quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Arnaldo Antunes – Arte Autoral, Música & Escrínio de Liberdade.

                             Por que não chega agora? Até o teto tá de ponta cabeça porque você demora”. Arnaldo Antunes

   

          A sociologia urbana do bairro, segundo Pierre Mayol (2013), privilegia dados quantitativos, relativos ao espaço e à arquitetura; realiza medições sobretudo em torno da superfície, topografia, fluxo dos deslocamentos, da comunicação de ruídos, etc., e analisa as imposições materiais e administrativas que entram na definição do bairro, segundo “as maneiras de morar na cidade para elucidar as práticas culturais de usuários no espaço de seu bairro”. A análise socioetnográfica da vida cotidiana, que enfeixa desde as pesquisas eruditas dos folcloristas e dos historiadores da chamada cultura popular, até aos imensos painéis poéticos, quase míticos, que a obra de James Agee (1909-1955) representa de maneira exemplar. Nasce assim um rebento de inesperada vitalidade, que talvez se pudesse chamar de “hagiografia do pobre”, gênero literário de considerável sucesso, cujas “vidas” mais ou menos bem transcritas pelos autores da pesquisa dão a ilusão doce-amarga de encontrar um povo para sempre extinto. Estas duas perspectivas antagônicas implicavam o risco de embaralhar as “cartas de nossa pesquisa” arrastando-nos atrás de dois discursos indefinidos: o da lamentação e o do “barulho do cotidiano” em que se pode indefinidamente multiplicar os lances de sonda sem jamais encontrar as estruturas que o organizam socialmente a vida cotidiana em dois registros. 

          Em primeiro lugar, os comportamentos, cujo sistema se torna visível no espaço social da rua e que se traduz pelo vestuário, pela aplicação mais ou menos estrita dos códigos de cortesia: saudações, palavras  “amistosas”, pedido de “notícias”, o ritmo do andar, o modo como se evita ou ao contrário se valoriza este ou aquele espaço público. Ipso facto, os benefícios simbólicos que se espera obter pela maneira de “se portar” no espaço do bairro: o bom comportamento “compensa”, mas que o que traz de bom? A análise tem enorme complexidade, segundo Mayol et al (2013), não depende tanto da descrição, mas da interpretação. Esses benefícios deitam suas raízes na tradição cultural do usuário, não se acham jamais totalmente presentes à sua consciência. Aparecem de maneira parcial, fragmentada, no modo como caminha, ou, de maneira mais geral, através do modo como “consome” o espaço público. Pode-se também elucidá-los através do discurso de sentido pelo qual o usuário relata a quase totalidade de suas iniciativas.

          O imaginário urbano, em segundo lugar, são as coisas que o soletram. Elas se impõem. Estão lá, fechadas em si mesmas, forças mudas. Elas têm caráter. Ou melhor, são “caracteres” no teatro urbano. Personagens secretos. As docas do Sena, monstros paleolíticos encalhados nas margens. O canal San-Martin, brumosa citação de paisagem nórdica. As casas abandonadas (em 1928) da Rue Vercingétorix ou da Rue de l`Quest, onde fervilham os sobreviventes de uma terrível catástrofe urbana. Por subtrair-se à lei do presente, esses objetos inanimados adquirem autonomia. São autores, heróis de legenda. Organizam em torno de si o romance da cidade. A proa aguda de uma casa de esquina, um teto provido de janelas como uma catedral gótica, a elegância de um poço na sombra de um pátio remelento: esses personagens levam sua vida própria. Assum o papel misterioso que as sociedades tradicionais atribuíam à velhice, que vem de regiões que ultrapassam o saber. Eles são testemunhas de uma história que, ao contrário daquelas dos museus ou dos livros, já não têm mais linguagem. Historicamente, de fato, eles têm uma função que consiste em abrir uma profundidade no presente, mas sem o conteúdo que provê de sentido a estranheza do passado. Suas histórias deixam de ser pedagógicas; não mais “pacificadas” nem colonizadas por semântica. 

                                                 

Como entregues à sua existência, selvagens, delinquentes. Esses objetos de pensamento, razoáveis, provenientes de passados indecifráveis são para nós o equivalente que eram alguns deuses da Antiguidade, os “espíritos” do lugar. Como seus ancestrais divinos, eles têm papéis de atores na cidade não por causa do que fazem ou do que dizem, mas porque sua estranheza é muda e sua existência subtraída de atualidade. Para o que nos interessa, seu retiro faz falar – gera relatos, etnografias – e permite agir – “autoriza”, por sua ambiguidade, espaços de operações. Esses objetos inanimados ocupam aliás, hoje, na pintura, o lugar dos antigos deuses: uma igreja ou uma casa, nos quadros de Van Gogh; uma praça, uma rua ou uma fábrica nos de Chirico. O pintor consegue “ver” esses poderes locais. Ele apenas antecipa, mais uma vez, um reconhecimento público. Para reabilitar uma antiga fábrica de concreto, o prefeito de Tours, M. Royer, e M. Claude Mollard, do ministério da Cultura, honram um “espírito” de lugar, como Lina Bo Bardi o faz em São Paulo em relação à Fábrica da Pompeia (que se tornou centro de Lazer), ou muitos outros “ministros” desses cultos locais, com uma arquitetura, radiante, otimista e generosa.   

          A conveniência é, grosso modo, comparável ao sistema de “caixinha” (ou “vaquinha”): representa, pois, no nível dos comportamentos, um compromisso pelo qual cada pessoa, renunciando à anarquia das pulsões individuais, contribui com sua cota para a vida coletiva, com o fito de retirar daí benefícios simbólicos necessariamente protelados. Por esse “preço a pagar”, o que diz respeito a saber “comportar-se”, ser “conveniente”, o usuário se torna um parceiro de um contrato social que ele se obriga a respeitar para que seja possível a fluidez na vida cotidiana. Isto é, “possível” deve ser entendido no sentido mais trivial do termo: não se tornar “a vida impossível” por ruptura abusiva do contrato implícito sobre o qual se fundamenta a coexistência do bairro. A contrapartida desse tipo de imposição é para o usuário a certeza de ser reconhecido, “considerado” por seus pares, e fundar assim em benefício próprio, sociologicamente, “uma relação de forças nas diversas trajetórias que percorre”. Pode-se então compreender melhor o conceito de “prática cultural”: esta é a combinação mais ou menos corrente, mais ou menos fluida, de elementos cotidianos concretos (menu gastronômico) ou aparatos ideológicos (tanto religiosos, como políticos), ao mesmo tempo passados por uma tradição e realizados dia a dia através dos comportamentos que traduzem em uma visibilidade social fragmentos desse dispositivo cultural, da mesma maneira que a enunciação traduz na palavra fragmentos do discurso, por assim dizer, amoroso.

            Enfim, o bairro é, quase sempre, por definição, um domínio do ambiente social, pois ele constitui para o usuário uma parcela reconhecida do espaço urbano na qual, positiva ou negativamente, ele se sente reconhecido. Pode-se, portanto, apreender o bairro como esta porção do espaço público em geral (anônimo, de todo o mundo) em que se insinua pouco a pouco um espaço privado particularizado pelo fato do uso quase cotidiano desse espaço. A fixidez do habitat dos usuários, o costume recíproco do fato da vizinhança, os processos de reconhecimento – de identificação – que se estabelecem graças à proximidade, graças à coexistência concreta em um mesmo território urbano, todos esses elementos “práticos” se nos oferecem como imensos campos de exploração em vista de compreender um pouco melhor esta grande desconhecida que é a vida cotidiana. Quando nos colocamos diante de nós a pergunta: o que é um bairro? A resposta objetiva de síntese é respondida pela pena de Henri Lefebvre, para o qual “o bairro é uma porta de entrada e de saída entre espaços qualificados e o espaço quantificado”. O bairro surge como o domínio onde a relação espaço/tempo é a mais favorável para um usuário que deseja realizar o processo cotidiano de deslocar-se por ele a pé saindo de sua casa. Por conseguinte, é o pedaço de cidade atravessado por um limite distinguindo o espaço privado do espaço público: é o que resulta de uma caminhada, da sucessão de passos numa calçada, pouco a pouco significada pelo seu vínculo orgânico com a residência.

            - Cara. Casa. Casa. Cara. Minha casa é minha cara, minha cara é minha casa”, diz com voz gutural, o músico Arnaldo Antunes, esboçando uma poesia para explicar o vínculo com a ampla residência térrea onde vive há oitos anos, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Em agosto, semanas antes de completar 50 anos, o artista sempre avesso a badalações, decidiu expor, segundo Barros (2011), sua intimidade. Transformou o imóvel no cenário de “Ao vivo lá em Casa”, com CD e DVD dirigido por Andrucha Waddington. Para adaptar o lar à produção, foi preciso podar a pitangueira, pintar o portão, instalar câmeras no telhado e levar a família para dormir fora por três noites. Os quartos dele e dos quatro filhos – Rosa, 23 anos, Celeste, 19, Brás, 13 e Tomé, 9 – viraram camarins e centrais de áudio e vídeo. – “Rosa não acreditou quando viu Jorge Ben Jor e Erasmo Carlos se aprontando em frente do espelho dela”, sobre os convidados que se aboletaram nos aposentos da primogênita. Lá fora, os amigos se acomodavam na plateia montada no quintal com vista para o terraço, convertido em palco. Para evitar aborrecimentos, Antunes tocou a campainha dos vizinhos e os convidou também – “Foi a maior festa que já fiz, deu um baita frio na barriga”, lembra o cinquentão. Parte da aflição, se deveu à aposta de que não choveria. Com a estrutura toda à céu aberto, foi preciso torcer para que algumas nuvens estacionadas sobre o espaço do show se dissipassem. Nos dias seguintes, o evento foi assunto no ponto de táxi, na banca de revistas e na padaria, aos quais costuma ir a pé.

 – “O pessoal perguntava se tinha dado certo”. A intuição (“insight”) como forma de representação do conhecimento consiste na capacidade de conhecer algo, sem de fato ainda entender seu próprio funcionamento. Está fundamentada na noção inicial que temos sobre algo, noção esta que nasce da experiência sensorial e/ou de uma análise superficial das características que compõe determinado elemento. Tomando como base esta noção inicial, conseguimos entender de forma pouco esclarecida do que se trata determinado elemento e já nos dispomos a emitir juízos acerca do mesmo. Todas estas concepções do homem, que se expressam de diversas formas, nasceram a partir da análise que seus sentidos o proporcionaram fazer. Mas há algo a mais nisto. Não bastariam ele olhar para a pedra e sentir seu peso para concluir todas estas coisas. Teria o homem que pensar por associação, por comparação. Entre habilidades ou competências determinadas importa destacar a relação contígua entre o ser capaz de pensar e o ser capaz de aprender. Teria o homem que se basear em outras experiências. Têm-se nas reflexões anteriores, um exemplo desta forma básica de entender o mundo que nos cerca. O pensamento por associação. O conhecimento que se constrói através de memórias de experiências passadas e logo comparações com experiências presentes.         

O raciocínio intuitivo da forma como está sendo apresentado, revela-nos uma superficialidade na forma de compreender o mundo. Retomando ao exemplo do homem: o mesmo não saberia explicar o porquê de nenhuma de suas conclusões, visto que ele se baseou somente em suas antigas experiências. Os fatos usados para formar a conclusão, não são compreendidos pelo homem, ele apenas sabe que são tal como são e aceita isso como natural. Além dessas substâncias e de outras, que estão em menor quantidade, o ar, por exemplo, também apresenta gotículas de água, poeira, e sobretudo partículas de vírus, bactérias e outro micro-organismos. Não entende ele, no plano abstrato da teoria “como” e nem o “por que” daqueles fatos a se apresentarem daquela maneira. Tudo que ele sabe, foi captado pelos sentidos, guardado na memória. Utilizado no dia-a-dia como forma de entender o mundo que lhe é anterior e ao seu redor.  - A gente não quer só comida; A gente quer saída para qualquer parte                            

A “intuição trabalhada”, tal como a entendera Bachelard, significa assumir com essa ideia a existência de polos necessariamente presentes no universo cultural humano. Melhor dizendo, o polo da objetividade e o polo da subjetividade, entrelaçados e mediados nos duros e doces caminhos da constituição da mediação científica assim como dos demais caminhos existentes, ideia tão cara à concepção de ciência nestes tempos. O pensamento de Bachelard se faz contemporâneo na atualidade potente de sua reflexão. Felizmente fora da dinâmica consensual entre pesquisadores, pois é conhecido por sua filosofia não cartesiana, não bergsoniana, não aristotélica e não kantiana, visto que sua obra excede a epistemologia e a estética e dialoga com diferentes áreas de saber. É representante do novo espírito científico que, ao refletir sobre o conhecimento, problematiza o erro em sua positividade e a importância real da retificação. Seu novo racionalismo aberto e dinâmico, histórico e factual, inova a concepção de imaginação social, porque explora os devaneios e desconfia das metáforas. A formação das expectativas não leva em consideração os fatores previstos na sociedade como muito incertos. Embora, em determinadas situações, fatos muito incertos possam se tornar decisivos, tornando-se um guia razoável para as decisões correntes e os eventos a que se atribui um grau elevado de confiança. Bachelard foi um “filósofo da solidão feliz” que a procura de instantes poéticos nos desestabiliza nas incertezas do mundo objetivo.

As motivações que ordenam os símbolos não apenas já não formam longas cadeias de razões, mas nem sequer cadeias. A explicação linear do tipo de dedução lógica ou narrativa introspectiva já não basta para o estudo das motivações simbólicas. A classificação dos grandes símbolos da imaginação em categorias motivacionais distintas apresenta, com efeito, pelo próprio fato da não linearidade e do semantismo das imagens, grandes dificuldades. Metodologicamente, se se parte dos objetos bem definidos pelos quadros da lógica dos utensílios, como faziam as clássicas “chaves dos sonhos”, segundo as estruturas antropológicas do imaginário, cai-se rapidamente, pela massificação das motivações, numa inextricável confusão. Parecem-nos mais sérias as tentativas para repartir os símbolos segundo os grandes centros de interesse de um pensamento, certamente perceptivo, mas ainda completamente impregnado de atitudes assimiladoras nas quais os acontecimentos perceptivos não passam de pretextos para os devaneios imaginários. Tais as questões, as classificações mais profundas de analistas das motivações do simbolismo religioso ou da imaginação de modo geral literária. 

Uma parte de sua obra, incluindo seus livros mais representativos sobre a tópica da intuição trabalhada como: A Poética do Espaço, A Poética do Devaneio, A Água e os Sonhos e O Ar e os Sonhos, é permeada por categorias e conceitos que fogem ao lugar comum de análise e, sobretudo, do debate contemporâneo da ciência institucionalizada: sonho, devaneio, poética, alquimia, tempo, imaginação. A riqueza de Bachelard consiste fundamentalmente do ponto de vista do processo de criação em trazer para sua produção intelectual um duplo projeto: o aspecto diurno da sua obra, onde se inscrevem os conceitos mais ligados à epistemologia, e o aspecto noturno, onde aparece a complementaridade dos sinais da poesia e do sonho e, posteriormente, do devaneio e da ciência. Ao aproximar os dois aspectos, a sua concepção de história e filosofia demonstra que a cisão entre razão e imaginação fica bem clara se utilizarmos a via racional; mas se usarmos a via onírica, a razão e a imaginação se articulam, se interpenetram e se tornam complementares.

No prolongamento dos esquemas explicativos, arquétipos e simples símbolos modernos podem-se considerar o mito. Lembramos, todavia, que não estamos tomando este termo na concepção restrita que lhe dão os etnólogos, que fazem dele apenas o reverso representativo de um ato ritual. Entendemos por mito, “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se na narrativa”. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. O mito explicita um esquema ou um grupo de esquemas. Do mesmo modo que o arquétipo promovia a ideia e que o símbolo engendrava o nome, podemos dizer que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, como bem observou Bréhier, a narrativa histórica e lendária. O método de convergência evidencia o mesmo isomorfismo na constelação e no mito. Enfim, para sermos breves, este isomorfismo dos esquemas, arquétipos e símbolos no seio dos sistemas míticos ou de constelações estáticas pode levar-nos a verificar a existência de protocolos normativos das representações imaginárias, bem definidos e relativamente estáveis, agrupados em torno dos esquemas originais e que antropologicamente a literatura refere-se como estruturas.

A atividade dialética surge esboçada em princípio como atividade e a partir da análise da noção de “corpúsculo”. Tendo como certo que o filósofo deve tentar compreender a novidade da linguagem e ao mesmo tempo aprender a formar noções e conceitos novos para resistir aos conhecimentos comuns e à memória cultural, Bachelard, tentando precisar a noção de “corpúsculo”, rememora uma sequência de teses: o corpúsculo não é um pequeno corpo. Não é fragmento de substância. O corpúsculo não tem dimensões absolutas definidas. Só existe nos limites do espaço em que atua.  Correlativamente, se o corpúsculo não tem dimensões definidas, não tem, portanto, forma reconhecida. Melhor dizendo, o elemento não tem geometria. E, ipso facto, não se lhe pode atribuir um lugar muito preciso em virtude do princípio da indeterminação na Física de Werner Heisenberg (1927), a sua localização é submetida a tais restrições que a função de existência situada não tem mais valor absoluto. Em várias circunstâncias, a microfísica põe como um verdadeiro princípio a perda da individualidade do corpúsculo. Enfim, uma última tese que contradiz o axioma fundamental do chamado atomismo filosófico.

Complementarmente com as suas reflexões acerca da imaginação criadora e da poética, Bachelard infere que os corpúsculos, não sendo dados dos sentidos, “nem de perto nem de longe”, também não são dados escondidos. No entanto, apenas é possível conhecê-los, descobrindo-os, ou melhor, inventando-os, porque eles são a prova de que algo está no limite da invenção e da descoberta. Admirável é, então, a referência que Bachelard faz à noção de intuição trabalhada. Em Études, no ensaio “Idealismo discursivo” ele sublinha que tem alguma confiança e garantia na intuição para descrever positivamente o seu ser íntimo. Diz mesmo que o fato de exercermos uma preparação discursiva dá à intuição uma nova Jeunesse. De maneira que aconselha a fecharmos os olhos como uma forma de nos prepararmos para termos uma visão do nosso ser. A intuição será a via refletida de renunciar aos acidentes na história e significa um recurso metafísico de compreensão “de si”. Interessa, então, a intuição trabalhada e não a intuição imediata, a intuição que permite uma espécie de “repouso”, mesmo sabendo que na ciência, esse “repouso” na intuição pode ser “quebrado” por uma nova necessidade de rigor metafísico e pela necessidade de encadear mais forte as teorias sociais. Esta valorização da intuição intelectual em detrimento da intuição sensível torna-se nítida quando o realismo das primeiras intuições deve pôr-se entre parêntesis, uma vez que a apreensão do real científico não se satisfaz com imagens primeiras.

As imagens podem ser então, “boas” e “más”, indispensáveis e perigosas, dependendo da moderação no seu uso e da instância da redução em que as imagens devem permanecer quando as queremos usar para descrever um mundo que não se vê, ou fenômenos que não aparecem. Na ciência é preciso ir das imagens às ideias e este caminho é de análise, de discussão e de ordenação. Com certeza, também de polêmica, uma razão polêmica pode pensar-se como uma razão que tanto sabe afirmar, em reação às negações oficiais antecedentes, como negar afirmações anteriores a partir dos valores da verificação e da descoberta; uma razão polêmica crítica e introduz “nãos” que passam a desempenhar um papel pedagógico decisivo na produção de conhecimento por darem a compreender que na interpretação toda a afirmação não é sinônimo de conhecimento e que aquilo que é dado como verdadeiro aparece, muitas vezes, sob um fundo de erros e de ignorâncias tomadas como antecedentes. O espírito, exigindo aproximações sucessivas da experiência deve afastar-se daquelas teses cartesianas da razão.  O novo espírito sabe-se que todo o problema da intuição se encontra subvertido, trabalhado.

Enfim, a reflexão teórica não escolhe manter as práticas à distância de seu lugar, de maneira que tenha de sair para analisá-las, mas basta-lhe invertê-las para se encontrar em casa. Ela repete o corte que efetua. Este lhe é imposto pela história. Os procedimentos sem discurso são coligidos e fixados em uma região que o passado organizou e que lhes dá o papel, determinante para a teoria, de ser constituídos em “reservas” selvagens para o saber esclarecido. Esses procedimentos foram aos poucos adquirindo um valor fronteiriço, à medida que a razão que surgiu da Aufklärung ia determinando suas disciplinas, suas coerências e seus poderes. Aparecem então como alteridades e “resistências”, relativas às escrituras científicas cujo rigor e operatividade se vão precisando a partir do século XVIII. Em nome do mesmo progresso, vê-se ocorrer o diferenciamento, de um lado, das artes (ou maneiras) de fazer, cujos títulos se multiplicam na literatura popular, objetos de crescente curiosidade dos “observadores do homem” e, de outro lado, as ciências esboçadas por uma nova configuração do saber.      

A distinção não se refere mais essencialmente ao binômio tradicional da “teoria” e da “prática”, especificado pela separação entre a “especulação” que decifra o livro do cosmos, e as “aplicações” concretas, mas visa duas operações diferentes, uma discursiva (na e pela linguagem) e a não discursiva. Desnecessário dizer que, desde o século XVI, a ideia de método abala progressivamente  a relação entre o conhecer e o fazer, a partir das práticas do direito, da retórica, mudadas pouco a pouco em “ações” discursivas que se exercem em terrenos diversificados e, portanto, em técnicas de transformação de um ambiente, impõe-se o esquema fundamental de um discurso que organiza a maneira de pensar em maneira de fazer, em gestão racional de uma produção em operação regulada sobre campos apropriados. Eis o “método”, semente da cientificidade moderna. No fundo, o método sistematiza a arte que Platão já colocava sob o signo da atividade. Mas é por um discurso que ele ordena um saber-fazer. Portanto, a fronteira não separa mais dois saberes hierarquizados, um especulativo, o outro ligado às particularidades, um ocupado em ler a ordem cósmica e o outro às voltas com os pormenores das coisas no quadro que lhe é fixado pelo primeiro, mas ela opõe as práticas articuladas pelo discurso às que (ainda) não o são. Trocando em miúdos, admitimos que do “saber-fazer” não discursivo, per se sem escritura (é o discurso do método que é ao mesmo tempo escritura e ciência), qual será o estatuto? É feito de operatividades múltiplas, mas selvagens.

Essa proliferação não obedece à lei do discurso, mas obedece já à lei da produção, valor último da economia fisiocrata e depois capitalista. Ela contesta, portanto, à escritura científica o seu privilégio de organizar a produção. Ela irrita e estimula volta e meia os técnicos da linguagem. Pede uma conquista, não como de práticas desprezíveis, mas ao contrário de saberes “engenhosos”, “complexos” e “operativos”. De Francis Bacon e Christian Wolff ou Jean Beckmann, faz-se gigantesco esforço para colonizar essa imensa reserva de “artes” e “ofícios” que, por não conseguirem ainda articular-se em uma ciência, podem ser já introduzidos na linguagem pela “Descrição” e, deste modo, levados a uma maior “perfeição”.  Mediante esses dois termos – a “descrição” que depende da narratividade e a “perfeição” que tem em mira uma otimização técnica – a posição das “artes” é fixada perto, mas fora da ciência. A arte é, portanto, um saber que opera fora do discurso esclarecido e que lhe falta. Mais ainda, esse saber-fazer precede, por sua complexidade, a ciência esclarecida. O princípio de uma operação etnológica sobre essas práticas já se acha então posto: o seu isolamento social pede uma espécie de “educação” que, graças a uma inversão linguística, vai introduzi-las no campo da escritura científica. Fato notável, desde o século XVIII ao XX, os etnólogos ou os historiadores e sociólogos consideram as técnicas respeitáveis em si mesmas. Destacam aquilo que fazemNão sentem a necessidade de interpretar. Basta descrever. Ao contrário, consideram como “lendas” que significam outra coisa diferente do que dizem as histórias pelas quais um grupo situa ou simboliza suas atividades. Estranha disparidade entre o tratamento dado às práticas e o dado aos discursos. 

Onde o primeiro registra uma “verdade” do fazer, o outro decodifica as “mentiras” do dizer. As breves descrições do primeiro tipo contrastam, aliás, com as interpretações prolixas que fizeram dos mitos ou das lendas um objeto privilegiado pelos profissionais da linguagem, “clérigos” com longa experiência com procedimentos hermenêuticos transmitidos dos juristas aos professores e/ou etnólogos para glosar e “traduzir” em textos científicos ou documentos referenciais. Para sermos breves, a pergunta é: existiria então uma ciência onde “tudo seja fruto da reflexão”? Seja como for, usando um vocabulário bem próximo da Enciclopédia (que mencionava o contemplar), cabe à teoria “refletir” esse “todo”. De modo ainda mais geral, para Émile Durkheim a sociedade é uma escritura que só se faz legível por ele. Aqui existe um saber já escrito nas práticas, mas ainda não esclarecido. A ciência fornecerá o espelho para torná-lo legível, com o discurso “refletindo” uma operatividade imediata e precisa, mas privada da linguagem e consciência, já sábia, mas paradoxalmente inculta. A arte constitui em relação à ciência um saber em si mesmo, desde Hegel, essencial. Posição perigosa para a ciência, pois só lhe resta poder dizer o saber que lhe falta. Entre a ciência e a arte, considera-se não uma alternativa, mas a complementaridade e, se possível, a articulação. A literatura se muda em repertório dessas práticas desprovidas de copyright tecnológico. São elas ainda que logo vão ocupar um lugar privilegiado nos relatos dos clientes nas salas das instituições psiquiátricas ou nos consultórios dos psicanalistas. Noutras palavras, há quem forneça às práticas genuinamente sociais o escrínio de liberdade.

Bibliografia geral consultada.

AMARAL, Jorge Fernando Barbosa, Arnaldo Antunes: O Corpo da Palavra. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009; CARNEIRO, Fabiana Carmen, Há Muitas e Muito Poucas Palavras: A Poética de Arnaldo Antunes em As Coisas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Literatura. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2011; SOUZA, Marcos Humberto Stefanini de, Eu não sei fazer música, mas eu faço: a banda de rock paulista Titãs. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências. Marília: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2013; OLIVEIRA, Daniele Gomes de, Tudo ou Tudo: A Concretude e o Luminoso na Poética de Arnaldo Antunes. Poesia para o Presente, Campo Transitório para o Futuro. Tese de Doutorado. Instituto de Artes. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2015; FERREIRA, Fernando Marinho, O Sujeito Lírico na Poética de Arnaldo Antunes: Traços da Modernidade, Presença da Tradição e Influência de Novas Mídias. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Faculdade de Letras. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2016; PRAZERES, Rafael Alexandre Gomes dos, Som e Silêncio dos Versos: Melopeia de Ezra Pound na Poesia de Arnaldo Antunes. Dissertação de Mestrado em Letras. Centro de Ciências Humanas e Naturais. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, 2016; AMARAL, Marcos Roberto dos Santos, Análise Dialógica dos Signos Ideológicos Verbo-visuais em Poemas da Obra: “N. D. A”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 2017; SANTOS, Marina Valesquino Affonso dos, O Corpo, o Pensamento e a Palavra na Poesia de Arnaldo Antunes. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2018; TAKAKURA, Sandra Mina, Criação e Criatividade em Gêneros Híbridos: A Expressividade na Poética de Arnaldo Antunes. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019; MARQUES, Bárbara Damiani Mendes, Letramento Literário nos Anos Finais do Ensino Fundamental com Poemas e Canções de Arnaldo Antunes. Dissertação de Mestrado. Centro de Formação de Professores. Cajazeiras: Universidade Federal de Campina Grande, 2021; AQUINO, Raquel, “Banda Titãs deve reunir formação clássica em novo projeto em 2023”. In: https://www.opovo.com.br/vidaearte/2022/11/14/; entre outros. 

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