até Chartres, Rouen e Blois e, nessa viagem, encontrou Mademoiselle de Gournay, única mulher a quem se ligou profundamente, amando-a como uma filha. Estava com vinte e três anos e amava-o com devoção, editando-lhe as obras depois de sua morte. O fim da vida anunciava-se através das crises sintomáticas de cálculos biliares, provável herança paterna. A despeito dos sofrimentos cada vez maiores e a persistente imobilização no leito, Montaigne levantava-se para divertir-se e, sobretudo cavalgar. Detesta os médicos e pretende tratar-se em casa por conta própria. A jovialidade e o bom humor galhofeiro, sem seriedade, aparentemente não se alteram. Até a falha da memória contribui para o divertimento: os lugares e livros que revê sempre são vistos como sorrindo em fresca novidade. Novos amigos o entretêm, especialmente Mademoiselle de Gournay e Monsieur Pierre Charron, discípulo e posteriormente sistematizador da filosofia cética aprendida com o mestre.
Montaigne viveu numa época extremamente conturbada, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista político do qual refletiu algumas características fundamentais, especialmente as mais contraditórias. A primeira de dissolução das transformações econômicas que levaram à destruição da economia feudal da Idade Média e a sua substituição pelas atividades manufatureiras e der comércio. A segunda na metade do século XVI na França foi marcada por esse processo, notando-se cada vez  maior participação estrutural do Estado nos assuntos econômicos. A família Montaigne constitui exemplo paradigmático desse tempo em que a burguesia ascendeu ao primeiro plano da história, sofrendo uma evolução que não se faz sem transformações profundas. Já não é mais tempo de sonhar com as ambições mundanas e cargos públicos, embora não lhe faltem oportunidades, graças aos triunfos obtidos por Henrique de Navarra, ao qual esteve vinculado politicamente. Limita-se então a dar polimento final nos Ensaios, que continuamente revê e aos quais acrescentam em seu ersatz novas reflexões analíticas e pensamentos.
A segunda característica política vincula-se à primeira. É representada pela desconstrução das formas de pensamento vigentes na Idade Média, assim como pela transição para estruturas de pensamento diametralmente opostas ao teocentrismo medieval. O homem burguês precisava uma nova ciência da natureza e uma nova teoria da essência humana que lhe permitissem criar um relacionamento distinto com o mundo social e com semelhantes. O retorno aos modelos teóricos e às fontes da Antiguidade levaram á constituição do humanismo renascentista, alimento espiritual de Montaigne e de muitos filósofos. Essas características sociais formaram um processo unitário embora provocassem, consequentemente, os mais variados tipos de conflitos sociais. Formaram um quadro de pensamento extremamente rico, essencialmente, do ponto de vista intelectual e da sensibilidade. Repleto de esperanças e ao mesmo tempo dominado por melancolia. Aqueles valorizavam a natureza sensível. Não a viam como residência de pecado e degradação. E frequentemente colocavam o homem como centro e objetivo da indagação racional. Uma terceira característica, associada às anteriores, é o movimento da Reforma, iniciado por Lutero e liderado na França por Calvino. Os reformadores insubordinaram-se contra o domínio dos papas romanos e contra certos aspectos sociais da doutrina católica tendo como background o “espírito” do capitalismo.   
Todas essas dúvidas aparecem em Montaigne, propondo um enigma difícil de ser decifrado. Em verdade ele retrata a própria consciência. A coordenada intelectual mais evidente que se propõe é o ceticismo, do qual foi sem sobra de dúvida o maior representante renascentista, influente no mundo contemporâneo. É que o filósofo baseou suas interrogações de homem renascentista, representando novo conteúdo na forma de se expressar, pois estava radicado numa experiência pari passu pessoal e social plenamente distinta. Enfim, estão presentes muito nitidamente uma das tônicas fundamentais de seu tempo e espaço. Aceite com os filósofos renascentistas da natureza, que demonstram que a unidade entre o homem e o mundo natural não significa a consciência de uma essencial comunidade metafísica. Há discordâncias com as consequências dessa concepção no que se refere às condições e possibilidades do conhecimento. Semelhante à natureza analogamente é o homem que vivia realizado na plenitude de sua natureza. Mas não estaria subordinado ao conjunto das relações físicas de causa e efeito naturais. Não por ser um ente privilegiado e mesmo motivado. O conhecimento é concebido como um processo parcial e sujeito às leis que regem a imensidão de turbulências do cosmo. Um inevitável mundo de fábricas fabulosas de estrelas que vagueiam livres e verdadeiros universos-ilhas dentro do Cosmo, constituindo as galáxias que emitem enormes quantidades de luz e se tornam marcos na imensidão, por meios dos quais é possível mapear o espaço e o tempo em grande escala.    
Bibliografia geral consultada.
MONTAIGNE, Michel de, Ensaios. 2ª edição. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1980  (Os Pensadores); Idem, “De los Caníbales”, en Ensayos I. Trad. Dolores Picazo y Almudena Montojo. Madrid: Edición Cátedra Letras Universales, 1998; LA BOÉTIE, Étienne de, Discours de la Servitude Volontaire. Paris: Éditions mille et une nuits, 1997; HARTLE, Ann, Michel de Montaigne, Accidental Philosopher. Cambridge University Press, 2003; RIENDEAU, Pascal, “La Rencontre du Savoir et du Soi dans l’essai”. Disponível em: Études Littéraires, volume 37, nº 1, 2005, pp. 91-103; BIRCHAL, Telma de Souza, O Eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte: Editora Universidade Federal de Minas Gerais, 2007; THEOBALDO, Maria Cristina, Sobre o Da Educação das Crianças: A Nova Maneira de Montaigne. Tese de Doutorado. Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2008; PEDROSO, Sandra Pires de Toledo, Ensaios de Montaigne. O Jugement e sua Forma. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2009; ORIONE, Eduino José de, A Meditação da Morte em Montaigne. Tese de Doutorado. Departamento de Filosofia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2012; MASIERO, Mateus, Sobre Máscaras e Dissimulação nos Ensaios de Montaigne. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2015; POLATTO, Daniel Mota, A Útil Forma de Os Ensaios de Michel de Montaigne. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2018; ANTUNES, Danielle, “Par Manière d`Essai”. Montaigne e a Filosofia do Ensaio. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2018; PRATA, Eduino José de, O Ensaio como Experiência Transformadora de Si: Perto de Michel de Montaigne, Orson Welles, Joseph Jacotot e de Mim Mesmo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Escola de Comunicações e Artes. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019; CARNIER, Flávia Rocha, Filosofia e Educação em Michel de Montaigne. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo, 2019; entre outros.

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