quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Universidade Al-Azhar - Cultura Árabe, Disciplina & Artes Liberais.

                                                                O objetivo da educação devia ser formar uma personalidade”. Albert Hourani  

      

       Na história social do Islã, inclusive se inferimos em termos de sua estrutura essencial, os árabes tiveram uma parte especial. O Corão é escrito em árabe, o profeta era árabe, pregou primeiro para os árabes, que formavam a “matéria do Islã”, o instrumento humano pelo qual a religião e sua autoridade se difundiram; o árabe se tornou e continua a ser a língua da devoção, da teologia e da lei. A distinção nítida que a princípio existia entre as frações da classe dominante árabe e os novos convertidos ficou mais tarde enviesada, e aos olhos da lei todos os fiéis eram iguais exceto na virtude; mas de fato o sentimento de diferença étnica persistiu expressando-se não só nas controvérsias literárias do Shu´ubiyya, como também na luta pelo poder, que havia por trás das relações espirituais. O poder finalmente passou para os turcos e grupos afins, e o turco se tornou a língua do governo; porém, mesmo então o árabe manteve a sua posição privilegiada, como a língua da cultura e da lei religiosa, em suma, da formação do Estado no seu aspecto religioso como defensor da Charia. Como tal, era o meio de trabalho pelo qual os árabes podiam desempenhar um papel social e político na vida pública da comunidade. O império se desintegrou nos séculos XVIII e XIX, e o que representava um processo aparente naturalmente, frequentemente repetido na história, tomou meios e forma de nacionalidade. Sua particularidade infere sobre poderosos líderes de famílias na constituição das cidades, que tinham conseguido preservar suas riquezas e posição social sob a proteção do sistema religioso.

        Nessas famílias, as ciências da língua árabe eram prezadas e passadas adiante, como uma introdução necessária às ciências da religião; o orgulho da origem árabe, muito frequentemente, de descendência do profeta ou de um dos pioneiros heróis do Islã, era misturado com uma percepção do que os árabes tinham feito pelo Islã, e ambos reforçavam aquele senso de responsabilidade para com a comunidade e o passado que sempre marcara ahl al-sunna wal´l-jama´a. Num certo sentido, portanto, podiam ser consideradas porta-vozes da consciência árabe. Sob outro aspecto, o reino wahhabita na Arábia era árabe: não apenas pelo acaso de ter surgido na numa região em que se falava o árabe, mas também porque, chamando os muçulmanos a retornar para a pureza primitiva do islã, ele revivia a memória do período árabe na história da umma. O império de curta duração de Muhammad ´Ali era igualmente árabe por acaso geográfico: a expansão do Egito estava fadada a ser, no primeiro momento, a expansão em países árabes. Muhammad ´Ali pretendia criar um reino árabe? Nada em suas palavras ou em sua política parece demonstrá-lo, embora haja sinais desses planos nas palavras de seu filho e principal auxiliar, Ibrahim Paxá: “Não sou turco. Vim para o Egito ainda criança e desde então o Sol do Egito mudou o meu sangue e me tornou inteiramente árabe”.        

Esta declaração tem sido frequentemente citada, assim como o comentário do visitante de que o objetivo de Ibrahim era fundar um Estado inteiramente árabe, e “restituir à raça árabe a sua nacionalidade e existência política”. Ao mesmo tempo ele escrevia a seu pai em termos que podiam conter um significado semelhante: a guerra com os turcos era uma guerra nacional e racial, e um homem devia estar disposto a sacrificar a sua própria vida pela sua nação. Mas, segundo Hourani (2005), “não há clara evidência do que queria dizer com isso, nem se a declaração refletia mais do que um estado passageiro de seu pensamento”. Historicamente durante a meia geração de 1908 a 1922, o nacionalismo árabe se tornou uma ideia política culturalmente consciente, depois um movimento organizado, adquiriu um programa, foi forçado a fazer uma escolha, pois viu as suas esperanças destruídas e criou pela experiência uma nova mentalidade. Em nenhum lugar esse processo teórico (Corão), histórico (Islã) e social (linguagem) pode ser estudado que nas páginas completas, francas e auto-reveladoras de al-Manar.

Desde o início de sua existência até o fim, o objetivo final do pensamento político de Rashid Rida (1865-1935) representou o restabelecimento de um verdadeiro Estado islâmico. Ele desaprovava todas as tentativas de criar no mundo islâmico Estados baseados numa solidariedade que não fosse a da religião: por exemplo, Estados nacionais em que a nação era o objetivo final da lealdade, o sentimento nacional a força de união, e o interesse nacional o critério mais elevado de política e legislação. Essa espécie de base na estrutura do nacionalismo não lhe parecia senão uma nova forma da solidariedade tribal puramente natural que existira nos dias anteriores ao Islã; os seus princípios eram o dos tempos da ignorância religiosa – lealdade e honra – e não os da Charia. Ele estava, portanto, em desacordo com a crença de Ibn Khaldun de que a ´asabiyya natural é o fundamento de todo Estado e está presente como um motivo em toda ação social, de que a lealdade e a lei religiosa só podem ser eficazes depois que a ´asabiyya realizou o seu trabalho. Isso, dizia ele, era de fato falso, e a história do Islã o demonstrava; as ações de Maomé (571-632),  líder religioso, político e militar árabe, não eram pautadas pelo desejo de alcançar prestígio social ou de aumentar a autoridade do seu clã, e o seu sucesso não se devia à força da ´asabiyya posta à sua disposição.

Era subordinada aos imperativos do Islã. Se o tema do sentimento nacional árabe é presente nos escritos de Rashid Rida, e ainda mais forte nos de seu amigo Shakib Arslan, quando eles falam dos problemas gerais do Islã, estão pensando em primeiro lugar sobre o Islã nacionalista árabe, e consideram os outros muçulmanos, nas palavras de Arslan, “os alunos árabes”. Mas a contradição em seu ersatz é apenas aparente: acreditavam que, devido ao lugar especial dos árabes na umma, o nacionalismo árabe podia ser conciliado com a unidade islâmica de um modo impossível para qualquer outro – ainda mais que a revivescência da umma precisava de uma revivescência dos árabes. A contradição dialética, é que o pensamento islâmico não floresceria, se a língua árabe não florescesse: era a única língua em que o Islã podia ser apropriadamente estudado e exposto, sendo, portanto, dever de todo muçulmano que pudesse empreender essa tarefa aprender o árabe. Não poderia haver unidade profunda na umma, se não houvesse unidade de língua, e na umma muçulmana essa língua não poderia ser senão o árabe. Nenhum não-árabe fora capaz de servir ao Islã sem o conhecimento da língua. O árabe era um bem comum de todos os muçulmanos.  

A Universidade de Alazar, ou Al-Azhar, está localizada no Cairo, Egito. Está anexa à mesquita homônima. Foi fundada como Escola de Teologia no Califado Fatímida, (xiita) em 988, sendo a segunda mais antiga universidade do mundo. Nacionalizada em 1960, as disciplinas não-religiosas foram adicionadas ao seu currículo, em 1961, tais como Medicina, Farmácia, Engenharia e Agricultura. Em 1962 admitiu pela primeira vez estudantes femininas. Fundada como um centro de aprendizagem islâmica, seus alunos estudam o Alcorão e a lei islâmica em detalhe, sendo necessário, para admissão, saber de cor o Alcorão, ou “pelo menos importantes partes dele”. A revelação do Alcorão não foi um evento isolado no tempo. Al-Azhar foi uma das primeiras universidades do mundo, e a única no chamado “mundo árabe” a sobreviver como uma universidade moderna, incluindo temas seculares no currículo. Na atualidade representa o centro principal da literatura árabe e da aprendizagem islâmica sunita no mundo. A composição da Universidade representa as escolas teológicas de Al-Ashari e Al-Maturidi, as quatro escolas de jurisprudência islâmica sunita: Hanafi, Maliki, Shafi e Hanbali, e as sete principais ordens sufis. Abû al-Hasan al-Ash’arî viveu toda sua infância em Basra, antes de ir para Bagdá, a capital do Califado, para prosseguir com seus estudos.

Estudou igualmente a teologia (kalâm) com seu sogro Abû ‘Alî al-Jubbâ’î, falecido em 915, que representava o Shaikh dos mu’tazilitas e que marcou de uma maneira indelével seu jovem genro. O Imâm al-Ash’arî se tornou um brilhante discípulo da escola teológica mu’tazilita, famoso por suas competências excepcionais em dialética e controvérsia. Além de suas aptidões em teologia escolástica, tendo em vista que era também um jurista e um reconhecido tradicionalista, “tendendo para uma vida modesta e ao ascetismo”. Algumas fontes precisam que era sufi. Desde sua juventude, foi seduzido pelas teorias mu’tazilitas apoiadas por al-Jubbâ’î, que era então o representante da escola mu’tazilita de Basra. A cidade teve muitos nomes ao longo de sua história, sendo Baṣrah o mais comum. Em árabe, a palavra baṣrah significa “o vigia”, o que pode ter sido uma alusão à origem disciplinar da cidade como base militar árabe contra os sassânidas. Outros argumentaram que o nome é derivado da palavra aramaica basratha, que significa “lugar de cabanas, assentamento”. A princípio, Abû al-Hassan era seu aluno, e logo se tornou seu sócio ajudando-o ardentemente em defender suas teses acadêmicas. Tornou-se mestre na arte de usar a razão para defender sua doutrina. A Universidade opõe-se a uma reforma liberal do Islã e emitiu em 2017, uma fatwa contra a mesquita liberal Ibn Rushd-Goethe, de Berlim, por “não permitir burcas e nicabes, nem separação de sexos em suas instalações e aceitar estudantes homossexuais” (cf. Boswell, 1981). 

A fátua é uma opinião jurídica não vinculativa sobre um ponto da lei islâmica (sharia) dada por um jurista qualificado em resposta a uma pergunta feita por um indivíduo privado, juiz ou governo. Um jurista que emite fátuas é denominado Mufti, e o ato de emitir fátua é denominado “iftā”. A Fátua desempenhou um papel importante no decorrer da história islâmica, assumindo novas formas na Era moderna. Assemelhando-se ao jus respondendi na lei romana e na responsa rabínica, as fátuas emitidas de forma privada serviram historicamente: 1) para informar as gerações muçulmanas sobre o Islã, 2) aconselhar os tribunais sobre pontos difíceis da lei islâmica e, 3) elaborar a lei substantiva. Em tempos posteriores, fátuas públicos e políticos foram emitidos para tomar posição sobre controvérsias doutrinárias, legitimar políticas governamentais ou articular queixas da população. Durante a Era do Colonialismo europeu, a Fátua desempenhou “um papel na mobilização da resistência à dominação estrangeira”. Muftis atuam como estudiosos independentes no sistema jurídico clássico. Alguns séculos, muftis sunitas foram incorporados às burocracias estatais, enquanto juristas xiitas no Irã afirmavam uma autoridade autônoma a partir do início da chamada Era moderna. 

Por que Basra foi escolhida como local para a nova cidade permanece incerta. O local original ficava a 15 km de Shatt al-Árabe, portanto, não tinha acesso ao comércio marítimo e, mais importante, à água doce. Além disso, nem os textos históricos nem os achados arqueológicos indicam que havia muito agricultura interior na área antes da fundação de Basra. De fato, em uma anedota relatada por al-Baladhuri, al-Ahnaf ibn Qays implorou ao califa Umar que, enquanto outros colonos muçulmanos foram mantidos em áreas bem irrigadas com extensas terras agrícolas, o povo de Basra tinha apenas “pântano salgado de juncos que nunca seca e onde o pasto nunca cresce, limitado a Leste por água salobra e Oeste, por um deserto sem água”. Não temos cultivo ou criação de gado para nos fornecer nosso sustento ou comida, que chega até nós como pela garganta de uma avestruz. No entanto, Basra superou essas áreas preservadas naturais e rapidamente se tornou a segunda maior cidade do Iraque, se não de todo o mundo islâmico. Seu papel como formação política estratégica acampamento militar significava que os soldados precisavam ser alimentados e, como esses soldados recebiam soldados do governo, tinham possibilidade de usar dinheiro para gastar. Assim, tanto o governo (público) quanto os empresários (privados) investiram pesadamente no desenvolvimento de uma vasta infraestrutura agrícola na região de Basra.

        Esses investimentos foram realizados com a expectativa de um retorno lucrativo, indicando o valor do mercado de alimentos de Basra. Embora Zanj tenham sido escravos da África que foram colocados para trabalhar nesses projetos de construção, a maior parte do trabalho foi realizado por homens livres que prestaram atendimentos. Às vezes, os governadores fiscalizavam diretamente esses projetos, mas geralmente eles simplesmente atribuíam a terra, enquanto a maior parte do financiamento era realizada por investidores privados. Em dezembro de 2015, Behairy foi condenado a um ano de prisão por “insultar a religião”, mas foi libertado após um perdão presidencial. O presidente da Universidade Al-Azhar, no Cairo (2017), foi substituído após descrever um intelectual muçulmano reformista como apóstata. Esta substituição ocorre quando esta instituição sunita é acusada de não ter feito o suficiente para combater o extremismo. Ahmed Hosni Taha foi forçado a se desculpar depois de chamar o reformista Islam al-Behairy de “um apóstata” na televisão por atacar os fundamentos da lei islâmica. Em comunicado divulgado no dia seguinte, Al-Azhar anunciou a substituição do Sr. Taha como reitor da universidade pelo Grande Imam Ahmed al-Tayeb, que já dirige toda a instituição Al-Ahzar o que inclui escolas e universidade, uma das principais instituições educacionais islâmicas do mundo.

Alguns clérigos ressentem-se de Islam el-Behairy por criticar os escritos canônicos sunitas, que ele “compreende como inspiração para extremistas, bem como os manuais de jurisprudência islâmica usados ​​em Al-Azhar, que ele diz conter afirmações arcaicas sobre escravidão, mulheres e não-muçulmanos que podem ser chocantes para o leitor moderno”. Dependendo de cada religião, um apóstata, afastado do grupo religioso do qual era membro, pode ser vítima de preconceito, intolerância, difamação e calúnia por parte dos membros ativos. Um caso extremo, é aplicação da pena de morte para apóstatas na religião islâmica em países muçulmanos, como ocorre na Arábia Saudita, Irã, e vários outros. Os Zanj negociavam com árabes e indianos, mas segundo algumas fontes, apenas localmente, já que não possuíam navios oceânicos. De acordo com outras fontes, os povos fortemente Bantu Swahili já tinham navios marítimos com marinheiros e mercadores negociando com a Arábia e a Pérsia, e até o leste da Índia e da China.  No entanto, Zanj se refere mais ao estado da religião do que à etnia ou origem. O Swahili, um etnônimo não contemporâneo, incluía tanto Zanj, não crentes, quanto a Umma, comunidade islâmica. Umma, em árabe: أمة, transl. Ummah, “nação”, “comunidade”, é um termo que no islão se refere à comunidade constituída por todos os muçulmanos do mundo, unida pela crença em Alá, no profeta Maomé, nos profetas que o antecederam, nos anjos, na chegada do dia do Juízo Final e na predestinação divina. É irrelevante a raça, etnia, língua, gênero e posição social dos seus membros. 

Todo o muçulmano deve velar pelo bem-estar dos integrantes da Umma, sendo estes muçulmanos. No Alcorão o termo surge sessenta e quatro vezes no desenvolvimento do texto, mas na maior parte dos casos não se refere à comunidade muçulmana. É utilizado no sentido mais amplo, para designar um grupo específico de pessoas que segue determinado profeta, por exemplo, a umma dos cristãos, um grupo étnico ou um grupo de pessoas que se afastaram daquilo que se entende ser a via correta do ponto de vista religioso. Ainda de acordo com o Alcorão, no início toda a humanidade vivia unida, formando uma única Umma. O profeta Maomé criou uma Umma com o respectivo conselho (Majlis ul-Ummah) em Medina após a Hégira (622) que integrava muçulmanos, judeus e pagãos e cujas regras político-religiosas estavam registradas na denominada Constituição de Medina. Nesta Umma os vários grupos étnico-sociais mantinham o seu carácter próprio; não era necessário aos judeus aderirem ao islão. Quando Maomé morreu, praticamente a Arábia, que antes se dividia em comunidades tribais nas quais seus membros deveriam proteger uns aos outros, encontrava-se unida numa única Umma, o que possibilitou uma rápida expansão desta nação. No século XIX e século XX, época durante a qual o mundo islâmico foi colonizado pelas nações europeias, o termo engendrou no discurso dos movimentos nacionalistas islâmicos, que apelavam à união da Umma face à presença europeia. Nos chamados movimentos fundamentalistas islâmicos contemporâneos, na falta de melhor expressão, o termo é igualmente recorrente, embora as intenções dos grupos radicais apresentem muitas diferenças culturais dentre dos grupos moderados.

Como a identidade árabe e persa é patrilinear, a elite social suaíli reivindicou, muitas vezes ficcionalizada (cf. Augé, 1993) a genealogia asiática de prestígio. Equívocos modernos de difusão cultural ou de origem asiática, se desenvolveram a partir da tendência de ricos suaílis de reivindicar origens asiáticas e da importação desproporcional de elementos de Omã no século XIX para a sociedade de Zanzibar e suaíli. O suaíli padrão é o dialeto de Zanzibar e, portanto, inclui muito mais palavras emprestadas do árabe do que os outros dialetos suaílis analogamente mais antigos. Os assentamentos proeminentes da costa de Zanj incluíam Malindi, Gedie Mombaça. No final do período medieval, a área incluía pelo menos 37 cidades comerciais importantes suaíli, muitas delas bastante ricas. Embora as classes urbanas dominantes e comerciais desses assentamentos suaves incluíssem alguns imigrantes árabes e persas, a grande maioria era de muçulmanos africanos. As origens da Pérsia ou da Arábia devem ser interpretadas literalmente. Os Zanj foram durante séculos enviados como escravos por comerciantes árabes para todos os países que fazem fronteira com o Oceano Índico.  Os califas omíadas e abássidas recrutaram muitos escravos Zanj como soldados e, já em 696 d. C., amaram sobre revoltas de escravos do Zanj contra seus mestres árabes no Iraque. Antigos textos chineses mencionam embaixadores de Java apresentando o imperador chinês com dois escravos Seng Chi (Zanji) presentes, e escravos Seng Chi chegando à China do reino hindu de Sri Vijaya em Java. O Sudeste da África era reconhecido como Mar de Zanje inclui as ilhas Mascarenhas e Madagascar. Durante uma luta antiapartheid, foi proposto que a África do Sul assumisse o nome de Azania, fato social que serve ecoar sobre o antigo Zanj.

Segundo (Carvalho, 2004) nos finais do século XIX, o comércio de marfim e cravinho com a Índia, que até aí era feito pelos dhow, teve que enfrentar a pressão e até o monopólio do transporte de cravinho pelos barcos a vapor, o que contribuiu para fazer diminuir ainda mais o número daquelas embarcações tradicionais. Apesar disso, o comércio árabe, não controlado pela administração colonial [inglesa], demonstrou grande vitalidade e sobreviveu durante anos em virtude da maior versatilidade dos dhow e da facilidade de carregar as mercadorias (sobretudo cravinho) em qualquer praia, lagoa ou esteiro das ilhas do arquipélago, lugares esses não acessíveis aos vapores. Contudo, o golpe mais forte que poderia contribuir para o desaparecimento dos dhow ocorreu, paradoxalmente, após a independência, em 1964, com a modernização e investimento do Estado nos barcos modernos, refugiando-se os dhow no pequeno comércio entre ilhas. No final do século XIX e início do século XX em Zanzibar ainda estavam em uso diversos tipos de dhow. Com a destruição dos dhow em finais do século XIX para combater o tráfico de escravos e impor o monopólio dos barcos a vapor no comércio de cravinho, poderia supor-se que os dhow teriam sido substituídos por embarcações de outro tipo. Na atualidade, em Zanzibar e também na costa Oriental de África os dhow continuam a ser usados em várias atividades econômicas e de comunicação e transporte material, incluindo o transporte de carga, o transporte de passageiros e a pesca.

A análise dos registos fotográficos de Zanzibar do período 1890-1910 permite confirmar o elevado número destas embarcações ancoradas frente a Stone Town e no porto da cidade. A diversidade dos tipos de dhow resultou do seu uso ao longo de séculos com a natural adaptação do modelo de base da embarcação às necessidades, inovações e gostos de cada região na bacia do Oceano Índico. Acresce que as técnicas de construção naval dos europeus em geral, e dos portugueses em particular, influenciaram alguns destes modelos dos dhow, como o sambouk, que tem semelhanças com a caravela, e a ghanjah, provida de uma popa decorada e janelas com semelhanças com o galeão. Os vários modelos de dhow surgiram em locais e épocas diferentes e foram, e são ainda, usados em regiões diferentes. Vários tipos de dhow como a baghlah e o battil, já deixaram de ser construídos e estão sendo considerados extintos. A construção destas embarcações, totalmente feitas em madeira, requer materiais e conhecimentos aplicados em várias fases, do processo de trabalho que vão desde a escolha das plantas que fornecerão a madeira até ao lançamento da embarcação ao mar e à sua manutenção.

O Mar de Zanj é um nome antigo para aquela parte da costa oeste do Oceano Índico da África Oriental adjacente à região dos Grandes Lagos africanos, referida pelos geógrafos árabes medievais como Zanj. O mar de Zanj era considerado uma área temível pelos marinheiros árabes e abundavam as lendas e mitos sobre os perigos em suas águas, especialmente perto de seus limites extremos ao Sul. O termo foi aplicado às extensões marinhas próximas à parte oriental do continente africano reconhecidas por antigos viajantes e cronistas muçulmanos como por exemplo, Al-Masudi e Ibn Battuta. Embora geograficamente insuficientemente definida, a área do mar de Zanj incluía uma vasta região marítima que se estendia aproximadamente até onde os antigos navegadores chegavam em seus dhows (cf. Carvalho, 2014). Sujeito às variações dos ventos das monções, o Mar de Zanj situava-se a Sul do Mar da Eritreia, estendendo-se ao longo da costa do Sudeste de África para Sul até ao Canal de Moçambique, incluindo o arquipélago das Comores e as águas da costa oriental de Madagáscar. Em seu flanco oriental, o mar se estendia a Oeste das Seychelles e a Noroeste das Ilhas Mascarenhas.

Mais conscientes de sua língua do que qualquer outro povo, vendo-a não só como a maior parte de suas artes, segundo Hourani (2005), mas também como seu bem comum, os árabes, em sua maioria, se solicitados a definir o que querem dizer com “nação árabe”, começariam por afirmar que ela inclui todos aqueles que falam a língua árabe.  Mas isso representaria apenas o primeiro passo, e não lhes custaria mais do que outro dizer que ela inclui todos os que afirmam ter uma ligação com as tribos nômades da Arábia, quer por linhagem, quer por filiação, quer por apropriação por meio da língua e da literatura, de seu ideal de excelência humana e padrões de beleza. Uma definição plena abrangeria também uma referência a um processo histórico: a um certo episódio na história em que os árabes desempenharam um papel principal, importante não só para eles, como para o mundo inteiro, e em virtude do qual podem realmente afirmar ter sido algo na história humana. Nessa direção do ponto de vista etnográfico o processo se iniciou com a pregação de Maomé, um árabe da tribo de Quraysh, os integrantes da tribo árabe dominante na cidade de Meca durante o surgimento do islamismo, da mensagem que lhe teria sido confiada por Deus por meio do Arcanjo Gabriel e que, segundo o julgamento de seus seguidores, é tão importante a ponto de ter alterado a natureza da história do pensamento. Na sua pregação religiosa, Maomé convocava os homens a se arrepender “antes que fosse tarde e a tentar fazer o que era agradável a Deus”, e definia também “aquelas crenças e atos que Deus ordenou”. Para os seguidores do profeta, parecia que a revelação da qual era instrumento, por ser a última, devia ser a mais completa, e o Corão, junto com seus próprios preceitos e com seu exemplo, devia conter de forma explícita ou implícita, tudo o que era necessário para viver corretamente.

          É neste sentido que o viver correto seria impossível, não tanto porque a sociedade, de certa maneira, é inerentemente má, mas porque a natureza do certo e do errado é tal que nunca podemos dizer como confiança que um eclipsou o outro. Parte do contraponto que podemos sentir ao uso que Adorno faz da ideia de liberdade é que a maneira como geralmente pensamos sobre liberdade evoluiu para evitar justamente esse tipo de conflito: uma tendência encontrada não apenas no nosso cotidiano do termo, mas também nas tendências predominantes na teoria política liberal. Quando usamos a palavra “liberdade” tendemos a querer dizer que nenhuma limitação física ou jurídica nos impede de agir segundo nossos desejos ou, vendo pelo outro lado, segundo a capacidade jurídica ou física de realizar muitas ações desejadas. Em termos políticos, este é o famoso contraste entre liberdades positivas e negativas: a liberdade como um conjunto de direitos que detemos como cidadão; a liberdade como um conjunto de restrições ao que os outros ou o Estado. A liberdade, em todos os sentidos, está intimamente ligada à ideia do indivíduo. Os indivíduos detêm direitos como cidadão ou são protegidos contra a violação de suas liberdades. A autonomia do indivíduo é presumida ao invés de provada.  Ao rejeitar nossa interdependência mútua frente aos outros e ao mundo que nos sustenta, a moralidade torna-se meramente uma justificativa para a continuação da Bellum omnium contra omnes, que seguindo Thomas Hobbes, supõe como estado de natureza.

Uma filosofia moral liberal, que parte do homem como indivíduo autônomo e independente, simplesmente não é uma filosofia moral, porque a moralidade é um dos aspectos da cultura que nos permite suspender tal violência. Adorno segue uma tradição alternativa, exemplificada melhor na obra de J.J.-Rousseau e Friedrich Hegel, pensadores para quem a “liberdade para um não tem significado sem a liberdade para o todo”. A antipatia do indivíduo para com uma ordem social que ele sente como imposta a ele é uma consequência da natureza irreconciliada da sociedade, igualmente exibida na antinomia filosófica de sujeito e objeto. Portanto, Adorno não nega a experiência subjetiva da alienação, de ser colocado contra uma totalidade social que não parece corresponder aos nossos interesses e desejos. Pois, tanto o pensamento político liberal, como a experiência individual na sociedade tem de ser explicada, não como uma forma solucionada de uma síntese superior, mas como um problema insuperável. A liberdade deixa à altura sua promessa de reconciliação social: uma promessa que nos permite criticar não apenas a não liberdade social, mas também a liberdade parcial hipostasiada nas filosofias liberais que justificam a liberdade dos indivíduos.   

As sugestões autoritárias da insistência na autonomia moral como submissão ou respeito à lei derivam da experiência de leis como exteriores ao indivíduo. A discussão sociológica não pretende solucionar este puzzle ou mesmo sua condição como exegese de liberdade. A concepção da personalidade como estrutura é a melhor salvaguarda contra a inclinação a atribuir as tendências persistentes no indivíduo a algo inato ou básico ou racial que existe dentro dele. A alegação nazista segundo a qual são os traços naturais e biológicos que decidem o modo de ser global de uma pessoa não seria um expediente político tão bem sucedido se não fosse possível apontar as numerosas instâncias de fixação relativa na conduta humana e desafiasse aqueles que pensam poder explicá-las em qualquer outra base que não a biológica. Privados do entendimento da personalidade como estrutura, os autores cuja abordagem descansa na premissa de que a capacidade humana de responder e se adaptar à situação social existente é infinita em nada ajudaram, no tocante à matéria, ao referir-se às tendências persistentes com as quais eles não concordam como confusão, psicose ou o próprio fazer o mal, sob um ou outro nome. Obviamente, existe alguma base para descrever como patológicos os padrões de conduta que não se conformam às respostas tidas como mais comuns e, aparentemente, mais regulares aos estímulos do momento. Porém isso é usar o termo patológico no sentido muito estreito de desvio da média encontrada em um contexto social particular e, o que é pior, sugerir que tudo aquilo que existe na estrutura da personalidade pode ser posto sob esse título. Realmente a personalidade abarca variáveis amplas disseminadas e que possuem relações regulares umas com as outras.

Os padrões de personalidade que têm sido desprezados como patológicos, porque não estão de acordo com as tendências manifestas mais comuns, ou mesmo com a maioria dos ideais dominantes existentes na sociedade, revelam-se à luz de uma investigação mais detalhada não ser senão exageros de algo que é quase universal no plano subjacente a essa sociedade. O que é patológico hoje pode se tornar a tendência dominante de amanhã, com a mudança das condições sociais. Parece claro então que uma abordagem adequada dos problemas que temos pela frente precisa levar em conta ao mesmo a fixidez e flexibilidade da personalidade; precisa ver as duas coisas não como categorias mutuamente exclusivas, mas como extremos de um mesmo contínuo, ao longo do qual as características humanas podem ser colocadas; e, por fim, precisa nos dar a base para entender as condições que favorecem um ou outro extremo. Personalidade é um conceito para dar conta de uma permanência relativa. Porém podemos enfatizar mais uma vez que ele designa, sobretudo, em potencial;  é a prontidão para conduta antes  que a própria conduta. Embora consista em disposições para se conduzir de certo modo, a conduta realmente verificada vai depender da situação objetiva. Onde a preocupação é com as tendências antidemocráticas, a delimitação das condições para expressão individual requer um entendimento da organização global da sociedade. Afirma-se há algum tempo que a estrutura da personalidade pode ser tal que torna o indivíduo suscetível à propaganda antidemocrática. Pode-se agora perguntar quais são as condições sob as quais tal propaganda poderia, aumentando seu grau e volume, vir a dominar a imprensa e o rádio e excluir os estímulos ideológicos contrários, de modo que o que agora jaz em potencial se tornasse efetivamente manifesto. A resposta não deve ser procurada em qualquer personalidade singular, nem nos fatores de personalidade existentes na massa da população, mas nos processos em ação na sociedade. Atualmente parece bem entendido que se a propaganda antidemocrática vai ou não se tornar uma força dominante neste país depende fundamentalmente da situação da maior parte dos interesses econômicos mais poderosos; se eles, seja ou não através de um plano consciente, farão uso desse expediente para manter seu status dominante; e essa é uma matéria sobre a qual a grande maioria das pessoas teria pouco a dizer.

No âmbito da história o texto do Corão foi fixado e as tradições (hadith) sobre o que o profeta fez e disse (sunna, as práticas do profeta) foram coligidas e examinadas, e os eruditos se dedicaram a distinguir as verdadeiras e as falsas. Ocorreu também que a leitura religiosa do corão e do hadith um sistema abrangente de moralidade ideal, uma classificação moral dos atos humanos que tornaria claro o modo (charia) como os homens poderiam caminhar agradavelmente aos olhos de Deus e esperar alcançar o paraíso. Quando havia um texto claro do corão ou um hadith cuja validade podia ser aceita, isso não era difícil; do contrário, aqueles que possuíam o intelecto e o treinamento necessários deviam deduzir a resposta dos textos, usando o discernimento de acordo com as regras da analogia estrita ou de algum outro processo não lógico de raciocínio (ijtihad).  Aos poucos os resultados desse processo se tornavam geralmente aceitos pela opinião comum dos eruditos, e quando essa aceitação geral (ijma’) existia, ela passava a ser considerada capaz de conferir aos preceitos ou leis uma autoridade não menos obrigatória do que a do corão ou do hadith. Mas ainda restavam diferenças de opinião sobre como a ijma´ podia ser reconhecido, sobre o que ele validava de fato e, além dos limites do ijma´, sobre os modos como a razão humana podia ser empregada e sobre os resultados a que a sua utilidade de uso poderia levar; ao longo do tempo histórico essas diferenças foram codificadas em vários sistemas (madhhab), dos igualmente legítimos para aceitação dos fiéis.

Na visão islâmica da sociedade verdadeira estava implícita uma série de contrastes inter-relacionados. Em primeiro lugar, e fundamental, enquanto o mundo cultuava ídolos ou unia esse culto ao de Deus (shirk), os muçulmanos proclamavam e cultuavam o único Deus (tawhid). Em segundo lugar, e ligado a tudo isso, havia um contraste na ordenação da sociedade. Vale lembrar que a sociedade que não conhecia o Islã era regida pelos costumes, desenvolvida pelos homens para seus próprios fins e ignorância dos mandamentos de Deus (jahiliyya – ignorância das verdades da religião); a sociedade islâmica, bem como aquelas fundadas por profetas anteriores, desde que não tivesse corrompido as suas escrituras, era regida pelas charia. Além disso, segundo Hourani (2005), a ligação entre os seres humanos na sociedade pré-islâmica era a da relação natural, baseada no sangue, ou análoga àquela baseada no sangue. Isto quer dizer sociologicamente, que era a solidariedade do clã ou da tribo (´asabiyya); mas a ligação entre os muçulmanos na umma era uma ligação moral, uma obediência comum da lei, uma aceitação dos direitos e deveres recíprocos nela manipulados, e o apoio e exortação mútuos para cumpri-los. Mais uma vez, o poder político na comunidade pré-islâmica tinha como representação a “monarquia natural”, criada por um processo humano, controlada por sentimentos humanos, ou cálculos pragmáticos puramente humanos de meios e fins, e dirigida para metas mundanas (mulk); mas na umma muçulmana, o poder era uma delegação dada por Deus (wilaya) controlada por Sua vontade e para a felicidade de muçulmanos no próximo mundo, mais do que neste sobre a Terra.   

Bibliografia geral consultada.

BOSWELL, John, Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality: Gay People in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century. Chicago: University of Chicago Press, 1981; ALLIEVI, Stefano, Les Convertis à l’islam, les Nouveaux Musulmans d’Europe. Paris: L’Harmattan, 1998; HOURANI, Albert, O Pensamento Árabe na Era Liberal: 1798-1939. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2005; MAZZELLA, Sylvie (Org.), La Mondialisation étudiante: Le Maghreb entre Nord et Sud. Tunis-Pairs: IRMC- Khartala, 2009; AG DOHO, Sidi Alamine, Touareg 1973-1997: Vingt-cinq ans d’errance et de déchirement. Paris: L’Harmattan, 2010; LANNES, Suellen Borges de, A Formação do Império Árabe-Islâmico: História e Interpretações. Tese de Doutorado. Instituto de Economia. Rio de Janeiro:  Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013; BÍSSIO, Beatriz, O Mundo Falava Árabe: A Civilização Árabe-islâmica Clássica através da Obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2013; JOSEPH, Miriam, O Trivium - As Artes Liberais da Lógica, Gramática e Retórica. São Paulo: Editor É Realizações, 2014; CARVALHO, Fernando da Piedade, “Os Dhows do Zanzibar: A Técnica de Construção de uma Antiga Embarcação de Origem Árabe e o seu Papel Socioeconómico na Actualidade”. In: Cadernos de Estudos Africanos, 27 (1): 149-170; 2013; DEMANT, Peter, O Mundo Muçulmano. 3ª edição. São Paulo: Editor Contexto, 2014; BAVA, Sophie, “Al Azhar, Scène Renouvelée de l’imaginaire Religieux sur les Routes de la Migration Africaine au Caire”. In: L’Année du Maghreb. Aix-en-Provence, nº 11, pp.37-55, 2014; LACROIX, Stéphane, “L`Arabie Saoudite, un État prosélyte, dans: Alain Dieckhoff, Philippe Portier, L`Enjeu Mondial”. In: Religion & Politique. Presses de Sciences Po, 2017; AMER MEZIANE, Mohammed, “Racialiser la Religion, Séculariser l’Empire. Sécularisme, Conversion et Citoyenneté en Algérie Coloniale”. In: TERSIGNI Simona, VINCENT MORY, Claire, WILLEMS, Marie-Claire (dir.), Le Religieux au Prisme de Ethnicization et de la Racisation. Paris: Éditions Pétra, 2019; FARIAS, Víctor Cecchini de, O Brasil e a República Árabe Unida: O Nacionalismo Árabe e sua Presença no Território Brasileiro. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Estudos Árabes e Judaicos. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2020; REGIANI, Álvaro Ribeiro, “Nunca Fui Liberal”: Usos Liberais do Pensamento Político de Hannah Arendt no Brasil. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. Faculdade de História. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2022; entre outros.

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