sábado, 17 de maio de 2025

Uma Vida – Franqueza, Decepções & Dureza da Realidade-Mundo.

 A maior felicidade é quando a pessoa sabe porque é que é infeliz”. Fiódor Dostoiévski

           Apenas após seu retorno da prisão na Sibéria - Dostoievski foi preso por tramar contra o Czar -, repetiria o escritor seu sucesso inicial com a semibiográfica obra Recordações da Casa dos Mortos (1862), uma coleção de fatos sociais e eventos políticos ligados à vida nas prisões da Sibéria. O próprio Dostoiévski passou quatro anos exilado em uma dessas prisões, em função socialmente de sua condenação por envolvimento com o Círculo Petrashevski (1847), um grupo literário russo banido pelo czar Nicolau I (1796-1855), a qual trata etnograficamente dos anos que passou na prisão. Mais tarde sua fama aumentaria drasticamente graças a obras dialéticas como Crime e Castigo, onde existem sujeitos sociais ordinários e extraordinários, os primeiros,  condenados a viver uma vida normal e obedecer às normas sociais, enquanto que os segundos, extraordinários: Napoleão Bonaparte, podendo transgredir as normas sociais e levar a sociedade a um novo estágio, O Idiota, uma modernização do ideal ético cristão, o Príncipe Míchkin (1869), também era a forma como Dostoiévski se contrapunha do ponto de vista da análise comparada ao niilismo ocidental europeu, por isso o personagem pode ser visto como estando em direta contraposição ao Raskolnikov do ensaio: Crime e Castigo, uma das principais retratações niilista, e Os Demônios, obra foi motivada por um episódio verídico: o assassinato do estudante I. I Ivanov pelo grupo niilista liderado por Sergey Nechayev.

            Considerado um “gênio do mal”, segundo Máximo Gorki. E “perigoso”, segundo o velhaco Stálin. Até 1953 o currículo autoritário/totalitário soviético para estudos universitários sobre o escritor o classificava como “expressão da ideologia reacionária burguesa individualista”. Segundo ele mesmo, seu mal era uma doença chamada consciência. O inverno se aproxima de Moscou a passos de neve. Estamos a 30 de novembro de 1821. No hospital Maria, destinado aos pobres, Maria Feodórovna Netchaiev ouve os primeiros gritos de seu segundo filho, Fiodor Mikhailovitch Dostoievski, cujo destino nem a mãe nem o pai doutor Mikhail Andrévitch Dostoievski  (1789-1839) - seriam capazes de adivinhar naquele momento de angústias e esperanças. Além disso, o que está escrito na lápide do túmulo de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) em São Petersburgo deu frutos, no âmbito da literatura e da filosofia, a saber: Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Kafka, Freud, Proust, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, todos devem tributo ao russo, nascido em Moscou. Epiléptico como Machado de Assis, influenciou o existencialismo, o modernismo literário, a psicologia e a teologia. Foi condenado à morte por ler textos censurados, mas teve a pena alterada de frente para o pelotão de fuzilamento, sendo levado à Sibéria para quatro anos de trabalhos forçados. Ao recriar esse evento, o escritor cria uma das suas maiores obras, naquela altura de Crime e Castigo

       Entretanto, “Besy” pode se referir a um romance de Fiódor Dostoievsky, “Os Demônios”, ou a uma plataforma de gestão de energia inteligente. Também pode referir-se a equipamentos neonatais da marca Besy, com escopo em berços e incubadoras. Além disso, existe uma produção cinematográfica chamada “Besy”, um filme dirigido por Roman Shalyapin. “Besy” é um estudo profundo do pensamento político, social, filosófico e religioso de seu tempo. O narrador, ao mesmo tempo que observa a ação, participa dela, pois é um personagem narrando a estranha história social que se desenrolou em sua cidade no interior da Rússia. Foi, entretanto, já próximo da morte que Dostoiévski consolidou-se um dos maiores escritores de todos os tempos com sua obra-prima Os Irmãos Karamazov (1880), uma das mais importantes obras da literatura russa e mundial, ou, melhor conforme afirmou Freud, leitor de Dostoiévski: “a maior obra da história”. Considera esse romance, juntamente com Édipo Rei e Hamlet, três importantes livros com a representação de personagens a respeito do embate pai & filho, e retratam de forma extraordinária a questão essencial do fantástico Complexo de Édipo. Fiódor Dostoiévski foi muito influenciado literariamente por tradições folclóricas, representada por algumas ideias que acreditavam que as águas de rios, mares e lagos, representavam a fronteira impossível entre “o mundo dos vivos e o mundo dos mortos”.                    

                                                              

Por conta da influência que arrecadou através dessa cultura – onde o homem está entre a possível vida e a morte –, as personagens da literatura de Dostoiévski estão constantemente expostas a ocasiões complexas, beirando os limites da razão e  da lógica, e os limites  que o ser humano é capaz de  realizar diante de problemas universais; contudo, em geral, suas personagens podem ser classificadas em diferentes categorias históricas e sociais: “cristãos humildes e modestos”, “autodestrutivos e niilistas”, “cínicos e libertinos”, “intelectuais rebeldes”, enquanto regidos por ideias e não imperativos sociais ou biológicos. Lembra-nos a chamada “filosofia na alcova: ou os preceptores imorais” (cf. Castro, 2006). Embora alguns biógrafos insistam que a primeira “crise” de Dostoiévski aconteceu antes da prisão, às cartas que ele enviou ao irmão deixaram bastante claro que ele só começou a apresentar a doença durante sua prisão. Os estudos médicos nunca chegaram a um acordo sobre sua epilepsia. Freud, por exemplo, afirmou que era uma doença histérica, e não epilepsia. Não só compreendida pela análise recorrente das Cartas, mas também pelos testemunhos deixados por seus contemporâneos, podemos perceber que Dostoiévski nunca abandonou a religião Ortodoxa, na qual fora criado, ao contrário da lenda que se formou posteriormente.

A partir de Sigmund Freud, o Inconsciente passa a ser uma instância psíquica de interpretação analítica com leis próprias, regida pelo imperativo da satisfação e que, a todo o momento, quer irromper praticamente na consciência e, para tanto, romper com o recalque. Não por acaso, na literatura da psicologia recalque, representa um dos conceitos fundamentais da concepção de psicanálise, criada tendo sido desenvolvido através da observação por Sigmund Freud. Denota um mecanismo mental de defesa contra ideias que sejam incompatíveis com o Eu. Freud dividiu a repressão psicológica em dois tipos: a repressão primária, na qual o inconsciente é constituído; e a repressão secundária, que envolve a rejeição de representações inconscientes. A repressão é o processo psíquico através do qual o sujeito rejeita determinadas representações, ideias, pensamentos, lembranças ou desejos, submergindo-os na negação inconsciente, no esquecimento, bloqueando, assim, os conflitos geradores de angústia. – “O recalcado se sintomatiza”, diz Freud, os processos inconscientes só se tornam conscientes através de seus derivados - os sonhos ou os sintomas neuróticos.  De acordo com Freud, o recalque ganha expressiva força simbólica e é um dos conceitos fulcrais da psicanálise.

O filme A Vida de Uma Mulher acompanha Jeanne (Judith Chemla), que volta para casa após completar os estudos e passa a ajudar os zelosos pais nas tarefas ordinárias do campo. Certo dia o visconde Julien de Lamare (Swann Arlaud) aparece nas redondezas e logo conquista o coração da jovem, que, encantada, com ele se casa e vai morar. Conforme o tempo avança Julien se mostra infiel, avarento e nada companheiro, o que vai minando a alegria de viver da antes esperançosa Jeanne. A Vida de uma Mulher, em francês: Une Vie, tem como representação social um filme de drama franco-belga de 2016 dirigido por Stéphane Brizé, nascido em Rennes, em 18 de outubro de 1966 é um cineasta, produtor cinematográfico, roteirista e ator francês. É baseado no romance Une Vie, de Guy de Maupassant, sobre uma mulher sensível forçada a enfrentar a dureza do mundo. Henri René Albert Guy de Maupassant, ou simplesmente Guy de Maupassant, nascido em Tourville-sur-Arques, em 5 de agosto de 1850 e morto em Paris, 6 de julho de 1893, foi um escritor e poeta francês com predileção situações psicológicas e de crítica social tendo como utilidade de uso uma técnica realista.  

        Escólio: Normandia, 1819. O Barão Simone-Jacques Le Perthuis e sua esposa Adelaide têm uma filha, Jeanne, cuja amiga é Rosalie, sua criada, da mesma idade que ela. Após conhecer o Visconde Julien de Lamare, ela se apaixona por ele e logo em seguida se casam. Mas Jeanne descobre que ele a traiu com Rosalie, que, naquela conjuntura encontra-se grávida dele, é despedida. Embora Jeanne perdoe Julien, ele continua a flertar, desta vez com uma vizinha, Gilberte de Fourville. Jeanne tenta com o padre local encontrar uma saída para sua miséria. Quando Julien é baleado pelo marido de Gilberte, o filho de Jeanne, Paul, com a saúde debilitada, é educado em casa antes de ser mandado para um internato aos 12 anos. Paul mais tarde se apaixona por uma prostituta, contrai dívidas enormes e, ainda irresponsável, foge para Londres, “escrevendo regularmente para pedir dinheiro à mãe, mas sem visitá-la”. Aos 42 anos, Jeanne está sozinha, exceto por Rosalie, que voltou para ajudar sua amiga de infância. A última frase do filme e do livro é: “A vida, veja bem, nunca é tão boa ou tão ruim quanto se pensa”. Mas que lições poderemos tirar no âmbito desta questão? O sentido da vida constitui um questionamento acerca do propósito e significado da existência humana.

         Ipso facto, há certamente uma quantidade inumerável de possíveis respostas provavelmente compreensíveis para “o sentido da vida”, frequentemente relacionadas ou com a religião ou com a filosofia. Opiniões sobre o sentido da vida podem por si próprias se distinguir de pessoa por pessoa, bem como também pode variar no decorrer da vida de cada humano. No entanto, de uma forma mais ampliada, não existe consenso sobre tal. As opiniões em relação ao sentido da vida, que foram expressadas na história da filosofia, podem ser consideradas representativas como respostas per se não-religiosas. Algumas das respostas expostas no decorrer das relações decorrentes do tempo e espaço social sobre tal questionamento sugerem que o sentido da vida na filosofia antiga consiste principalmente da aquisição da felicidade (eudaimonia). Esta era comumente considerada a característica mais elevada e mais desejada. Neste contexto histórico e social, as diferenças comparadas entre as escolas filosóficas resultam das diferentes concepções sobre a felicidade e como cada qual acreditava que ela pudesse ser atingida. Após Platão, a alma imortal humana consistia de três partes: a razão, a coragem e os instintos. Apenas se essas três partes no sentido do recorte abstrato estivessem em equilíbrio e não se contradissessem mutuamente, no dia-a-dia o ser humano poderia ser fabulosamenete feliz. Aristóteles, filósofo da Grécia Antiga, não julgava a felicidade como uma condição filosoficamente estática, mas sim uma constante ativa da alma. 

            A felicidade humana perfeita só poderia ser encontrada na contemplação da vida (bios theoretikos), isto é, no filósofo e/ou no pesquisador científico. O estoicismo derrubou a virtude em posição da felicidade. Só aqueles que vivem em uníssono com a ordem do cosmo, livre de emoções, desejos e paixões e seja indiferente perante ao próprio destino, alcançaria o estado final “apatia”. Esta insensibilidade perante os acontecimentos da vida, a “paz estoica”, significava a verdadeira felicidade. Por outro lado, para Epicuro, estudado pelo materialismo dialético do jovem Marx, o sentido da vida jaz no desejo. Condições prévias de felicidade eram a superação do medo e da dor. Recomendava-se ainda a isolação da vida pública resguardando-se apenas a um pequeno círculo de amigos. A Idade Média foi o tempo no qual o Cristianismo dominou na Europa, detendo “o monopólio de todo o sentido oferecido àquele tempo”. Na Baixa Idade Média, a ênfase do sentido transferiu-se do pessoal ao coletivo, na sucessão pessoal de Cristo e a união mística com Deus que já havia sido procurada. Com a declaração da vida eterna, o significado da vida mormente na cosmovisão da Idade Média estava na máxima e eterna comunhão com Deus.

A ação, representa a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas existentes ou da matéria, corresponde ipso facto à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam, o mundo. Isto quer dizer o seguinte. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a esfera política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda a vida política. Assim, o idioma dos romanos, talvez o povo mais político que conhecemos, empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter homines esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter homines esse desinere). Mas em sua forma mais elementar, a condição humana da ação está implícita até mesmo na Gênese (“macho e fêmea Ele os criou), se entendemos que esta versão da criação do homem diverge, em princípio, da outra segundo a qual Deus originalmente criou o Homem (adam) – a ele, e não a eles, de sorte que a pluralidade dos seres humanos vem a ser o resultado da multiplicação. Quer dizer, a ação, segundo Hannah Arendt (1993), seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência com as leis gerais do comportamento, se os homens não passassem de repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, dotadas da mesma natureza e a essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição satisfatória da ação humana por sermos todos os mesmos, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.

Com a expressão vita activa, Arendt designa metodologicamente três atividades humanas fundamentais, a saber, as relações entre labor, trabalho e ação. Trata-se de atividades fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra. O labor é atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo de vida. A condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade. As três atividades e suas condições têm a mínima relação com as condições mais gerais da existência humana. O labor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida plena da espécie. O trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo social humano. 

A ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história. O labor e o trabalho, bem como sua ação iniludível, têm também raízes na natalidade, na medida em que sua tarefa é produzir e preservar o mundo humano para o constante influxo de recém-chegados que vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de prevê-los e leva-los em conta. Não obstante, das três atividades, a ação é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possuía a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir de forma pragmática.  A distinção politicamente que Arendt propõe entre labor e trabalho é inusitada. A evidência fenomenológica a favor dessa distinção é demasiada marcante para que se ignore; e, no entanto, é historicamente verdadeiro que, à parte certas observações esporádicas quase nada existe para corroborá-la na tradição pré-moderna do pensamento político ou no vasto corpo das modernas teorias do trabalho.  Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão-de-obra barata nem instrumento de exploração para fins de extração do excedente, mas sim a tentativa de excluir o labor das condições de realização e prazer da vida humana. Aristóteles, que sustentou tão explicitamente a sua teoria para depois, com a proximidade do fim da vida no leito de morte, alforriar seus escravos, talvez não fosse tão incoerente como tendem inúmeros pensadores modernos quando se afastam do extraordinário pensador dialético.     

Não é surpreendente que a distinção entre labor e trabalho tenha sido ignorada na antiguidade clássica. A diferenciação entre a casa privada e a esfera pública política, entre o doméstico que era um escravo e o chefe da casa que era um cidadão, entre as atividades que deviam ser escondidas na privatividade do lar e aquelas que eram dignas de vir a público apagaram e predeterminaram todas as outras distinções, até estar somente um critério: é na privatividade ou em público que se gasta a maior parte do tempo e do esforço? A ocupação é motivada por “cura privati negotii” ou “cura rei publicae”, para cuidar de negócios privados ou para atender às coisas públicas? Com o advento da teoria política os filósofos aboliram até mesmo estas distinções que, ao menos, haviam estabelecido uma diferença entre as atividades, e opuseram a contemplação a todo e qualquer tipo de atividade. Com eles, até mesmo a ocupação política foi rebaixada à posição de necessidade; e esta, daí por diante, passou a ser o denominador comum de todas as manifestações da vida activa. Nem podemos esperar o auxílio do pensamento político cristão, que aceitou a distinção elaborada pelos filósofos e refinou-a; e, como a religião destina-se à multidão, enquanto a filosofia é somente para alguns poucos, deu-lhe validade geral, obrigatória para todos os homens. 

É surpreendente que a Era Moderna, tendo invertido as tradições, tanto a posição tradicional da ação como da contemplação como a tradicional hierarquia dentro da própria vita activa, tendo glorificado o trabalho (labor) como fonte de todos os valores, e tendo promovido o animal laborans à posição pelo animal rationale – e não tenha produzido uma teoria que distinguisse entre o animal laborans e o homo faber, entre o “labor do nosso corpo e o trabalho de nossas mãos”. Ao invés disso, encontramos primeiro a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo; um pouco mais tarde, a diferenciação entre trabalho qualificado e não-qualificado; e finalmente, sobrepondo-se ambas por ser aparentemente de importância mais fundamental, a divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual. Das três, porém, somente a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo vai ao fundo da questão; e não foi por acaso, segundo Arendt, qua os dois grandes teoristas do assunto, Adam Smith e Karl Marx, basearam nela toda a estrutura do seu argumento. O próprio motivo da promoção do albor como trabalho na Era Moderna foi a sua produtividade; e a noção aparentemente blasfema de Marx de que o trabalho (e não Deus) criou o homem, ou de que o trabalho (e não a razão) distingue o homem analogamente dos outros animais, era apenas a formulação mais radicalmente e coerente de algo, ao que parece, com que toda a Era Moderna concordava. Parece que foi David Hume, e não Marx, o primeiro a insistir em que o trabalho distingue pelo pensamento o homem do animal. Como o trabalho não desempenha qualquer papel importante na filosofia do ceticismo de David Hume, este fato não tem interesse apenas histórico; para ele, essa característica não tornava a vida mais produtiva, mas mais árdua e mais dolorosa que a vida animal.

Contudo, é interessante, neste contexto, notar com que cuidado Hume, dois séculos antes, insistia repetidamente que nem o pensamento nem o raciocínio distingue o homem do animal, e que a conduta dos animais demonstra que estes possuem as mesmas dificuldades.  O ceticismo de Hume é a ideia de que o conhecimento dos fatos do mundo não pode ser justificado, pois depende de inferências causais e raciocínios indutivos que não podem ser justificados pela razão ou experiência. O filósofo escocês é reconhecido por levar o ceticismo ao extremo da interpretação, suspendendo as certezas mesmo diante do que parecia ser simplesmente experimental. Ele considerava que o ceticismo era uma ferramenta para distinguir o que é passível de conhecimento do que deve ser abandonado. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade de constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico. A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada historicamente ao homem no processo de constituição da sociedade.  Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste em coisas produzidas pelas atividades; mas, constantemente, as coisas que devem sua existência aos homens também condicionam os seus autores humanos. 

Além das condições nas quais a vida é dada ao homme na Terra e, até certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência humana. É por isto que os homens, independentemente do que façam, são sempre seres condicionados. Tudo o que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço, torna-se parte da condição humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e recebido como força condicionante. A objetividade do mundo – o seu caráter de coisa ou objeto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas; e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana. Para evitar erros magníficos de interpretação do real: a condição humana não é o mesmo que a natureza humana, e a soma total das atividades e capacidades humanas que correspondem à condição humana.

Pois nem como o pensamento e a razão, e nem mesmo a mais meticulosa enumeração de todas as ações, constituem elas características essenciais da existência humana no sentido de que, sem elas, essa existência deixaria de ser humana. A mudança mais radical da condição humana que podemos imaginar seria uma emigração dos homens da Terra para algum outro planeta. Tal evento, já não inteiramente impossível, implicaria em que o homem teria que viver sob condições, feitas por ele mesmo, inteiramente diferentes daquelas que a Terra lhe oferece. O labor, o trabalho, a ação e, na verdade, até mesmo o pensamento como o conhecemos deixariam de ter sentido em tal eventualidade. Não obstante, até mesmo esses hipotéticos viajores terrenos ainda seriam humanos; mas a única afirmativa que poderíamos fazer quanto à sua “natureza” é que são ainda seres condicionados, embora sua condição seja agora, em grande parte, produzida por eles mesmos. O problema da natureza humana, a quaestio mihi factus sum de Agostinho, parece insolúvel, tanto em seu sentido psicológico como em seu sentido filosófico geral. É altamente improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e definir a essência natural de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos, venhamos a ser capazes de fazer o mesmo a nosso próprio respeito: seria como pular sobre nossa própria sombra. Além disso, não nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas analogamente as têm. 

Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente, só um deus pode conhece-la e defini-la; e a condição prévia é que ela possa falar de um “quem” como se fosse um “que”. O problema é que as formas de cognição humana aplicáveis as coisas dotadas de qualidades naturais – inclusive nós mesmos, na medida limitada em que somos exemplares da espécie de vida orgânica mais altamente desenvolvida – de nada nos valem quando levantamos a hipótese: e quem somos nós? É por isto que as tentativas de definir a natureza humana levam quase invariavelmente à construção de alguma deidade, isto é, ao deus dos filósofos que, desde Platão, não passa, a uma análise mais profunda, de uma espécie de ideia platônica do homem. Naturalmente, desmascarar tais conceitos filosóficos da divindade como conceitualizações das capacidades e qualidades humanas não chega a ser uma demonstração da não-existência de Deus, e nem mesmo constitui argumento nesse sentido; mas o fato de que as tentativas de definir a natureza do homem levam tão facilmente a uma ideia de que nos parece definitivamente “sobre-humanos” e é, portanto, identificada com a divindade, pode lançar suspeitas sobre o próprio conceito sociológico de “natureza humana”. A moderna ciência natural deve os seus maiores triunfos ao fato de termos olhado e tratado a natureza terena de um ponto de vista verdadeiramente universal, isto é, de um ponto de vista arquimediano escolhido, voluntária e explicitamente fora da Terra. A expressão vita activa é perpassada e sobrecarregada de tradição. É tão velha quanto a nossa tradição de pensamento político, mas não mais velha que ela. E essa tradição, longe de abranger e conceitualizar todas as experiências ocidentais, é produto de uma constelação histórica específica: o julgamento de Sócrates e o conflito irremediável entre o filósofo e a polis. 

Foi amigo do célebre escritor francês Gustave Flaubert, a quem se referia como mestre. Prosador importante, Flaubert marcou a literatura francesa pela profundidade de suas análises psicológicas, pelo seu senso compreensivo de realidade, pela sua lucidez sobre o comportamento social, e pela força de seu estilo em grandes romances, tais como Madame Bovary (1857), A Educação Sentimental (1869), Salammbô (1862), mais os seus contos, nomeadamente os Trois contes (1877). É uma comuna no departamento de Sena Marítimo, na região da Normandia, no Norte da França, é um país europeu que faz fronteira com Espanha, Andorra, Itália, Suíça, Alemanha, Luxemburgo e Bélgica. Tem como capital a cidade de Paris. Possui cinco territórios ultramarinos, que ficam nas Américas do Sul e Central, na África e no Oceano Índico. O clima francês é do tipo temperado oceânico, enquanto o seu relevo varia das planícies, ao Norte e Noroeste, até as cadeias montanhosas, ao Sul e a Leste. A vegetação é marcada pela floresta temperada e pelas formações mediterrâneas. Conta atualmente com mais de 65 milhões de habitantes, sendo Paris a sua cidade mais populosa. É uma das maiores economias globalizadas do mundo, além de se destacar pela densa rede de infraestrutura, sobretudo de transportes urbanos, que percorre o país. O turismo possui enorme peso na Ecopolítica da economia francesa, uma vez que esse é um dos países mais visitados do mundo ocidental, dispondo de atrativos que vão desde os museus e monumentos históricos até as paisagens naturais mediterrâneas, do litoral Norte e também alpinas.

A França é também um importante centro cultural mundial, com enorme produção literária, cinematográfica e musical, além de uma grande variedade histórica de museus, teatros e casas de show. Sua gastronomia é mundialmente reconhecida e um de seus principais patrimônios. O filme foi selecionado para competir pelo Leão de Ouro no 73º Festival Internacional de Cinema de Veneza onde ganhou o Prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema, uma organização que reúne críticos de cinema de todo o mundo, com o objetivo de promover a arte cinematográfica e incentivar o cinema novo e jovem. Foi fundada em 1930 em Bruxelas. Neste caso de Melhor Filme na competição. Foi premiado com o Prêmio Louis Delluc de Melhor Filme em 2016. O filme é descrito como “a delicada história de uma vida de emoções francas e decepções lancinantes”, que apresenta o romance solidamente estruturado “numa série de flashbacks brilhantes e flashforwards sombrios”. Usando uma câmera portátil, Brizé enquadra “a heroína, interpretada por uma magnífica Judith Chemla em formato 4:3, também reconhecido como 1.33:1, aprisionando-a numa existência atormentada”. Nascida em 6 de julho de 1983 em Val-de-Marne, é uma atriz e autora francesa. 

É filha de pai violinista e mãe advogada, que se separou quando ela ainda era jovem. Judith Chemla cresceu em Gentilly, nos subúrbios de Paris. Começou a tocar violino aos 7 anos e tocou até aos 14. Descobriu o teatro no liceu, sob a orientação de Emmanuel Demarcy-Mota. Ela frequentou aulas com Bruno Wacrenier no conservatório do 5º arrondissement, com aulas com Cécile Grandin no conservatório departamental de Bourg-la-Reine – Sceaux. Ela então ingressou no Conservatório Nacional, onde conheceu Muriel Mayett, que a convidou para a Comédie-Française. Foi residente da Comédie-Française de 2007 a 2009. Ao mesmo tempo, iniciou uma carreira cinematográfica e colaborou com diretores importantes, incluindo James Huth, Pierre Schöller, Jean-Michel Ribes, Bertrand Tavernier, Pierre Salvadori, Thierry Jousse, Noémie Lvovsky, André Téchiné, Stéphane Brizé, Éric Toledano e Olivier Nakache, Mia Hansen-Løve, Olivier Dahan, Yvan Attal. Em 2010, escreveu Tue-Tête, uma peça ambientada num “mundo poético e burlesco, pura emanação da imaginação arborescente de uma atriz livre e boémia”. O 10 de abril de 2020, ela interpreta textos de poesia e canta, a cappella, a Ave Maria de Schubert na Catedral de Notre-Dame de Paris, anteriormente abandonada desde o trágico incêndio, durante uma celebração excepcional por ocasião da Sexta-feira Santa.

Quer dizer, depois de haver eliminado muitas das experiências de um passado anterior que eram irrelevantes para suas finalidades políticas, prosseguiu até o fim na obra de Marx, de modo altamente seletivo. A própria expressão que, na filosofia medieval, é a tradução consagrada do bios politikos de Aristóteles, já ocorre em Agostinho onde, como vita negotiosa ou actuosa, reflete anda o seu significado original: uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos. Aristóteles distinguia três modos de vida (bios) que os homens podiam escolher livremente, isto é, em inteira independência das necessidades da vida e das relações delas decorrentes. Esta condição prévia de liberdade eliminava qualquer modo de vida dedicado basicamente à sobrevivência do indivíduo – não apenas o labor, que era o modo de vida do escravo, coagido pela necessidade de permanecer vivo e pela tirania do senhor, mas também a vida de trabalho dos artesãos livres e a vida aquisitiva do mercador. Excluía todos aqueles que, involuntária ou voluntariamente, permanente ou temporariamente, já não podiam dispor em liberdade dos seus movimentos e ações. Os três modos de vida restantes têm em comum o fato de se ocuparem do “belo”,  de coisas que não eram necessárias e nem meramente úteis: a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido como tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da polis, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano.  

Com o desaparecimento da antiga cidade-estado, Agostinho foi, aparentemente o último a conhecer, pelo menos o que outrora significava ser um cidadão, a expressão vita activa perdeu o seu significado especificamente político e passou a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste mundo. Convém lembrar que isto não queria dizer que o trabalho e o labor houvessem galgado posição mais elevada na hierarquia das atividades humanas e fossem agora tão dignos quanto a vida política. De fato, o posto era verdadeiro: a ação passara a ser vista como uma das necessidades da vida terrena, de sorte que a contemplação (o bios theoretikos), ou vida contemplativa, era o único modo de vida realmente livre. Contudo, a enorme superioridade da contemplação sobre qualquer outro tipo de atividade, inclusive a ação, não é de origem cristã. Encontramo-la na filosofia política de Platão, onde toda a reorganização utópica da vida na polis é não apenas dirigida pelo superior discernimento do filósofo, mas não tem outra finalidade senão tornar possível o modo de vida filosófico. O próprio enunciado aristotélico dos diferentes modos de vida, em cuja ordem a vida de prazer tem papel secundário, inspira-se claramente no ideal da contemplação (Theoria). À antiga liberdade em relação às necessidades da vida e à compulsão alheia, os filósofos acrescentaram a liberdade e a cessação de toda atividade política (skole), de sorte que a posterior pretensão dos cristãos – des erem livres de envolvimento em assuntos mundanos, livres de todas as coisas terrenas – foi precedida pela apolita filosófica da última fase da Antiguidade, e dela se originou.  Havia sido exigido por alguns poucos agora era visto como direito de todos.  

A expressão vita activa, compreendendo todas as atividades humanas e definida do ponto de vista da absoluta quietude da contemplação, corresponde, portanto, mais à askolia grega (“ocupação”, “desassossego”) com a qual Aristóteles designava toda atividade, que ao bios politikos dos gregos. Quer dizer, desde Aristóteles a distinção ente quietude e ocupação, entre uma abstenção quase estática do movimento físico externo e de qualquer tipo de atividade, é mais decisiva que a distinção entre os modos de vida político e teórica, porque pode vir a ocorrer em qualquer um dos três modos de vida. É como a diferença entre a guerra e a paz, também todo tipo de atividade, até mesmo o processo de mero pensamento, deve culminar na absoluta quietude da contemplação. Todo movimento, os movimentos do corpo e da alma, bem como o discurso e o raciocínio devem cessar diante da verdade. Esta, seja a antiga verdade do Ser ou a verdade cristã do Deus vivo, só pode revelar-se em meio a completa quietude. Tradicionalmente, na história, e até o início da chamada Era Moderna, a expressão jamais perdeu sua conotação negativa de “in-quietude”, nec-otium, askolia. E permaneceu ligada à distinção grega, ainda mais fundamental, entre as coisas que são por si o que são e as coisas que devem ao homem a sua existência, entre as coisas que são physei e as coisas que são nomo.

Isto é, o primado da contemplação sobre a atividade baseia-se na convicção de que nenhum trabalho de mãos humanas pode igualar-se em beleza e verdade o Kosmos físico, que revolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem qualquer interferência ou assistência externa, seja humana ou divina. Esta eternidade só se revela a olhos mortais quando todos os movimentos e atividades humanas estão em completo repouso. Comparadas a este aspecto da quietude, todas as diferenças e manifestações no âmbito da vida activa desaparecem. Do ponto de vista da contemplação, filosoficamente falando, não importa o que perturba a necessária quietude; o que importa na vida realmente é que ela seja perturbada.  Tradicionalmente a vita activa deriva o seu significado da vida contemplativa; sua mui limitada dignidade deve-se ao fato de que serve `as necessidades e carências da contemplação num corpo vivo. O cristianismo, com sua crença num mundo cujas alegrias se pronunciam nos deleites da contemplação, conferiu a sanção religiosa ao rebaixamento da vita activa à sua posição subalterna. Mas a determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação (Theoria) como faculdade humana, acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que ocorreu na presentemente em seu tempo na escola socrática e que, desde então, vem orientando o pensamento metafísico e político de toda a nossa tradição.

Obviamente, são mais profundas que o momento histórico que motivou o conflito entre a polis e o filósofo, e com isso levou também, quase por acaso, à descoberta da contemplação como modo de vida do filósofo. Essas razões devem residir num aspecto inteiramente diferente da condição humana, cuja diversidade não é esgotada pelas várias manifestações da vita activa e, provavelmente, não seria esgotada mesmo que se lhe incluíssemos o pensamento e o movimento do raciocínio.  Se o uso da expressão vita activa, está em manifesto conflito com a tradição, é que Hannah Arendt duvida não da validade da experiência que existe por trás dessa distinção, mas da forma de manutenção da ordem hierárquica que acompanha desde o início. Ela afirma que o enorme valor da contemplação na hierarquia tradicional obscureceu as diferenças e manifestações cognitivas e intelectuais no âmbito da própria vita activa e que, a despeito da realidade das aparências, esta condição não foi essencialmente alterada pelo moderno rompimento com a tradição nem pela eventual inversão na ordem hierárquica articulada em torno de Karl Marx e Friedrich Nietzsche. Nas décadas de 1950 e 1960, metade dos doutorados nos Estados Unidos da América vinha das quinze universidades mais prestigiosas, para as quais, em consequência, acorriam os jovens mais capazes. Num mundo democrático e populista, os cientistas eram uma elite, concentrada em alguns relativamente poucos centros subsidiados. Na verdade, à medida que aumentava a especialização, cada vez mais sobre cada vez menos, mesmo os cientistas precisavam de mais publicações para explicar uns aos outros o que se passava fora de seus respectivos campos. 

O fato social de que o século XX dependeu da ciência dificilmente precisa de prova.  Em suma, a tecnologia com base na ciência já se achava no âmago do mundo burguês do século XIX, embora as pessoas de espírito prático não soubessem exatamente o que fazer socialmente com os triunfos da teoria científica, a não ser, nos casos adequados, transformá-las em ideologias: como o século XVIII fizera com Isaac Newton e o final do século XIX com Charles Darwin. Apesar disso, vastas áreas da vida social e humana continuaram sendo governadas, em sua maioria, apenas pelo rigor metódico e pela experiência, experimentação, habilidade, bom-senso treinado e, na melhor das hipóteses, difusão sistemática de conhecimento sobre as melhores práticas e técnicas preexistentes. Foi visivelmente o que aconteceu com a agricultura, construção civil e medicina, e na verdade com uma vasta gama de atividades que proporcionavam aos seres humanos suas necessidade e luxos. Num determinado momento, no último terço do século, isso começou a mudar. Na Era dos Impérios, começaram a tornar-se visíveis não apenas os contornos da moderna tecnologia, só é preciso pensar nos automóveis, aviação, rádio e cinema, mas os empreendimentos da moderna teoria científica: relatividade, o quantum, e a genética. Além disso, via-se agora que as mais esotéricas e revolucionárias descobertas da ciência tinham potencialmente tecnológico imediato, da telegrafia sem fio ao uso médico dos raios X, ambos baseados em descobertas da década de 1890. Apesar disso, embora a grande ciência do Breve Século XX já fosse visível e de certa forma concebida em 1914, e embora a alta tecnologia posterior já estivesse nela, a grande ciência, ainda não era uma coisa sem a vida diária em toda parte do globo seria inconcebível.                             

Bibliografia Geral Consultada.

FREUD, Sigmund, Psicopatologia della Vita Quotidiana. Torino: Bollati Boringhieri Editore, 1971; DELEUZE, Gilles, Cinéma I: l` Image-Mouvement. Paris: Éditions de Minuit, 1983; MONTERDE, José Enrique, Cine y Enseñanza. Barcelona: Editorial Laia, 1986; XENAKIS, Françoise, Ih, Esqueceram Madame Freud. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987; FRANK, Joseph, Dostoiévski: Os Anos de Provação, 1850-1859. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000; MARTOCCIA, María, Corpos Frágeis, Mulheres Poderosas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003; SILVA, Marcos Paulo do Nascimento, A Problemática do Mal em O Mal-Estar na Civilização. Dissertação de Mestrado. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2004; CASTRO, Clara Carniceiro, O Sistema Filosófico do Marquês de Sade: Estudo da Elaboração do Sistema Filosófico do Marquês de Sade a partir das Filosofias Iluministas e Libertinas do Século XVIII na França. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2006; SIMMEL, Georg, “A Sociologia do Segredo e das Sociedades Secretas”. Tradução de Simone Carneiro Maldonado. In: Revista de Ciências Humanas. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Volume 43, Número 1, pp. 219-242, abril de 2009; BRAGA, Ubiracy de Souza, “A Partícula de Deus?”. In: Jornal O Povo. Fortaleza, 15 de outubro de 2013; MERENCIANO, Levi Henrique, Cinema Hollywoodiano no século XXI: O Ritmo em Abordagem Semiótica e os Filmes mais vistos em 2001 a 2010. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa. Faculdade de Ciências e Letras. Araraquara: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2015; BARBOSA, Kherlley Caxias Batista, A Concepção de Liberdade na Filosofia Política de Hannah Arendt. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2017; AMARAL PENHA, Diego, Faces do Horror em Freud: Palavras, Gestos e Imagens. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Instituto de Psicologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2021; CASTRO, Conrado Pires, “Tradições e Contradições: As Raízes Modernistas do Pensamento de Sergio Buarque de Holanda e de Raízes do Brasil (1936)”. In: Revista de História. São Paulo, n° 184, pp. 1–28, 2025; entre outros.

A Sedução de Iracema – Sensibilidade Literária & Visão Romântica Tardia.

                   “Muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema”. José de Alencar

Na história social o pessimismo cultural, esse “olhar desencantado” sobre a modernidade, é, na verdade, uma das expressões da visão de mundo romântica “tardia” do fim do século. Por romantismo, devemos compreender não uma corrente literária dos anos 1800, mas uma das principais estruturas de sensibilidade da cultura moderna: o protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna em nome de valores do passado. A oposição entre Kultur, um conjunto de valores culturais, religiosos, estéticos, éticos ou políticos, e Zivilisation, o universo da técnica, dos negócios e da burocracia, ou entre Gemeinschaft, “a comunidade orgânica do passado” e Gesellschaft, “a sociedade moderna fundada sobre o contrato e o mercado, está segundo Löwy (2014: 43), entre os principais temas do Kulturpessimismus de inspiração romântica. Essa atitude era particularmente comum no “mandarinato” universitário alemão e profundamente hostil ao advento rápido e brutal da civilização industrial capitalista na Alemanha no fim do século XIX. O autor dessa análise brilhante não é outro senão o extraordinário sociólogo Max Weber.

Entre esses mandarins críticos, esses “aristocratas da educação” frustrados, os sociólogos alemães ocupam um lugar privilegiado, não só os irmãos Weber, mas também Ferdinand Tönnies, Ernest Troeltsch, Georg Simmel, Werner Sombart, Rober Michels, Karl Mannheim e vários outros pensadores. O pessimismo deles pode levar a uma espécie de visão trágica do mundo, baseada na convicção desesperada de que não existe nenhum meio de conter ou impedir o triunfo da civilização capitalista moderna, considerada uma fatalidade.  Podemos citar como exemplo, entre outros, o de Georg Simmel, autor de um ensaio brilhante sobre a tragédia da cultura moderna; em outro livro, La Philosophie de l`argent (1901), ele lamenta o poder dominante da “cultura das coisas” (Kultur der Dinge) sobre a cultura das pessoas e acrescenta o seguinte: - “A produção, com sua técnica e seus resultados, aparece como um universo [Kosmos] com sólidas determinações e desenvolvimentos que se opõe aos indivíduos, como o destino [Schiksal] diante da instabilidade e da irregularidade de nossa vontade”. Encontramos essa ideia, às vezes palavra por palavra (Kosmos, Schiksal), em seu amigo Max Weber.  Numa obra interessante, de certo ponto de vista, sobre a problemática posta por Weber, Wilhelm Hennis lembra que o irmão caçula, Alfred Weber, qualificava de “romântico”.   

A genealogia da “família da imagem” não passa da história de um equívoco abastardamento. Quer dizer, o contrário do sentido próprio, o sentido figurado, não pode então deixar de ser um sentido desprezível. Mas é capital que notemos na questão da imagem, se a escolha do signo é insignificante porque este último é arbitrário, já não acontece o mesmo domínio da imaginação em que a imagem – por mais degradada que possa ser concebida – é ela mesma portadora de um sentido que não deve ser procurado fora da significação imaginária. O sentido figurado é o único significativo, o chamado sentido próprio não passando de um caso particular e mesquinho da vasta corrente semântica que drena as etimologias. O analogon que a imagem constitui não é nunca um signo arbitrariamente motivado, o que significa que é sempre símbolo. É, finalmente, por terem falhado na definição da imagem como símbolo que as teorias em geral deixaram evaporar a eficácia do imaginário. E, se Jean-Paul Sartre bem vê que há uma diferença entre o signo convencional, “não posicional” e que não “dá o objeto”, e a imagem, erra por não ver nela apenas uma degradação do saber, uma apresentação de um quase-objeto, remetendo-a assim à insignificância. Pode-se dizer que o símbolo não é do domínio da semiologia, mas de uma semântica especial, o que quer dizer que possui algo mais que um sentido artificial e detém um essencial e espontâneo poder de repercussão.                 

O significado de um artefato, segundo a interpretação de Alöis Riegl (1984), é conexo com a estrutura mental (abstrata) que definirá o reconhecimento da obra de arte como tal. Analogamente se referem a unidades de geração que desenvolvem perspectivas, reações e posições políticas e afetivas diferentes em relação a um mesmo mercado. O nascimento em um contexto social idêntico, mas em um período específico, faz surgirem diversidades nas ações dos sujeitos. Outra característica é a adoção ou criação de estilos de vida distintos pelos indivíduos, mesmo vivendo em um mesmo nível social. A unidade geracional constitui uma adesão mais concreta em relação àquela estabelecida pela conexão geracional. Mas a forma como grupos sociais da mesma “conexão geracional” lida com os fatos históricos e sociais vividos, por sua geração, fará surgir distintas unidades geracionais no âmbito da mesma conexão geracional no conjunto da sociedade. A história do amor proibido entre a índia tabajara Iracema e o guerreiro branco português Martim, criada pelo escritor José de Alencar, ganha estreia de inédita e livre adaptação pelo dramaturgo e diretor cearense Ilclemar Nunes. Uma versão “Iracema dos lábios de mel: o musical” (2017) fez curta temporada no palco principal do Theatro José de Alencar, de 5 a 8 de outubro (de quinta-feira a domingo), às 19 horas. Com elenco formado por 23 atores cearenses, músicos e equipe técnica composta basicamente por grandes profissionais locais, o musical mostra o amor dos protagonistas, que viceja no nascimento do brasileiro fruto dessa miscigenação: o mameluco Moacir, entre as guerras, a paixão, a amizade e os ritos dos índios que habitaram o Ceará. 

O projeto, incentivado pelo VIII Edital Mecenas, da Secretaria da Cultura do Ceará, tem patrocínio do Grupo Zenir e da Expresso Guanabara, com apoio da Câmara de Comércio Brasil/Portugal, do Teatro da Boca Rica e do Teatro Antonieta Noronha. A dramaturgia de “Iracema dos lábios de mel: o musical”, escrita por Ilclemar desde 1991 para o teatro, já foi antes de encenada como peça, transformada pelo autor em roteiro carnavalesco para o desfile do Grêmio Recreativo Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis (RJ). Agora, a singularidade do musical adaptado do romance original chega enfim aos palcos, tendo a personagem-título interpretada pela jovem Larissa Goes, enquanto o ator André Ximenes faz o papel de Martim, figura baseada no real primeiro colonizador português do Ceará, Martim Soares Moreno, que impõe aos índios a cultura civilizadora cristã europeia. Outros personagens também ganham novos intérpretes, sociologicamente falando, cantantes e dançantes na montagem, como Poti, o guerreiro pitaguary e amigo de Martim (feito por Gabriel Moraes); o pajé da tribo tabajaras (Beto Meneis); o guerreiro irmão de Iracema, Caubi (Mateus Honori); o chefe tabajara e inimigo de Martim, Irapuã (Bruno Prata); o cacique potiguara Jacaúna (Markos Vanucci, atua como um dos guerreiros), para citarmos alguns do grande elenco.

 Karl Mannheim, um sociólogo judeu nascido na Hungria, foi inovador na interpretação desta questão, não escondendo a preferência pela abordagem histórico-romântica alemã, e destaca ainda que este é um exemplo bastante claro, de como a forma de se colocar uma questão pode variar de país para país, assim como de uma época historicamente determinada para outra socialmente inclusiva.  A história social da arte tem como representação a atividade humana realizada com o propósito estético ou comunicativo, enquanto expressão de ideias, emoções ou formas de interpretar a realidade do mundo. Em sua historicidade as artes visuais têm sido classificadas de várias formas, desde a distinção medieval entre as artes liberais e as artes mecânicas, à distinção moderna entre belas artes e artes aplicadas, ou às várias definições contemporâneas, que definem arte como a manifestação individual e coletiva da criatividade humana. O alargamento da lista das principais artes durante o século XX definiu-as essencialmente em arquitetura, escultura, música, dança, pintura, poesia, incluindo o teatro e a narrativa literária, e posteriormente, o nascimento do cinema e da imagem da fotografia em sua reprodutibilidade técnica. Quando considerada a sobreposição, comparativamente, de termos entre as chamadas artes plásticas e as artes visuais, incluem-se também do ponto de vista tecnológico, last but not least, a relação entre o design e as artes gráfica. 

As artes gráficas, também reconhecida socialmente como design, é uma ciência, que tem como objetivo, a criação de soluções que são utilizadas para servir de forma funcional o ser humano. A arte e o design estão presentes na história desde originalmente a identificação etnográfica da pré-história, através de desenhos e sinais que simbolizavam objetos e acontecimentos relevantes no âmbito da memória individual e coletiva. Todavia, enquanto a arte do ponto de vista técnico-metodológico propõe uma interpretação subjetiva de suas obras, o design comparativamente propõe algo de sentido objetivo, onde as pessoas serão capazes de entender e podem vir a comprar o produto e/ou serviço apresentado, ou aderindo à uma ideia, no caso de uma propaganda. Quer a imaginação estreitamente motivada seja pela língua, seja pelas funções sociais, segundo Durand (1997), se modele sobre essas matrizes sociológicas, quer genes raciais intervenham bastante misteriosamente para estruturar os conjunto simbólicos, distribuindo seja as mentalidades imaginárias, sejam os rituais religiosos, quer ainda, com uma matriz de corte epistemológico evolucionista, se tente estabelecer uma hierarquia das grandes formas simbólicas e restaurar a unidade no dualismo bergsoniano das Deux sources, quer enfim que com a interpetação recursiva da psicanálise se tente encontrar uma síntese motivante, isto é, que ocorre entre as pulsões de uma libido em evolução e as pressões recalcadoras do microgrupo etnológico familiar.

São estas diferentes classificações das motivações simbólicas que precisamos criticar antes de estabelecer um método de análise firme. A maior parte dos analistas das motivações simbólicas, que são historiadores da religião, fixaram-se numa classificação dos símbolos segundo o seu parentesco mais ou menos nítido com uma das grandes epifanias cosmológicas. É assim que Alexander Krappe subdivide os mitos e os símbolos em dois grupos: os símbolos celestes e os símbolos terrestres. Cinco dos primeiros capítulos da sua Genèse des Mythes são consagrados à dimensão do céu, ao Sol, à Lua, às “duas grandes luminárias” e às estrelas, enquanto os seis últimos se ocupam dos mitos atmosféricos, vulcânicos, aquáticos, ctônicos, cataclísmicos e, da história humana e seu simbolismo. Mircea Eliade, no seu notável Tratado de História das Religiões segue mais ou menos o mesmo plano de clivagem das hierofanias, mas com mais profundidade, consegue integrar os mitos e os símbolos cataclísmicos, vulcânicos e atmosféricos em categorias mais gerais, o que nos vale vastos capítulos consagrados aos ritos e símbolos uranianos, ao Sol, à Lua e à “música lunar”, às águas, às cratofanias e a Terra. Mas, a partir do sétimo capítulo, o mitólogo parece subitamente interessar-se pelos caracteres funcionais das hierofanias e os estudos dos símbolos agrários polarizam-se nas funções de fecundidade, de renovação e cultos de fertilidade, que insensivelmente conduzem, nos últimos capítulos, a meditar sobre o Grande Tempo e os mitos do Eterno Retorno.

Vemos, portanto, que essas classificações sociais que se pretendem inspiradas por normas de adaptação ao mundo objetivo, tanto sideral como telúrico e meteorológico, parecem irresistivelmente levar a considerações menos objetivas: nos seus últimos capítulos, Eliade reconduz insensivelmente o problema das motivações ao plano da assimilação das imagens ao drama de uma duração humana e separa-o do positivismo objetivo dos primeiros capítulos, enquanto Krappe termina o livro de forma assaz confusa com considerações sobre a classificação do mito em “diversas” cosmogonias e “mitos de origem” que, implicitamente, o reconduzem também a uma motivação psicológica das imagens pela percepção completamente subjetiva do tempo. Gaston Bachelard, parece dominar melhor o problema ao aperceber-se de que a assimilação subjetiva desempenha um papel importante no encadeamento dos símbolos e suas motivações. Supõe que é nossa sensibilidade que serve de medium entre o mundo dos objetos e o dos sonhos e utiliza as diversões de uma física qualitativa e de primeira instância do tipo abstrato categorial aristotélico. Ou, sobretudo, detém-se no que uma tal física pode já conter de objetivo, e, em vez de escrever monografias sobre a imaginação do quente, do frio, do seco e do úmido, limita-se à teoria dos quatro elementos. São estes elementos que vão servir-nos de axiomas classificadores para os sutis estudos poéticos do epistemólogo, porque esses elementos são “os hormônios da imaginação”.   

José de Alencar nasceu em maio de 1829 em Messejana, na província do Ceará. Sua avó paterna Bárbara de Alencar (1760-1832) consagrou-se heroína da chamada revolução de 1817 em Pernambuco. Bárbara de Alencar foi uma pernambucana, branca, nascida no dia 11 de fevereiro na cidade de Bom Jesus dos Aflitos de Exu, em 1760. A história da matriarca da revolucionária família Alencar, tem origem nos povos indígenas que habitavam o sertão pernambucano, pois Bárbara era filha de mãe indígena, a Theodora Rodrigues da Conceição. Além disso, as raízes que ligam Bárbara à cidade do Crato remontam aos seus ascendentes bandeirantes, que foram os primeiros a chegar na região. A ligação de Bárbara de Alencar com o Nordeste brasileiro se estende para além do Ceará, chegando a Pernambuco, em que seu pai juntamente a outros antecedentes dela fundaram a cidade de Exu. Constata-se que é nesse momento espetacular que a família dos Alencar começa a fazer fortuna, a cultivar gado (pecuária), algodão e cana de açúcar (agricultura) e, mediante a dinâmica econômica do período, vão estendendo seus domínios pelas províncias de Pernambuco e Ceará, principalmente pelos interiores, e vão ganhando visibilidade, respeito e sobretudo influência social.

            A denominação “Exu”, conforme os habitantes da terra, existem duas versões, uma decorrente de uma corruptela do nome do povo “Ançu” ou “Açu” da nação Cariri e a outra, que os indígenas puseram o nome de Exu, devido a um tipo de abelhas de ferrão, denominadas “Inxu”, que ao ferroar causava muita dor. Os indígenas, já em contato com os vaqueiros dessas fazendas, levaram estes às suas moradias e ao regressar, os vaqueiros informaram aos patrões que as terras onde moravam os indígenas eram fartas em fontes de águas e os terrenos dotados de boa qualidade para o cultivo e a criação animal. Após ter tomado conhecimento sobre a região, esses fazendeiros a colonizaram, expulsando os indígenas que ocupavam tradicionalmente a área e aldeando os remanescentes.  Logo após essa invasão por colonizadores luso-brasileiros, chegaram alguns jesuítas, que ali permaneceram por alguns anos, até partirem da região, deixando apenas vestígio de sua estadia, pois construíram uma capelinha ao Senhor Bom Jesus dos Aflitos, que se tornou o padroeiro da cidade com a criação em 1734 da freguesia do Senhor Bom Jesus dos Aflitos de Exu. A colonização teria ocorrido no século XVIII, pelos portugueses, teve à frente o colono português Joaquim Pereira de Alencar, o qual era avô do Barão do Exu e antepassado do escritor e político cearense José de Alencar.

Em 1817, após a Revolução Pernambucana, ocorreu a prisão em Recife da comerciante e revolucionária Bárbara de Alencar, exuense descendente dos primeiros colonos portugueses que se estabeleceram na região e a Fazenda Caiçara, situada no território da freguesia de Senhor Bom Jesus dos Aflitos de Exu e pertencente à família Alencar foi confiscada. Durante a época do Brasil Imperial, o povoado de Exu foi elevado à categoria de vila no ano de 1846. Três anos depois, houve a transferência da sede do termo para Ouricuri por uma lei datada de 1849, a qual se seguiu a várias outras leis que conferiu “instabilidade na formação do poder local”. Essa instabilidade política historicamente pode ser observada na lei de 1858 que restaurou a categoria de Vila para Exu, na lei de 1862 que retrocede esse estatuto ao anexá-la à comarca de Cabrobó; na lei de 1863 que transferiu a vila para Granito; na lei de 1872 que a transforma em sede de freguesia; na lei de 1874, que novamente a restaurou na categoria de vila; na lei de 1881 que a elevou ao estatuto de comarca; e na lei de 1883 que lhe tirou esse mesmo estatuto.

No final do Brasil do Segundo Reinado (1840-1889), o município foi instalado em 7 de junho de 1885, passando a ser autônomo em 9 de julho de 1893, logo após à Proclamação da República, em face a lei n° 52, de 3 de agosto de 1892, quando foi designado como seu primeiro prefeito Manoel da Silva Parente. Em 1895, o município foi suprimido, porém, ele veio a ser restaurado em 1907 com nome de Novo Exu, denominação que seria posteriormente simplificada para Exu. Ao longo do século XX, o município de Exu passou por uma grave crise sociopolítico que perpassou aquele século devido as diversas e contínuas disputas políticas envolvendo três famílias que lutavam pelo domínio do mandonismo local: os Alencar, os Sampaio e os Saraiva. A partir de ano 1949, o conflito oligárquico entre os clãs político-familiares se intensificou com o assassinato do coronel Romão Sampaio por José Aires de Alencar, um jovem pertencente ao clã Alencar que fugiu depois da prática do crime. Após esse evento, as três famílias viveram em constantes conflitos armados, com uma facção formada pelos “Alencar” de um lado, popularmente reconhecidos como “Boca Branca” e outra facção formada pelas famílias Sampaio e Saraiva do outro reconhecidos como “Boca Preta”, as quais matavam e aterrorizavam toda a população local alheia a essas disputas político-familiares.

Entre o final da década de 1940 e meados de 1960, período reconhecido como Quarta República, a animosidade dessas disputas armadas seriam reproduzidas na política. Isso ocorreu com o Partido Social Democrático (PSD) sendo associado à família “Alencar”, enquanto a União Democrática Nacional (UDN) seria associada à família “Sampaio”. A eleição de Cid Sampaio ao cargo de governador de Pernambuco em 1958 fez com que essas oligarquias viessem a inverterem as siglas partidárias a que estavam vinculadas.  Após o Golpe Militar de 1° de abril de 1964, o estado beligerante entre as oligarquias locais permaneceu com sodalidade dos três clãs familiares apoiando a ditadura civil-militar instalada e se filiando ao partido governante Aliança Renovadora Nacional, mas formando uma cisão na fração da classe dominante local com a família Sampaio compondo a cisão entre as duas famílias. Na década de 1960, a Organização Mundial da Saúde e o Instituto Nacional de Endemias Rurais vinculado ao Ministério da Saúde, escolheram o município de Exu para abrigar um laboratório científico dedicado ao estudo da peste, que foi coordenado pela bióloga Alzira de Paiva Almeida. Nascida e criada em Palmares (PE) em 1956, mudou-se para Recife, onde estudou no Colégio Nossa Senhora do Carmo de 1956 a 1960, obtendo certificação na área pedagógica. 

Alzira ingressou na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) no curso de Nutrição, concluindo-o em 1965. Após sua formação, juntou-se à equipe do Prof. Nelson Chaves no Instituto de Nutrição da UFPE como Laboratorista. Em 1989, foi aceita no programa de doutorado na Université Paris, em Paris, sob a orientação da Dra. Elisabeth Carniel. Em 1993, obteve o título de Doutora em Microbiologia com uma tese intitulada: “Estudo de diferentes marcadores, com destaque para o gene irp2, em Yersinia pestis”. Deste laboratório, denominado formalmente de Plano Piloto de Peste do Brasil em Exu, saíram resultados importantes de microbiologia que contribuíram para que o Brasil se tornasse autossuficiente no diagnóstico da peste além de ajudar o estado de Pernambuco a armazenar uma das maiores coleções de cepas da Yersinia pestis do mundo, com cerca de mil exemplares. Em 12 de maio de 1978, o prefeito municipal de Exu, o Zito Alencar, que havia assassinado, três décadas antes, uma liderança política vinculada à família Sampaio, foi assassinado por pistoleiros, quando se cogitou uma intervenção federal no município. No final da década de 1970, o município de Exu foi cenário das gravações de um documentário de curta-metragem intitulado: “Exu, Uma Tragédia Sertaneja”, dirigido por Eduardo Coutinho, que buscou retratar os conflitos de poder local entre as famílias Sampaio/Saraiva e a família Alencar, sendo lançado em janeiro de 1979.

Programa levado “ao ar”, do ponto de vista comunicativo, em 16 de janeiro de 1979 retratou a briga das famílias Sampaio e Alencar, na cidade pernambucana de Exu, que se arrastava desde 1949 com mortes violentas de lado a lado. Exibido como um Globo Repórter Documento, com direção de Eduardo Coutinho, contou com depoimentos do cantor e compositor Luiz Gonzaga, natural de Exu, e de membros das duas famílias. Uma intervenção federal foi sugerida para dar fim ao conflito. O espaço territorial municipal de Exu se encontra situado na parte pernambucana da Chapada do Araripe, estando nas proximidades do município cearense de Crato. O município de Exu possui 31 mil habitantes, sendo que mais da metade da população exuense mora na zona rural do território. A economia local está baseada per se pela agricultura e pecuária. Um dos principais relatos que existem em torno da infância de Bárbara de Alencar é que ela foi “uma sobrevivente de um ataque de indígenas à casa de sua família, que foi incendiada por eles”. Diante de um acontecimento que gerou preocupação devido a sua gravidade, a sobrevivência de Bárbara, mediante sua fuga, promove a percepção sobre a pessoa de que desde pequena já tinha em si, o ideário de uma mulher forte e resistente. Acerca do início da vida adulta, a partir do texto Independência do Brasil, as mulheres estavam lá. Especificamente no capítulo dedicado a Bárbara de Alencar, e sabemos que ela mais uma vez demonstra sua força social e opinião “ao escolher se casar com um homem de sua preferência”. Isto é, ainda que este não agradasse seus pais, sendo um homem 30 anos mais velho do que ela, ainda mais que, diante de sua afiada opinião e empoderamento, em época em que quase não se promovia o empoderamento feminino, ela não abaixava a cabeça, cabendo-lhe hic et nunc a fama de “mulher-macho”.

Aos vinte e três anos, seu pai, José Martiniano Pereira de Alencar (1794-1860), estudou no Seminário de Olinda, onde presenciou a Revolução de 1817; sendo preso e injuriado, aportou à Bahia para ser julgado. Passados três anos, tendo sido destruídos os documentos relativos à rebelião do Crato impossibilitando o julgamento, José Martiniano Pereira de Alencar, anistiado, retornou para o Ceará. Teve recepção gloriosa. E, procedido o pleito para as Cortes de Lisboa, foi eleito suplente na representação do Ceará. Tomou posse em 10 de maio de 1822, devido à ausência de um dos eleitos. Após breve passagem por Lisboa, José Martiniano Pereira de Alencar retornou ao Brasil eleito deputado pelo Ceará à Constituinte. Dissolvida a Constituinte em 12 de novembro, regressou ao Norte para concluir os estudos no famoso Seminário de Olinda. Novamente preso acusado de participação política no movimento organizado da Confederação do Equador, isto é, um movimento tipicamente revolucionário de caráter pari passu republicano e separatista que eclodiu formado no dia 2 de julho de 1824, em Pernambuco, alastrando-se para províncias do Nordeste do Brasil. Contou com a absolvição em sentença confirmada por Dom Pedro I. Em plena liberdade, inocente e livre de culpa, José Martiniano Pereira de Alencar vestiu a batina de sacerdote.   

Entretanto, a fama de multifacetada matriarca de Bárbara de Alencar pode ser relacionada ao progresso social de amadurecimento intelectual e, particularmente, de seu comportamento consciente durante o casamento não ter sido nada daquilo que a sociedade esperava de uma mulher submissa, pois criou seus cinco filhos, cuidou de seu pai doente, enquanto administrava o engenho de cachaça e rapadura da família. Tratando-se de uma comerciante nata, também ingressou no empreendimento de tachos, embora o marido fosse contrário ao seu investimento econômico. Como fora mencionado Bárbara de Alencar é uma das principais figuras nas lutas em prol da Independência do Brasil. Ipso facto, é aos 32 anos que ela inicia sua caminhada rumo à participação politicamente ativa. Quem apresenta o mundo dos pensamentos liberais em que promove o contato de Bárbara com François-Marie Arouet, reconhecido como escritor Voltaire, e sobretudo, por ser historiador e filósofo iluminista francês, famoso por sua sagacidade e suas críticas ao cristianismo, especialmente à Igreja Católica Romana e à escravidão e, claro, com a literatura de Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau, é Manoel de Arruda Câmara (1752-1810), um cientista, médico e religioso brasileiro. Notabilizou-se como um dos pensadores naturalistas do fim do século XVIII. Arruda Câmara foi um dos fundadores da primeira loja maçônica do Brasil: o Areópago, em Itambé, Belo Horizonte.

Em 1809, Bárbara de Alencar ficou viúva assumindo definitivamente o comando da família que na prática era chefiada por ela, porém por convenções até a morte do marido havia o reconhecimento que ele ocupava esse papel. É no ano de 1810 que Bárbara recebe o título de heroína já por sua atuação antimonárquica mesmo antes da revolução eclodir, quem destina este título a ela é seu amigo e parceiro de revolução, Manoel Arruda de Câmara. É interessante mencionar que os filhos de Bárbara também recebem influência direta dos pensamentos liberais. No Sítio do Alagadiço Novo, Freguesia de Messejana, no Ceará, que fundara para sobreviver, recebeu a família dispersa após a derrota da Confederação. Figura mais importante de seu clã, José Martiniano Pereira de Alencar acolheu permissão do governador episcopal de Pernambuco, Dom Tomás de Noronha, para exercer o sacerdócio, ressalvando, que não poderia confessar “mulher alguma, que não for enferma ou menor de dez anos, sem ser em confessionário, e com grade interposta entre si e a Penitente”. Nesse período contraiu amizade ilícita e particularmente com Dona Ana Josefina de Alencar (1796-1887), prima em primeiro grau, a quem se uniria pelo restante da própria vida; mulher amável a quem Alencar se refere principalmente por sua autobiografia: “D. Ana compensava com carinho e bondade qualquer severidade de seu companheiro e primo-Senador”.

O contexto político do país no qual nascera José Alencar era de disputas políticas regionalistas. Sete anos antes do seu nascimento, em 1822, D. Pedro I havia proclamado a Independência do Brasil e tornou-se imperador. Dois anos após o seu nascimento, em 1831, o monarca, cedendo a pressões internas e externas, abdicaria em favor do filho e retornaria para Portugal. Foi nesse cenário político conturbado que o jovem escritor cresceu. Com nove anos de idade efetuou penosa viagem do Ceará à Bahia, atravessando a seca de Pernambuco. O intuito da família Alencar era estabelecer-se no Rio de Janeiro. Tão marcante foi a viagem para Alencar que ele mesmo afirmou ter tirado desta experiência “a inspiração” para uma de suas obras mais aclamadas: O Guarani. Chegando ao Rio de Janeiro, com onze anos de idade, foi matriculado no Colégio de Instrução Elementar, dirigido por Januário Matheus Ferreira, educador da antiga escola. Neste colégio José de Alencar completou a educação primária. E a este colégio, com todas as suas experiências, dedica o segundo capítulo do opúsculo notas metodológicas intituladas: “Como e porque sou Romancista”, rendendo palavras de gratidão ao antigo professor e à instituição. Aos treze anos Alencar deslocou-se para São Paulo, para terminar a formação secundária, com intuito de ingressar na Faculdade de Direito, cuja matrícula realizou em 1846, com dezessete anos. Mas as viagens, as projeções de matrículas e o curso de Direito não excluíam as leituras adicionais de Honoré de Balzac, notável por suas agudas observações psicológicas, Alexandre Dumas, escreveu os livros: Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, clássicos do romance “de capa e espada” de grande aceitação popular; Victor Hugo, ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables (1862) e de Notre-Dame de Paris (1831), entre diversas obras clássicas de fama e renome; Assis Chateaubriand, magnata das comunicações no Brasil entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1960, dono dos Diários Associados, que representou per se o maior conglomerado de mídia da América Latina, que em seu auge contou com mais de cem jornais, emissoras de rádio e televisão, revistas e agência telegráfica, para ficarmos nesses exemplos, são escritores da literatura universal ambientados em seu tempo histórico e social.

O século XIX ficou reconhecido como sendo a Era dos Nacionalismos. Segundo Schwarcz e Starling (2018: 283 e ss.) a criação de uma história continuada e de heróis ancestrais; a imposição de uma língua de monumentos culturais; a seleção de lugares, paisagens e povos originais; a eleição de representações oficiais (dentre símbolos como hinos e bandeiras) e identificações pitorescas (costumes, especialidades culinárias ou animais emblemáticos) faziam parte de um modelo que se divulgou largamente nesse contexto. O romantismo previa justamente a exaltação do que havia de mais particular a cada nação e, por isso, além das características comuns, a cada país coube sua dose de particularidade. No caso brasileiro existem diferenças dignas de registro. Em geral o nacionalismo romântico se expressou em regiões relativamente pequenas e bastante homogêneas do ponto de vista linguístico e cultural. Procurar por homogeneidades num Estado de proporções continentais e caracterizado por uma população tão heterogênea era tarefa complicada. A representação do país como indígena (e masculino) juntava as concepções de um Brasil americano, mas também monárquico e português. Uma mistura da cultura da velha metrópole com a identificação com a América, que nos faz independentes. Mas, se em outros países o romantismo teve um caráter contestador, ele foi majoritariamente palaciano e financiado pela monarquia, o que condicionou o seu perfil conservador. Para entender a centralidade da monarquia, basta avaliar a importância das instituições e dos intelectuais que cercaram o soberano.

   Mas, se cabia à historiografia formar um novo panteão de heróis nacionais, foi na área de literatura que o nacionalismo ganhou maior visibilidade. Delineavam-se, então, as bases de uma verdadeira política literária. Foi justamente nesse contexto que Gonçalves de Magalhães publicou o poema épico A Confederação dos Tamoios (1856), quer era aguardado como o documento de demonstração de “validade nacional do tema indígena”. Retornando ao modelo de “bom selvagem”, Magalhães construía o que deveria ser o maior épico nacional, centrado na figura dos heróis indígenas, com seus atos de bravura e gestos de sacrifício. Tentando fundir a “excentricidade romântica com a pesquisa histórica”, esse autor acreditava ser possível superar as especificidades regionais para chegar a um mito nacional de fundação. Inspirada em artigo de Baltasar da Silva Lisboa, publicada em 1834, a obra narra a saga danação Tamoio, que luta pela liberdade contra os agressores portugueses – caracterizados como selvagens e aventureiros. Porém, as oposições não se limitam aos pares descritos. Enquanto os brancos podem se divididos entre portugueses brutos e colonizadores e brancos religiosos (padres jesuítas articulados com o Império). Nessa batalha de dualidades, o par enaltecido que lembra a pureza: os portugueses do futuro Império (que personificam a unidade nacional e a fé cristã) e os indígenas não conspurcados pela civilização.

Neste aspecto, é num momento significativo da trama que Tibiriça, índio controverso da tribo Guaianá, tenta convencer seu sobrinho rebelado, Jagoanharo, acerca das “vantagens do mundo europeu”. É assim que a literatura vai cedendo espaço ao discurso oficial, sendo o indígena transformado num modelo nobre, mesmo que como o grande perdedor nessa gênese do Império. Como um exemplo a ser seguido, o indígena surgia como herói e vítima de um processo que o atropelava. Nascido livre, ele é morto em liberdade e para a liberdade. Como um “fardo da civilização” o Império se impunha por meio da representação do indígena, mas, também, sobre o indígena: sua grande vítima. Além de Magalhães, depois visconde de Araguaia, Gonçalves Dias mereceria a atenção do Imperador. Considerado o grande poeta romântico brasileiro, trouxe o indianismo para a métrica. Partindo de documentos da história e da sua própria etnografia, Gonçalves Dias cria uma poética dedicada à formação do país. Seu poema mais famoso, I-Juca-Pirama – que em Tupi quer dizer “o que há de ser morto” -, retoma o tema do “canibalismo heroico” e da bravura do herói guerreiro. Dias reconta a história de um guerreiro Tupi que, feito prisioneiro pelos Timbira, espera por sua morte, mas teme pela morte do pai – velho, fraco e cego -, a quem serve de guia. Ambos são capturados pelos Timbira, e o filho chora perante o perigo. Diante do choro do jovem, os Timbira soltam-nos, pois, segundo os rituais antropofágicos, não se devora a carne. Já o velho lamenta a fraqueza do filho e o maldiz. É então que o jovem guerreiro resolve enfrentar sozinho os Timbira: ganha assim direito ao sacrifício da morte e à reconciliação com o pai. O indígena, para Schwarcz e Starling (2017: 287) – a despeito de tantas perdas – surgia, pois, como um exemplo idealizado de pureza, um modelo de honra a ser seguido. Entre a literatura e a realidade concretamente, a ficção e a não ficção, os limites históricos e sociológicos pareciam tênues. A história estava a serviço da literatura mítica e com ela, selecionava as origens sociais para a nova nação.           

José de Alencar como literato aparentemente não se apartou do tema neválgico da escravidão. Representou, com diversas e diferentes classificações, o escravo no Brasil, com suas especificidades. Neste sentido, sua produção marcante é a peça Mãe (1860), inspirada em seu contato com Caetano Alberto Soares, que, reiteradas vezes, teria indicado a necessidade de uma proteção legal para a mãe escrava que tivesse filho com o senhor, de maneira que ficasse livre quando isso acontecesse. Na obra, José de Alencar dramaticamente explora o protagonismo da escrava em seu sofrimento condicional e sua veia materna, também explorando o suicídio em um sentido metafórico, que abrangia a esperança de liberdade. Entre outubro de 1855 e julho de 1858, José de Alencar ocupou o cargo de redator-chefe do jornal Diário do Rio de Janeiro. Respeitaram-se algumas conveniências da sociedade, para se tirar partido somente do sentimento da maternidade, na mesma proporção em que gerou polêmicas como a travada comparativamente com a interpretação liberal de ocasião de Joaquim Nabuco (1849-1910), um defensor restrito da Abolição. A polêmica, no meio literário configurou-se como uma das maiores. Protagonizada por José de Alencar e o então jovem Joaquim Nabuco - que acabara de retornar de uma temporada na França (1873-1874), imbuído de mocidade e um seguro senso ideológico crítico. 

O jovem Nabuco não poupou críticas ao célebre autor de Iracema (1865). Os autores travaram um longo debate escrito, publicado em formato de folhetins no Jornal O Globo. Esta discussão foi catalogada e organizada quase um século depois pelo escritor e crítico literário Afrânio Coutinho (1911-2000), que em suas palavras afirma que Nabuco estava “encharcado de francesismo intelectual”. Ainda, segundo Coutinho, era uma prática comum no meio literário expressivo na década de 1870 que escritores mais novos como Nabuco, para afirmarem-se, atacassem duramente grandes escritores já renomados e consolidados. Coube a Joaquim Nabuco dar início às provocações, com críticas de um modo geral aos trabalhos de José de Alencar: do estilo de narrativa aos diálogos dos seus personagens. Acusando o autor cearense de promover um “nacionalismo hipócrita e problemático”, avaliou, sobretudo, a peça Mãe (1860) e O Demônio Familiar (1857). Nabuco alegou que Alencar quis ser o “criador do teatro brasileiro”, cujo tema principal seria a questão da escravidão. Entretanto, ao nível ideológico, Nabuco estende sua opinião para além do campo literário, afirmando que Alencar enquanto político, sustentou discursos em defesa da escravidão. Alencar se defende, explicando que tanto em seus discursos quanto em seus escritos, jamais defendeu a escravidão, mas a encarou enquanto dispositivo legitimado por lei.

Portanto, demonstrou-se favorável à sua “extinção espontânea”, gradual e natural, algo que resultasse da “revolução dos costumes”. Respondendo às críticas feitas à peça Mãe, argumenta em primeiro lugar que a peça não poderia ser a fundadora do teatro brasileiro, pois outras obras a antecederam, e tampouco sua característica seria uma defesa da escravidão, sendo esta apenas um elemento do drama apresentado na peça teatral. Seguiu-se a discussão até o ponto em que Joaquim Nabuco passa a criticar não somente os aspectos literários e narrativos, imputando sobre José de Alencar a “ausência de ideias políticas concretas, a não ser quando se tratava de defender a escravidão”. A discussão se encerra com a palavra final de Alencar, em um manuscrito nunca publicado e exposto pela primeira vez a partir de Afrânio Coutinho. No manuscrito intitulado: “Sem Resposta”, Alencar acusa Nabuco de ter a discussão partidária em detrimento da crítica literária, e segue dizendo que não iria acompanhá-lo nesta seara, uma vez que questões políticas discutiria com seu pai, José Thomas Nabuco de Araújo (1785-1850), outrora ministro e senador do Império. Anos após esta polêmica, Joaquim Nabuco, amadurecido, publicou seu livro de memórias Minha Formação. Nele relembra o erro na forma como tratou Alencar, reconhecendo a grandeza do escritor cearense. Assumindo que: “[quando] fui colaborador do Globo e travei com José de Alencar uma polêmica, em que receio ter tratado com a presunção da mocidade o grande escritor (digo receio, porque não tornei a ler aqueles folhetins e não me recordo até onde foi minha crítica, se ela ofendeu o que há de profundo, nacional, em Alencar: o seu brasileirismo)”.

Após dois anos aparentemente de “contemplação e recolhimento”, conforme descreve em autobiografia, José de Alencar e outros colegas fundaram a revista “Ensaios Literários” que rendeu primícias escritor nas primeiras elaborações literárias e arrojos imaginativos. Quer dizer, publicou poemas inspirados em Lamartine e Byron, artigos de cunho político e literário com títulos em geral bem-humorados, além de ter estruturado seu primeiro romance histórico e social, intitulado Os Contrabandistas (1847), cujos originais, em maior parte, foram queimados para que um cachimbo fosse aceso, e o restante, por iniciativa de Josué Montello (1917-2006), acham-se guardado no arquivo do Museu Histórico Nacional. Em 1848, ao terminar o segundo ano na Faculdade de Direito em São Paulo, regressou ao Nordeste, para cursar o terceiro ano na Faculdade de Olinda. Assim passou dois meses em sua terra natal. Formou-se, portanto, em 1850. Aos seus dias passados em Olinda, no curso da Faculdade, atribuem alguns biógrafos os esboços iniciais do que viriam a ser alguns romances urbanos e toda a trilogia indianista. Enfermo, em 1849 retornou a São Paulo. Ali mesmo concluiu a Faculdade. Diplomado, em 1851 estabeleceu-se na cidade do Rio de Janeiro, onde trabalhando começou a exercer a função de advogado, trabalhando no escritório do Dr. Caetano Alberto, tido como afamado advogado da Corte Imperial, coautor do Código Processual de 1850.    

Vale lembrar que em 1865 era publicado o romance que empolgou o país e revolucionou a temática e a linguagem da literatura que se praticava no Brasil, apegada aos cânones de Portugal. Iracema, de José de Alencar, não só trazia os temas e paisagens caros ao gênero como em seu nome (e invertendo as letras) incorporava o anagrama de “América”. Nesse longo poema escrito sob a forma de romance, a bela “virgem dos lábios de mel” aparece retratada me meio a um passado mitificado e perdido no século XVII. A obra representa o nascimento do Brasil, diante, mais uma vez, do sacrifício indígena. O casal central – Martim e Iracema – simboliza os primeiros habitantes do país, e de sua união resultará uma predestinada raça. Em determinado momento, Iracema morre para que seu rebento Moacir (o “filho do sofrimento”) viva. No livro destaca-se a mestiçagem: língua híbrida, religião sincrética, nação de mulatos e mamelucos. Mais uma vez distantes do Brasil do século XIX, tão marcado pela escravidão, heróis brancos e indígenas convivem em ambiente inóspito e se comportam como nobres. Se não nos títulos, ao menos nos gestos e ações. As experiências de Alencar com o indigenismo não haviam começado, porém, com Iracema, pois entre janeiro e abril de 1857, O Guarani ganhava a forma de livro no mesmo ano. O romance se passa também no século XVII, e seu principal protagonista é Peri, par romântico para a loura e alva Ceci.

No final do romance o índio tenta salvar a “virgem loura”. Ambos terminam juntos, anunciando um amor quase platônico, levados pela torrente de um rio: justamente o rio, metáfora da ideia de purificação. Em 1870, estrearia com êxito no Scala de Milão a ópera composta por Antônio Carlos Gomes (1836-96) chamada Il Guarany, cujo libreto se inspirava na obra de Alencar. Tendo seu trabalho também financiado por d. Pedro II, Carlos Gomes combinava as convenções europeias com aspectos considerados mais originais na cultura local. Compunha-se música romântica, mas de base indígena, como a afirmar uma identidade ao mesmo tempo universal e particular. Esses e outros exemplos mostram a especificidade de como no Brasil o romantismo não foi apenas um projeto estético, e não é um truísmo, mas antes um movimento cultural e político, profundamente ligado ao nacionalismo, ao desejo de independência cultural e à monarquia. Atacados de frente por historiadores como F. A. de Varnhagen (1816-78), que os chamava de “patriotas caboclos”, os indigenistas brasileiros tiveram sucesso na “imposição da representação romântica do indígena como símbolo nacional”. É significativa, também, a resposta de Magalhães ao grande historiador do Império.  Acusado de ser fantasioso, é desta forma que reage o protegido do Imperador: - “A Pátria é uma ideia, representada pela terra em que nascemos”. Fazendo da literatura um exercício de patriotismo, esse gênero ganharia lugar oficialmente nos planos de agenciamento do Estado nacional. Imagem ideal, o indígena romântico encarnava não só o mais autêntico como o mais nobre intentado construir um passado honroso.   

Comparativamente, e não por acaso, por oposição aos africanos, que lembravam a mercatilista instituição escravocrata, o indígena permitia selecionar uma origem mítica e estetizada. A natureza brasileira também cumpria função paralela: se não tínhamos castelos medievais ou igrejas renascentistas, possuíamos o maior dos rios, a mais bela vegetação. Entre palmeiras, abacaxis e outras frutas tropicais, aparecia representado o monarca, o Estado e a nação, destacando-se a exuberância de uma natureza sem igual. Também na Academia Imperial de Belas Artes – que, embora tenha sido criada em 1826, só começou a funcionar regularmente durante reinado de d. Pedro II -, a vertente romântica proliferou e adaptou-se ao projeto que se implantava em outras áreas. No plano pictórico seria responsável por uma transformação radical: o Barroco é relegado ao segundo plano e o neoclassicismo passa a imperar, sobretudo na corte e em algumas capitais. De 1845 em diante, d. Pedro custeou o Prêmio Viagem, aberto anualmente, e que financiava um pensionato no exterior durante três anos. O monarca também comissionou artistas para realizarem retratos oficiais, que eram distribuídos pelo país ou levados nas viagens que ele realizaria, primeiro dentro e depois fora do Brasil. Desses artistas Simplício Rodrigues de Sá (1785-1839) e Félix Émile Taunay (1795-1881) – ainda foram professores do Imperador e de suas irmãs ou se tornaram pintores oficiais reconhecidamente da Corte. Também na Academia, a exaltação do exótico, da natureza e do indígena romântico tornou-se uma marca na produção do social.

É o caso das obras icônicas, segundo Schwarcz e Starling (2017: 289) de Victor Meirelles de Lima em A Primeira Missa no Brasil (1860) e Moema (1866), ou de José Maria Medeiros com Iracema (1881), que fazem parte do ciclo indigenista, o qual chega à pintura na década de 1860. Nessas obras, os indígenas passivos e idealizados compõem a cena sem alterá-la: são quase um elemento colado à paisagem tropical. Nas amplas telas, a colonização perde seu caráter invasivo, para mostrar-se como um encontro harmonioso e consensual. O romantismo brasileiro alcançou, portanto, grande penetração, tendo o indígena como símbolo social. Os índios do romantismo nunca foram tão bancos, e o monarca e a cultura brasileira se tornaram mais e mais tropicais. Melhor dizendo, diante da rejeição ao negro escravo, e mesmo aos primeiros colonizadores, o indígena restava como “o legítimo representante da nação. Puro, honesto e corajoso, atuava como rei no exuberante cenário da selva brasileira e em total harmonia com ela”. Viajantes, cronistas, historiadores, nomes muito citados como Gabriel Soares de Sousa, Rocha Pita, Manoel da Nóbrega, saem dos compêndios e entram nas notas explicativas qua acompanham os textos, os quais também servem de base para a pintura. História e mito caminham lado a lado, enquanto a imaginação cede espaço ao didatismo: o índio nobre teria existido num passado remoto, e era ele, assim mitificado, que inspirava dramas românticos produzidos na corte, quadros grandiosos ambientados nos trópicos, as belas óperas que apresentavam, para o exterior, um Império tão exótico quanto nobre. O indígena romântico permitiu à jovem nação fazer as pazes com um passado honroso, anúncio de um futuro promissor. 

A história social da arte tem como representação a atividade humana realizada com o propósito estético ou comunicativo, enquanto expressão de ideias, emoções ou formas de interpretar o mundo. Em sua historicidade as artes visuais têm sido classificadas de várias formas, desde a distinção medieval entre as artes liberais e as artes mecânicas, à distinção moderna entre belas artes e artes aplicadas, ou às várias definições contemporâneas, que definem arte como a manifestação individual e coletiva da criatividade humana. O alargamento da lista das principais artes durante o século XX definiu-as essencialmente em arquitetura, escultura, música, dança, pintura, poesia, incluindo o teatro e a narrativa literária, o cinema e a fotografia. Quando considerada a sobreposição de termos entre as chamadas artes plásticas e as artes visuais, incluem-se também do ponto de vista tecnológico o design e as artes gráficas. As artes gráficas, também reconhecida socialmente como design, é uma ciência, que tem como objetivo, a criação de soluções que são utilizadas para servir de forma funcional o ser humano. A arte e o design estão presentes na história desde originalmente a identificação etnográfica da pré-história, através de desenhos e sinais que simbolizavam objetos e acontecimentos relevantes no âmbito da memória individual e coletiva. Todavia, enquanto a arte propõe uma interpretação subjetiva de suas obras, o design comparativamente propõe algo de sentido objetivo, onde as pessoas serão capazes de entender e podem vir a comprar o produto e/ou serviço apresentado, ou aderindo à uma ideia, no caso de uma propaganda. Em que pese a influência de fato do esteticismo, cujo corolário apareceria no início do século XX na forma do abstracionismo, uma apoteose do individualismo artístico, houve correntes de interpretação que o combateram. 

Hippolyte Taine (1828-1893) elaborou uma teoria de que a arte tem um fundamento sociológico, aplicando-lhe um determinismo baseado na raça, no contexto social de seu tempo. O Método consistia em fazer história e compreender o homem à luz de três fatores determinantes: meio ambiente, raça e momento histórico. Jean-Marie Guyau (1854-1888), um filósofo e poeta francês, por vezes considerado como o Nietzsche francês, mas que apresentou uma perspectiva evolucionista, afirmando que a arte está na vida e evolui com ela, e assim como a vida se organiza em sociedades, a arte deve ser um reflexo da sociedade que a produz. A estética sociológica teve associações com os movimentos de direita, tanto quanto de esquerda, especialmente o chamado “socialismo utópico”, defendendo para a arte o retorno a uma função social, contribuindo para o desenvolvimento das sociedades e da fraternidade humana, como se percebe nos trabalhos de Saint-Simon, Leon Tolstoi e Pierre Joseph Proudhon, entre outros. John Ruskin e William Morris combateram a banalização da arte causada pelo esteticismo e pela assunção do industrialismo, e defenderam a volta ao sistema corporativo e artesanal. Na primeira metade do século XX conceitos inovadores foram introduzidos pela Escola de Frankfurt, destacando-se Benjamin e Adorno, estudando os efeitos perversos da industrialização, da tecnologia e da cultura de massa sobre a arte. 

O filósofo marxista Walter Benjamin analisou a perda da aura do objeto artístico na sociedade contemporânea, em confronto com a chamada indústria cultural e Theodor Adorno que a arte não é um mero impacto da sociedade que a produz, pois, a arte expressa o que ainda não existe e indica as condições e possibilidades de transformação e transcendência. O representante do pragmatismo norte-americano, John Dewey (1859-1952) definiu a arte como “a culminação da natureza”, sustentando que a base da estética é a experiência sensorial. A atividade artística seria uma consequência da atividade natural do ser humano em seu trabalho, cuja forma organizativa depende dos condicionamentos sociais e as formas de apropriação ambientais em que se desenvolve.  A primeira escola historiográfica de grande relevância foi o formalismo, que defendia o estudo da arte a partir do estilo, aplicando uma metodologia evolucionista que defendia a arte uma autonomia longe de qualquer consideração filosófica, rejeitando a estética romântica e o ideal metafísico hegeliano, e se aproximando do neokantismo. Seu primeiro teórico foi Heinrich Wölfflin (1864-1945), considerado o pai da moderna História da arte. Ele aplicou à arte critérios científicos, como o estudo psicológico ou o método de análise comparativo quando definia os estilos por suas diferenças estruturais inerentes aos mesmos, como argumentou em sua obra: Conceitos fundamentais da História da Arte (1915). Wölfflin como homem de seu tempo, não atribuiu importância às biografias dos artistas, valorizando o lado ideológico de nacionalidade, que interpela os indivíduos constituindo em sujeitos e per se seu projeto de engajamento de escolas artísticas e estilos nacionais. As teorias de Wölfflin foram utilizadas pela Escola de Viena, por autores como Alöis Riegl, Max Dvořák, Hans Sedlmayr e Otto Pächt.

Talvez o maior legado de Riegl para a historiografia, segundo Karl Ludwig von Bertalanffy, um biólogo austríaco, seria seu ponto de vista relativista que ecoou epistemologicamente no século XX. O conceito de uma escola vienense da história da arte foi empregado pela primeira vez pelo crítico de arte e colecionador tcheco Vincenc Kramar em 1910; a seguir, em artigos publicados por Otto Benesch em 1920 e de Julius von Schlosser em 1934. Alöis Riegl integrou a segunda geração da chamada “Escola de Viena”, que visava o rigor científico na análise artística, distante da valoração estética ou do julgamento de gosto. A partir do rigor metódico da Escola, Alöis Riegl desenvolveria sua abordagem “formalista da arte”, na qual prepondera o desenvolvimento interno da arte através das formas, em considerável nível de independência relacional dos fatores externos. Tal autonomia das formas foi um passo fundamental para a independência no plano abstrato da história da arte, ao livrar a obra de arte da determinação de outros campos históricos. A Escola de Viena de história da arte compreende um conjunto de pensadores que entendem a história da arte como disciplina, sem a interferência no âmbito da história da filosofia, do esteticismo kantiano e do método dialético da história de apropriação do real inspirado na fenomenologia de Friedrich Hegel. 

 Alöis Riegl foi um historiador de arte austríaco, chave como membro da Wiener Schule der Kunstgeschichte e figura fundamental nos métodos modernos da história da arte. O pai de Riegl era um burocrata na administração da Imperial Tobacco na Áustria. Mudou-se com sua família para Bohemia e Galícia, onde o jovem Riegl assistiu um Ginásio en idioma polaco, pero dada a morte de seu padre en 1873, sua família teve que regressar a Linz. Riegl se matriculou na Universidad de Viena, mas evitou os advogados que seu pai queria para influenciá-lo em lugar de dedicar-se ao estudo de filosofia e história sob a orientação de Franz Brentano, Alexius Meinong, Robert Zimmermann e Max Büdinger, de quem a propedêutica se influenciou e apreendeu a visão positivista do método histórico.  Em 1886 começou a formação curatorial no Museu Austríaco de Arte e da Indústria, onde trabalhou durante dez anos como conservador têxtil. Os primeiros livros de Riegl, Antigos Tapetes Orientais (“Altorientalische Teppiche”) e Questões de Estilo (“Stilfragen: Grundlegungen zu einer Geschichte der Ornamentik”), publicados em 1891-1893, respectivamente, derivam de seu trabalho real de observação empírica disciplinarmente no âmbito do museu. Nestes primeiros livros era evidente seu interesse por uma teoria e uma visão interdisciplinar para compreensão da história da arte.

   Continuou a dedicar seu interesse pela arte de objetos comuns que no momento eram considerados secundariamente artes menores na obra: Arte Popular, Arrumação e Indústria Doméstica, em 1894. Entre 1894 e 1895 começou suas conferencias sobre a arte barroca, um período ainda amplamente visto como decadente, inaugurando junto com o trabalho de Cornelius Gurlitt (1820-1921), colega de classe de Carl Reinecke (1824-1910), cujo pai era chefe do Conservatório de Leipzig e que constituiu o centro da polêmica das obras supostamente saqueadas pelo predomínio da guerra europeia, a revisão deste período estilístico. Não obstante, foi nas classes de Moritz Thausing que ele iniciou sua carreira acadêmica como estudante de literatura e história alemã. Em 1862, ele foi nomeado assistente de biblioteca na Akademie der bildenden Künste, onde também deu palestras gerais sobre história mundial e cultural. Em 1864, Rudolf Eitelberger garantiu uma posição para ele com a coleção impressa da Albertina, que ele dirigia a partir de 1868, embora tenha recebido o título formal de diretor apenas em 1876, mas foi onde Alöis Riegl aprendeu um método de análise científico. Quer dizer, ele uniu-se aos membros do Museu Austríaco de Artes Decorativas (“Institut für Österreichische Geschichtsforchung”) e com Habilitação em 1889: Die Mittelalterliche Kalenderillustration na qual examinou a tradição helenística naqueles manuscritos.

 A história da arte passou a ser interpretada de acordo “com seu desenvolvimento como linhas de tendência”, em que há uma evolução natural e contínua através dos estilos, fundados de acordo com as relações próprias de cada arte com os seus métodos e seu funcionamento, e não mais com a tentativa de ilustração de uma natureza ou contexto próximo do artista. Decorre daí o conceito de vontade da arte, forjado por Alöis Riegl, e que sintetiza exatamente essa estrutura constante linear que apresenta a evolução progressiva dos estilos estéticos. Comparativamente, tem-se como exemplo A História da Arte, de autoria de Ernst Hans Josef Gombrich (1909-2001), um dos mais célebres historiadores da arte do século XX, especialmente por seus estudos sobre o renascimento. Mas não há nenhuma dedução segundo a qual as mudanças de paradigmas históricos na arte são decorrentes de uma nova mudança de mentalidade social, ou política, tampouco de uma “genialidade” renascentista que se sobressai a tudo o que foi feito anteriormente à sua historicidade. Nos “Retratos de Grupo Holandeses” de 1902, a análise centra-se nos retratos cujos sujeitos olham o público. Desenvolveu uma nova teoria para satisfazer seu tema, postulando a ideia da “atenção para descrever a relação entre observador e objeto”. É neste sentido que nas décadas passadas, em se tratando de patrimônio cultural, a leitura sobre a reflexão de Riegl revela a questão epistemológica em relação a uma obra em especial: O Culto Moderno dos Monumentos (1984). 

A projeção do autor no campo da história da arte, como vimos, precede a sua importância na disciplina da preservação. A partir de Friedrich Hegel, alguns estudiosos conceberam a arte como uma atividade própria da humanidade, postulando que o homem era naturalmente produtor de arte. Nesta concepção fenomenológica são outros problemas históricos e epistemológicos que enredam a História da arte. Foi novamente posto em questão o sistema de valores elaborado durante vários séculos. Foi-se obrigado a tomar em consideração o ornamento como uma das formas importantes da arte, uma vez que algumas sociedades não conheceram outra forma. No fim do século passado, Alöis Riegl teve a proeminência de explorar as consequências dessa ideia, de negar, sobretudo em teoria, qualquer sistema normativo dos valores, de denunciar a noção de decadência, em relação à segregação entre a grande arte e as artes mal ditas “menores”. Não por acaso a interpretação marxista de Walter Benjamin de valor de cultor e valor de exposiçaõ compreende facilmente a interpretação de Alöis Riegl. 

A primeira evidência estética de que já havia a compreensão de que as transformações em curso pela “reprodutibilidade técnica” da humanidade iriam alterar a sua correspondente forma de percepção e, desse modo, condicionaria uma teoria com novas explicações. Para compreender mais profundamente o movimento dialético do real, do ângulo de Benjamin, era preciso participar desse movimento, fazendo-o. E o desafio de fazer a história, de romper a má continuidade constituída pela tirania do “sempre-igual”, é um desafio tanto mais terrível quanto mais insidiosa é a ação corruptora da ideologia sobre a nossa consciência. Walter Benjamin tinha um ponto de vista conspícuo e original ao papel do conceito no processo de conhecimento. Quer dizer, seu conceito era muito incomum, não era de fácil compreensão. Para ele, o conceito deveria atuar como um mediador na relação entre as ideias abstratas e os fenômenos da empiria. A leitura da obra de Riegl per se teria dado um impulso decisivo à elaboração do conceito benjaminiano de aura. Deve-se considerar que há entre estes dois autores possibilidade de aproximação e distanciamento. Os valores determinados por Riegl não correspondem aos que foram desenvolvidos na interpretação de Benjamin. Muito menos os valores conceituais, em especial o valor de exposição, e mesmo aqueles que se referem a Riegl, com interesse destacado historicamente no valor de antiguidade.

 O trabalho do conhecimento nem sempre pode ser equilibrado e sereno. E por inúmeras razões. Ele depende de aventuras espirituais apaixonadas e apaixonantes, capazes de proporcionar “iluminações profanas”, capazes de romper a carapaça da ideologia, que de algum modo aprisiona a consciência a uma esmagadora supremacia da continuidade sobre a descontinuidade, na compreensão do movimento real. Os indivíduos isolados pela competição desenfreada em seu trabalho produtivista, nas cidades, não dispõem mais de condições para digerir suas experiências, permeadas à luz de uma sabedoria acumulada pela comunidade, como fez noutros tempos; são bombardeados por choques de ideias e opiniões espetaculares que precisam ser imediatamente assimilados. As velhas e boas narrativas que pressupunham um intercâmbio vivo, entre os membros da coletividade e sociedades científicas, são substituídas por uma miríade de informações que transmitem saber de escassíssima durabilidade, superficiais, fugazes, efêmeros. Nas condições reais de tempo/espaço os processos de comunicação e globalização aproveitam a reprodutibilidade técnica da ciência, da produção artística, estética e filosófica impondo-lhes critérios utilitários, imediatistas que resultam na sua banalização. A história não tem fim. A vida resplandece como um desafio no tempo-de-agora. Com a história, em geral partimos das urgências do presente. Para os perigos irradiados socialmente em que o tempo-de-agora está nos trazendo, precisamos estar atentos e fortes, iluminados para os sinais do passado, pelos rebeldes e preceptores que perceberam que a natureza ainda assim é mãe gentil.

Bibliografia Geral Consultada.

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