domingo, 15 de outubro de 2023

O Amor Está No Ar – Teoria do Sonho & Empresa Familiar.

                                                                                                     A esperança é o sonho do homem acordado”. Aristóteles

 

Durante cerca de quarenta mil anos antes da colonização europeia iniciada no final do século XVIII, o continente australiano e a Tasmânia eram habitadas por cerca de 250 nações individuais de aborígenes. Após visitas esporádicas de pescadores do Norte e pela (des)coberta europeia por parte de exploradores holandeses em 1606, a metade oriental da Austrália foi reivindicada pelos britânicos em 1770, e inicialmente colonizada por meio do transporte de presos para a colônia de Nova Gales do Sul, fundada em 26 de janeiro de 1788. Nas décadas seguintes, os britânicos exploraram e empreenderam a conquista colonial do resto da Austrália. A sua expansão levou ao conflito com os 300 000 a 1 milhão de australianos aborígenes, que tentaram resistir à sua despossessão. A população aumentou de forma constante nos anos seguintes, o continente foi explorado e, durante o século XIX, outros cinco grandes territórios autogovernados foram estabelecidos. Em 1° de janeiro de 1901, as seis colônias se tornaram per se uma federação e a Comunidade da Austrália desta maneira foi formada. Desde a Federação, a Austrália tem mantido um sistema político democrático liberal estável e continua a ser um reino da Commonwealth.

A população humana do país é de 23,4 milhões de habitantes, com cerca de 60% concentrados em torno das famosas capitais continentais estaduais de Sydney, Melbourne, Brisbane, Perth e Adelaide. Sua capital é Camberra, localizada no Território da Capital Australiana. Tecnologicamente avançada e industrializada, a Austrália é um próspero país, sociologicamente multicultural e tem excelentes resultados em análises em termos de comparações internacionais de desempenhos nacionais, tais como no âmbito da saúde, esperança de vida, qualidade de vida, desenvolvimento social humano, educação pública, liberdade econômica, bem como a proteção pública e privada de liberdades civis e direitos políticos. As cidades australianas também rotineiramente situam-se entre “as mais altas do mundo em termos de habitabilidade, oferta cultural e qualidade de vida”. A Austrália é o país com o quinto maior índice de desenvolvimento humano do mundo (IDH). O termo Austrália foi utilizado historicamente em 1693, na tradução de Les Aventures de Jacques Sadeur dans la Découverte et le Voyage de la Terre Australe, um romance francês de 1676, de Gabriel de Foigny, sob o pseudônimo de Jacques-Sadeur. Alexander Dalrymple utilizou-o em An Historical Collection of Voyages and Discoveries in the South Pacific Ocean (1771), referindo-se a região Sul.

Em 1793, George Shaw e Sir James Smith publicaram Zoology and Botany of New Holland, na qual escreveram sobre “a ilha grande, ou melhor, os continentes, da Austrália, Australásia ou Nova Holanda”. A palavra também apareceu em gráfico de 1799 de James Wilson (1742-1798). O nome Austrália foi popularizado por Matthew Flinders (1777-1814), que usou o nome que seria formalmente aprovado em 1804. Ao elaborar o seu manuscrito e as cartas para o seu A Voyage to Terra Australis de 1814, ele foi convencido por seu patrono, Sir Joseph Banks, a usar o termo Terra Australis pois este era o nome mais familiar ao público. Flinders fez isso, mas permitiu-se a uma nota de rodapé de página: - Se eu tivesse me permitido qualquer tipo de inovação no termo original, teria sido para convertê-lo para Austrália; como sendo mais agradável ao ouvido e uma assimilação com os nomes das outras porções grandes da terra. Esta é a única ocorrência da palavra Austrália no texto; mas no Apêndice III de General Remarks, Geographical and Systematical, on the Botany of Terra Australis, de Robert Brown (1773-1858), o autor faz uso da forma adjetiva australiano, o primeiro uso dessa forma. Apesar da concepção popular, o livro não foi determinante na adoção do nome que veio a ser aceito nos dez anos seguintes. Lachlan Macquarie (1762-1824), um governador da Nova Gales do Sul, em seguida usou o termo em seus despachos formais para a Inglaterra, e em 12 de dezembro de 1817 recomendou ao Instituto Colonial que fosse formalmente adotado. Em 1824, o Almirantado concordou que o continente deveria ser reconhecido oficialmente no mundo com o nome Austrália. 

Durante as experiências do sonho acordado aparecem frequentemente imagens de auréola. As personagens imaginadas, segundo Durand (1997: 151 e ss.), quando da sua ascensão imaginária, têm uma face que se transforma, se transfigura em “halo de luz imensa”, e, ao mesmo tempo, a impressão constantemente experimentada pelo paciente é a do olhar. Olhar que, segundo o psicoterapeuta francês Robert Desoille, é justamente representativo dessa transcendência psicológica a que Freud chama superego, ou seja, olhar inquiridor da consciência moral. Esta deslocação da luz do halo luminoso para o olhar surge-nos perfeitamente natural: é normal que o olho, órgão da visão, seja associado ao objeto dela, ou seja, à luz. Não nos parece útil separar, como faz Desoille, a imagem do olho do simbolismo do olhar. Segundo este autor, o olhar seria o símbolo do julgamento moral, da censura do superego, enquanto o olho não passaria de um símbolo enfraquecido, significativo de uma vulgar vigilância. Mas parece-nos que um olhar se imagina sempre mais ou menos sob a forma de olho, mesmo que fechado. Seja como for, olho e olhar estão sempre ligados à transcendência, como constatam a mitologia universal e a psicanálise. Um filósofo como Ferdinand Alquié (1906-1985) percebeu bem essa essência de transcendência que subentende a seguinte visão: “Tudo é visão, e quem não compreende que a visão só é possível à distância? A própria essência do olhar humano introduz no conhecimento visual alguma separação”. O superego, é antes de tudo, o olho do Pai e, mais tarde, o olho do rei, o olho de Deus, em virtude da ligação que a psicanálise estabelece entre o Pai, a autoridade política e o imperativo moral.  É assim que a imaginação hugoliana, apesar de polarizações maternas e panteístas poderosas, volta sem cessar a uma concepção teológica paternal do Deus “testemunha”, simbolizado pelo olho que persegue o criminoso Caim.

Reciprocamente, o embusteiro, o mau o perjuro deve ser cego ou cegado, como testemunham os versos célebres de L`aigle du casque ou dos Châtimentes.  Mas sabemos que não há necessidade de fazer apelo ao arsenal edipiano para associar o olho e a visão ao esquema da elevação e aos ideais de transcendência: lembremos que é de modo completamente fisiológico que os reflexos de gravitação e o sentido da verticalidade associam os fatores quinésicos e cenestésicos aos fatores visuais. Uma vez que a orientação é estabelecida em relação à gravitação, os signos visuais, por vicariância condicional, podem ao mesmo tempo servir para determinar a posição no espaço e o equilíbrio normal. Neste ponto, como em tantos outros, as motivações edipianas vêm constelar com os engramas psicofisiológicos. Quer dizer, a mitologia confirma igualmente o isomorfismo do olho, da visão e da transcendência divina. Varuna, deus uraniano, é o sashasrâka, o que significa “com mil olhos”, e, tal como o deus hugoliano, é ao mesmo tempo aquele que “vê tudo” e o que é “cego”. Também Odin, o clarividente – que é igualmente zarolho, é o deus espião. O Javé dos Salmos é aquele a quem nada pode ser escondido: “Se eu subo aos céus, tu estás lá, se me deito no Schéol, lá estás. Os fueguinos, bushimanes, samoiedo e outros o sol é considerado o olho de deus. O sol Surya é o olho de Mitra e Varuna; nos persas é o olho de Ahura-Mazda; para os gregos e os hélios é o olho de Zeus, noutros lugares é o olho de Rá, o olho de Alá. Na Babilônia, Shamash é o grande juiz, enquanto para os Koriak e os japoneses o céu é tanto o grande “vigilante” como a testemunha dos crimes mais secretos.   

No âmbito da história disciplinar e na gênese do processo de formação militar, eis como ainda no século XVII se descrevia a figura ideal do soldado. Segundo Foucault, no clássico ensaio: Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão (2014: 133 e ss.), o soldado é, antes de tudo, alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia: e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas – essencialmente lutando – as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal de honra. Na segunda metade do século XVIII, o soldado se progressivamente tornou algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas: lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, assenhora-se dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada caracteristicamente a “fisionomia de soldado”. Neste período, houve uma descoberta extraordinária do corpo como objeto e alvo do poder. O grande livro do homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros etnográficos.

No primeiro caso anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois se tratava ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação: corpo útil, corpo inteligível. E, entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento. Quer dizer, o “homem-máquina” de la Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. Em sua definição, para Foucault, “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, de 1740 a 1786, nasceu em 1712 em Berlim, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados e dos longos exercícios. Mas a questão é: nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de novo? Não é certamente, a primeira vez que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas são novas nessas técnicas.  Neste aspecto, a escala, em primeiro lugar, do controle. 

Mas não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao mesmo nível da mecânica – movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna: a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A modalidade, enfim: implica uma coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais da dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos sociais específicos de utilidade de uso pelo menos igualmente grandes.      

Em O Amor está no Ar (2023), Dana Randall é uma pilota e comandante de aviação, disciplinada, de empresa de serviços aéreos sem fins lucrativos na Austrália. Independente e destemida, ela luta para manter viva a pequena empresa de aviação da família. Mas ela acaba se interessando pelo homem que quer tirá-la do mercado. Tocando a iniciativa ao lado de seu pai empreendedor e da melhor amiga, ela integra a equipe que oferece apoio aéreo à comunidade. Quando William, representante de uma financeira, é enviado de Londres para revisar a contabilidade da empresa, Dana o recebe hesitante. Mas conforme William passa tempo convivendo naquela comunidade, ele se apaixona por Dana e o sentimento parece recíproco. O que ela não sabe é que a “auditoria visa o fechamento da empresa”. E todo o romance desanda, quando ela acidentalmente descobre a verdade de William. Disponível na Netflix desde 28 de setembro de 2023, “Love is in the air” cativou os streamers obtendo o segundo lugar na classificação por 11 700 000 vezes. Um enunciado sobre o sonho que procure explicar a partir de um único ponto de vista, o maior número possível das suas características observadas, e que ao mesmo tempo determine o seu lugar numa esfera mais abrangente de fenômenos, poderá ser chamado de uma Teoria do Sonho.

As várias teorias do sonho se distinguirão por elevarem, como num voo de avião, uma ou outra característica onírica à categoria essencial, por tomarem-na como ponto de partida para explicações e relações. Uma teoria não precisará permitir a inferência de alguma função, isto é, de alguma utilidade ou algum resultado do sonho, mas nossa expectativa de “hábito teleológico”, dizia Freud (2017), acolherá melhor aquelas teorias que considerarem que ele tem uma função.  A crença dos antigos de que o sonho era enviado pelos deuses para guiar as ações humanas tinha como representação uma teoria do sonho completa, que dava informações sobre tudo o que é digno de se saber. Desde que o sonho se tornou um objeto abstrato da pesquisa biológica, conhecemos um número maior de teorias, embora haja entre elas também algumas teorias incompletas.  Se renunciarmos a uma enumeração exaustiva, como consta nos manuais positivistas de história e sociologia sobre qualquer coisa, poderemos tentar o seguinte modo de agrupamento de teorias conforme a hipótese básica sobre a proporção e o ideal típico de atividade psíquica no sonho. Teorias segundo as quais a totalidade da atividade psíquica da vigília prossegue no sonho, como a de Joseph Delbœuf (1831-1896), psicólogo experimental belga que estudou ilusões visuais, inclusive sobre a ilusão de Delboeuf. 

Ele estudou na universidade e ensinou filosofia, matemática e psicofísica. Ele também publicou inúmeros trabalhos diversificados de assuntos, incluindo os efeitos do hipnotismo. Para essas teorias, a psique não dorme, seu aparelho permanece intacto, mas ao ser submetida às condições do estado de sono, distintas da vigília, e sob funcionamento normal, ela deve produzir resultados diferentes daqueles da vigília. A ilusão de Delboeuf é uma ilusão de ótica de percepção de tamanho relativo: na versão mais conhecida da ilusão, dois discos de tamanho idêntico foram colocados próximos um do outro e um deles é rodeado por um anel; o disco circundado então parece maior do que o disco não circundado se o anel estiver próximo, enquanto parece menor do que o disco não circundado se o anel estiver distante. Um estudo de 2005 sugere que é causada pelos mesmos processos visuais que correm a ilusão de Ebbinghaus. A pergunta que se faz quanto a essas teorias é se são capazes de derivar as diferenças entre o sonho e o pensamento de vigília integralmente das condições do estado de sono. Além disso, ao que parece elas não oferecem um acesso possível a uma função do sonho.

Quer dizer, não compreendemos para que sonhamos ou porque o complexo mecanismo do aparelho psíquico continua funcionando mesmo quando deslocado em circunstâncias para as quais não parece ter sido planejado. Dormir sem sonhos ou acordar quando ocorrem estímulos perturbadores seriam as únicas reações adequadas em vez da terceira, a de sonhar. Para o inventor da psicanálise, se for lícito recorrer a uma comparação com o material psiquiátrico, ele diria que as primeiras teorias constroem o sonho como paranoia e as segundas o transformam em modelo de debilidade mental ou de uma amência. Fora de dúvida, a teoria de que na vida onírica ganha expressão apenas uma parcela da atividade psíquica, paralisada pelo sono, é de longe a preferida pelos autores médicos e pelo mundo científico em geral. Tanto quanto se pode pressupor um interesse mais geral pela expressão dos sonhos, podemos designá-la como a teoria dominante. Cabe destacar a desenvoltura com que precisamente essa teoria evita o mais terrível escolho a qualquer explicação dos sonhos, a saber, o “perigo de naufrágio” ao se chocar contra uma das exposições corporificadas pelo sonho. Visto que para ela o sonho é o resultado de uma vigília parcial, ou “uma vigília gradativa, parcial e ao mesmo tempo muito anômala”, como nos diz sobre o sonho a Psicologia de Herbart, essa teoria é capaz, por meio de uma série de estados que vão de um despertar crescente ao estado de vigília plena, de dar conta do que vai do desempenho reduzido do sonho, que se revela pelo absurdo, até o desempenho intelectual plenamente concentrado.

Nas obras de todos os fisiólogos e filósofos modernos encontraremos a concepção do sonhar como “uma vigília incompleta, parcial, ou traços da influência certamente desta concepção”.  Não se consegue manter o sono a salvo dos estímulos; de toda parte, tal como no caso dos germes vitais de que Mefisto se queixa, provém estímulos que se acercam da pessoa que dorme: de fora, de dentro e mesmo daquelas regiões corporais com que nunca nos preocupamos quando acordados. Assim, o sono é perturbado, a psique é sacudida ora de um lado, ora de outro, e funciona por um momento com a parte desperta, contente de poder adormecer outra vez. O sonho seria a reação à perturbação do sono causada pelos estímulos; uma reação, aliás, inteiramente supérflua. No entanto, chamar o sonho de processo físico ainda em outro sentido, que em todo caso é um produto do órgão da psique, é negar ao sonho a particularidade de ser um processo psíquico. A imagem já antiga em sua aplicação ao sonho, dos “dez dedos de uma pessoa completamente ignorante em música que correm sobre as teclas de um instrumento”, talvez ilustrem da melhor maneira possível a apreciação que a atividade onírica recebeu em geral dos representantes das ditas ciências exatas. Nela o sonho se torna impossível de interpretar; afinal, como os dez dedos do ignorante deveriam produzir uma peça musical? Cedo não faltaram objeções à teoria da vigília parcial.  

Num terceiro grupo podemos reunir aquelas teorias do sonho que atribuem à psique sonhante a capacidade e a inclinação para produções psíquicas especiais que ela de modo algum ou apenas de maneira imperfeita pode executar durante a vigília. Da atuação dessas capacidades resulta a maioria dos casos de uma função útil do sonho. As avaliações que o sonho recebeu dos psicólogos antigos entram quase todas nessa categoria. Em vez delas Freud se contenta em citar a afirmação de Friedrich Burdach (1776-1847) de que o sonho é a atividade natural da psique, atividade que não “é limitada pelo poder da individualidade, não é perturbada pela autoconsciência, não é orientada pela autodeterminação, mas é a vitalidade dos pontos sensíveis em livre jogo”. Esse deleite no livre uso das próprias forças é manifestamente imaginado por ele e outros autores como um estado em que a psique se revigora e acumula novas forças para o trabalho diurno, ou seja, como uma espécie de período de férias. Por isso, Burdach também cita e aceita as amáveis palavras com que o poeta reconhecido como Novalis enaltece do domínio dos sonhos: - o sonho é um baluarte contra a uniformidade e a trivialidade da vida, um livre recreio da fantasia agrilhoada em que mistura todas as imagens da vida e interrompe a constante sociedade do adulto uma alegre brincadeira infantil. Sem os sonhos envelheceríamos mais cedo, e, assim, ainda que não possamos considerar que o sonho “nos seja dado diretamente do alto”, podemos encará-lo como tarefa preciosa, um acompanhante amistoso na peregrinação ao túmulo.  

 Jan Evangelista Purkyně (1787-1869), também grafado Johannes Evangelista Purkinje foi médico e professor universitário Tcheco que se notabilizou como anatomista e fisiologista e descobridor das células de Purkinje e do efeito de Purkinje. Segundo Freud ele descreve a atividade revigorante do sonho de maneira ainda mais impressionante: - Em especial, para ele, porque os sonhos produtivos cumpririam essas funções. Eles são brincadeiras leves da imaginação que não têm qualquer relação com os acontecimentos diurnos. A pisque não quer prolongar as tensões da vida da vigília, e sim dissipá-las, refazer-se delas. Ela produz, antes de mais nada, aqueles estados que se opõem aos da vigília. Ela cura a tristeza com alegria, as preocupações com esperanças e imagens joviais e divertidas, o ódio com o amor e a simpatia, o medo com a coragem e a confiança; ela apazigua a dúvida com a convicção e com a crença firme, a expectativa frustrada com a realização. Muitas feridas do espírito que o dia manteria constantemente abertas são curadas pelo sono enquanto as cobre e protege de novas irritações. É nisso que repousa em parte o efeito terapêutico do tempo. O autor sabe que percebemos que o sono é um benefício para a vida psíquica, e essa obscura noção da consciência popular obviamente não se deixa privar do preconceito de que o sonho é “um dos caminhos pelos quais o sono concebe seus próprios benefícios”.  A tentativa original e ampla de explicar o sonho a partir da atividade especial da psique, capaz de se desenvolver apenas no estado de sono, foi empreendida por Karl Albert Scherner em 1861. 

Quer dizer, que foi escrito num estilo carregado e grandiloquente, com um entusiasmo quase embriagado pelo seu objeto e que deverá ter um efeito repulsivo sobre os leitores que não for capaz de arrastar consigo, o livro de Scherner oferece tais dificuldades a uma análise que para o psicanalista, recorremos de boa vontade à exposição mais clara e mais breve em que o filósofo Johannes Volkelt (1848-1930) nos apresenta as teorias schernerianas. Mas, em compensação, a atividade psíquica que cabe chamar de fantasia, liberta de todo o domínio do entendimento, e, assim, livre de uma moderação austera, ascende no sonho ao domínio irrestrito. É verdade que ela usa os tijolos mais recentes da memória da vigília, mas com ele constrói prédios que diferem imensamente das construções da vigília; no sonho ela não se mostra apenas reprodutiva, mas também produtiva. Suas peculiaridades conferem à vida onírica as características especiais que esta apresenta. Ela mostra predileção pelo desmedido, exagerado, monstruoso. Ao mesmo tempo, porém, liberta das categorias refreadoras do pensamento, ela ganha maior flexibilidade, agilidade e versatilidade; da maneira mais sutil, ela é sensível aos estímulos delicados do humor e aos afetos revoltosos; ela coloca a vida interior de imediato em imagens plásticas exteriores. À fantasia onírica, segundo Freud, falta a linguagem conceitual; ela precisa pintar plasticamente aquilo que quer dizer; e, como os conceitos não exercem qualquer influência debilitante, ela os pinta com abundância, a força e a grandeza da forma plástica.  

Por isso, sua linguagem, por mais clara que seja, se torna difusa, desajeitada, canhestra. Quer dizer, a clareza de sua linguagem é dificultada em especial pelo fato de ela ter a aversão a expressar um objeto, com a própria imagem deste, dando preferência a uma imagem estranha, desde que esta apenas seja capaz de exprimir aquele elemento do objeto cuja figuração lhe interessa. Essa é a atividade simbolizadora da fantasia. Além disso, é muto importante o fato de a fantasia onírica não reproduzir os objetos de maneira exaustiva, mas apenas seus contornos, e estes da maneira mais livre. Por isso, suas pinturas parecem inspiradas pelo gênio. A fantasia onírica não se detém na mera apresentação do objeto, mas é intrinsecamente obrigada a enredar o eu onírico com ele em maior ou menor grau, criando assim uma ação. O sonho gerado pelo estímulo visual, por exemplo, pinta moedas de ouro na rua; o sonhador as recolhe e as leva consigo.  No entender de Scherner, a formação dos sonhos começa apenas no ponto em que para os ouros autores ela se esgota.  O material com que a fantasia onírica executa sua atividade artística é predominantemente o dos estímulos corporais orgânicos, tão obscuros durante o dia, de modo que sua teoria, demasiado fantasiosa, e a teoria de Wilhelm Wundt e de outros fisiologistas, talvez sóbrias demais, são antípodas nos aspectos e coincidem inteiramente quanto á hipótese sobre as fontes oníricas e os excitadores dos sonhos.  

 Não queremos perder de vista e per se considerar útil o que a fantasia onírica faz com os estímulos corporais. Ela pratica um jogo zombeteiro com eles, imaginando as fontes orgânicas, das quais provêm os estímulos no sonho correspondente, segundo um simbolismo plástico qualquer. Scherner afirma, no que Volkelt e outros não o seguem, que a fantasia onírica teria uma figuração predileta determinada para todo o organismo; seria a casa. Porém, felizmente para suas figurações, ela parece não se prender a esse material; ela pode ao contrário, utilizar séries inteiras de casas para identificar um único órgão: longas ruas residenciais para indicar o estímulo intestinal, por exemplo. Outras vezes, partes isoladas da casa figurariam, de fato, partes isoladas do corpo; assim, por exemplo, num sonho provocado por uma dor de cabeça, o teto de um aposento que o sonhador vê coberto por aranhas repulsivas semelhantes a sapos, figuraria a cabeça. Deixando inteiramente de lado o simbolismo da casa, outros objetos quaisquer são empregados para representar a parte do corpo que envia o estímulo onírico. O sonho masculino provocado pelo estímulo sexual faz o sonhador encontrar na rua a parte superior de um clarinete, ou a mesma parte de um cachimbo, ou uma pele. 

Freud lembra-nos que o clarinete e o cachimbo representam a forma aproximada do membro masculino; a pele, os pelos pubianos. No sonho sexual feminino, comparativamente, a estreiteza do ponto em que as coxas se unem pode ser simbolizada por um pátio estreito, rodeado de casas, e a vagina, por uma trilha muito estreita, escorregadiamente macia, que atravessa o pátio e que a sonhadora precisa percorrer para, por exemplo, levar uma carta a um homem.   Entretanto, para Freud, a fantasia onírica, porém, pode não só voltar sua atenção à forma do órgão causador, mas igualmente transformar a substância que ele contém em objeto de simbolização. Assim, por exemplo, o sonho provocador por estímulo intestinal pode conduzir por ruas enlameadas, o sonho provocado por estímulo urinário pode levar até as margens de um lago espumante; o tipo de sua excitação e o objeto que ele deseja são representados de maneira simbólica; ou ainda, o eu onírico entra em ligação concreta com as simbolizações de seu próprio estado, quando no caso de estímulos dolorosos, lutamos desesperados com cães ferozes ou touros enfurecidos, ou quando, em sonho de origem sexual, a mulher se vê perseguida por um homem nu.

 Abstraindo-se mentalmente de toda riqueza possível na execução, uma atividade simbolizadora da fantasia permanece como a força central de qualquer sonho. Posteriormente, Volkelt tenta penetrar mais fundo no caráter dessa fantasia e indicar o lugar da atividade psíquica assim reconhecida em um sistema de pensamentos filosóficos; faz isso num livro bela e calorosamente escrito, mas de compreensão muito difícil para aqueles que não estiverem preparados mediante formação prévia para a preensão intuitiva dos esquemas conceituais da filosofia. Ipso facto, não há uma função útil ligada à atuação da fantasia simbolizadora de Scherner em sua interpretação dos sonhos. Ao sonhar, a psique brinca com os estímulos que lhe são oferecidos de forma travessa. Para sermos honestos reconheçamos que parece difícil evitar fantasias ao tentar explicar o sonho. Finalmente, para Freud, quem fala da relação do sonho com as perturbações mentais pode se referir a três coisas: 1) relações etiológicas e clínicas, como por exemplo, quando um sonho substitui, introduz ou resulta de um estado psicótico, 2) modificações sofridas pela vida onírica no caso de uma doença mental e 3) relações estreitas entre o sonho e as psicoses, analogias que apontam para afinidades essenciais. Como demonstra a literatura sobre o assunto reunida por Spitta, Radestock, Maury e Tissé, essas múltiplas relações entre as duas séries de fenômenos forma o tema predileto dos autores médicos em épocas anteriores da medicina – e voltaram a sê-lo na atualidade. Faz muito tempo, Sante de Sanctis (1862-1935) voltou atenção a esse nexo. 

Sante De Sanctis nasceu em 7 de fevereiro de 1862 em Parrano, onde sua família residia desde o século XVI. Formou-se em medicina na Universidade La Sapienza de Roma com uma tese sobre afasia em 1886. Começou a trabalhar em 1891 no laboratório romano de anatomia patológica do hospital psiquiátrico Santa Maria della Pietà, dirigido por Giovanni Mingazzini. Naqueles anos ele foi para Zurique e Paris para completar seus estudos psiquiátricos. De Sanctis, então, iniciou suas pesquisas sobre a psicologia dos sonhos e, em 1896, publicou “I sogni e il sonno nell`isterismo e nella epilessia”, seguido de “I sogni: studi psicologici e clinici di un alienista” em 1899, citado no tratado A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud. Juntamente com Giuseppe Ferruccio Montesano e Maria Montessori, foi o fundador da psiquiatria infantil e adolescente italiana. Em 1898, De Sanctis solicitou uma licença para lecionar, rejeitada em 1901 pelo Consiglio Superiore della Pubblica Istruzione. Segundo a comissão, a psicologia deveria ter sido ensinada por um filósofo e não por um fisiologista ou psiquiatra. Em dezembro deste ano, o Ministro da Educação, Nunzio Nasi, atendeu ao seu pedido. Em 1906 obteve uma das três primeiras cátedras de Psicologia Experimental na Faculdade de Medicina de Roma. Entre 1929 e 1930 trabalhou no tratado de dois volumes sobre Psicologia Experimental, no qual resumiu seus 25 anos de ensino. Organizou o V Congresso Internacional de Psicologia em 1905, enquanto em 1910 foi nomeado presidente da Società Italiana di Psicologia. O compromisso com as crianças portadoras de deficiência manteve-se constante em sua vida, à qual dedicou estudos monográficos como Educazione dei Deficienti, publicado em 1915. Também fundou a primeira Escola de Jardim de Infância na via Tasso, em Roma, e fundou a primeira Enfermaria Hospitalar de Psiquiatria Infantil e Adolescente na Itália. Ele morreu em Roma em 1935.

Enfim, freudianamente, se “o sonho é uma realização do desejo”, ele sugere que ao passarmos por um desfiladeiro estreito chegamos de súbito a uma colina em que os caminhos se dividem e o mais vasto panorama se abre em diferentes direções, podemos parar por um momento e refletir para onde queremos ir. Depois de realizarmos a primeira interpretação do sonho, estamos numa situação semelhante. Encontramo-nos em meio à clareza de uma descoberta repentina. O sonho não é comparável aos sons desarmônicos de um instrumento musical atingido pelo golpe de uma força externa em vez de ser tocado pela mão do instrumentista, ele não é desprovido de sentido, não é absurdo, não pressupõe que uma parte de nosso patrimônio de representações durma enquanto outra começa a despertar. Ele é um fenômeno psíquico de plena validade – mais precisamente, uma realização de desejo; ele deve ser incluído na cadeia das ações psíquicas compreensíveis da vigília; ele foi construído por uma atividade intelectual altamente complexa. Porém, no mesmo instante que queremos nos alegrar com essa descoberta, somos assaltados por uma profusão de perguntas. Mas ele sugere deixar todas essas questões de lado por enquanto e seguir um único caminho. Ficamos sabendo que o sonho figura um desejo como realizado. É fácil mostrar que os sonhos muitas vezes revelam sem reservas o caráter de realização de desejo, de maneira que podemos nos admirar que a sua linguagem já não tenha sido compreendida há muito tempo. Há um sonho que na experiência significativa de Sigmund Freud ele pode produzir sempre que quiser, por assim dizer de maneira praticamente no âmbito experimental.   

Bibliografia geral consultada.

DURAND, Gilbert, As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Introdução à Arquetipologia Geral. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997; ELIAS, Norbert; SCOTSON, John, Os Estabelecidos e os Outsiders: Sociologia das Relações de Poder a Partir de Uma Pequena Comunidade. Rio de Janeiro: Editor Jorge Zahar, 2000; ABRÊU, João Azevêdo, A Questão Mente-corpo em “A Interpretação dos Sonhos” de Freud. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003; MAIGRET, Eric; MACÉ, Eric (Org.), Penser les Médiacultures. Nouvelles Pratiques et Nouvelles Approches de la Représentation du Monde. Paris: Armand Colin, 2005; SCHOPENHAUER, Arthur, O Mundo Como Vontade e Como Representação. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2005; JAY, Martin, A Imaginação dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais, 1923-1950. Rio de Janeiro: Editor Contraponto, 2008; GUEDES, Maria do Carmo; CAMPOS, Regina Helena de Freitas (Org.), História da Psicologia: Pesquisa, Formação, Ensino. Rio de Janeiro: Editor Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008; MEDEIROS, Adriana Silva, Liderança Feminina nas Organizações: Discursos sobre a Trajetória de Vida e de Carreira de Executivos. Dissertação de Mestrado. Programa de Mestrado Profissional em Gestão e Negócios. Porto Alegre: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2014; FREUD, Sigmund, A Interpretação dos Sonhos. Porto Alegre: L&PM Editor, 2017; CAMASSA, José Bento de Oliveira, “La Australia argentina (1898): A Utopia Patagônica de Roberto Payró”. In: Leviathan. Cadernos de Pesquisa Política, n° 15, pp. 147-177, 2017; ROMANETTO, Matheus Capovilla, Clínica e Política: Bases Subjetivas da Transformação Social em Eric Fromm. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Departamento de Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2021; SETH, Sanjay, Humanidades, Universalismo e Diferença Histórica. Vitória: Editor Milfontes, 2021; PEREIRA, Elenita Malta, FIUZA, Denis Henrique, & FRITZ, Sara Rocha, “Um Olhar Atento à Paisagem: Entrevista com Dora Shellard Corrêa”. In: História Ambiental Latinoamericana y Caribeña. Revista de la Solcha, 13(2), 332–357, 2023; entre outros. 

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