“Não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber”. Michel Foucault (2014: 31)
Keller
Dover (Hugh Jackman) leva uma vida feliz socialmente ao lado da esposa Grace (Maria Bello) e os filhos Ralph (Dylan
Minnette) e Anna (Erin Gerasimovich) na cidade de Boston, Estados Unidos da
América. Um dia, a família faz uma visita à casa de Franklin (Terrence Howard)
e Nancy Birch (Viola Davis), seus grandes amigos. Sem que eles percebam, a
pequena Anna e Joy (Kyla Drew Simmons), filha dos Birch, desaparecem. As famílias
apelam à polícia e logo o caso cai nas mãos do detetive Loki (Jake Gyllenhaal).
Enquanto a polícia busca várias pistas, a pressão aumenta sensivelmente. Sabendo que a vida
de sua filha está em jogo, Dover decide que ele não tem escolha a não ser
resolver o polêmico assunto com “suas próprias mãos”. Não demora muito para que
ele prenda Alex (Paul Dano), por 48 horas detido devido à ausência de provas
contumazes. Alex na verdade tem o “quociente de inteligência” (QI),
comparativamente, de uma criança de 10 anos e, por isso, a polícia não admita
envolvimento com o desaparecimento. Entretanto, Keller está convicto de que ele
“tem culpa no cartório” e resolve sequestrá-lo para arrancar a verdade. É um
filme norte-americano de 2013 dirigido por Denis Villeneuve, estrelado por Hugh
Jackman, Jake Gyllenhaal, Viola Davis, Maria Bello, Terrence Howard, Melissa
Leo e Paul Dano, entre outros.
O
enredo cinematográfico centra-se no rapto de duas garotas na Pensilvânia
e o resultado corporativo da busca para encontrá-las. No começo da história de
vida reconhecemos os Dover, a caminho da casa da família Birch para um jantar
de Ação de Graças em conjunto. Enquanto cada membro se juntava com seu
par da outra família, as duas mais novas, Anna (Erin Gerasimovich) e Joy
(Kyla-Drew), decidem voltar à casa dos Dover para buscar o apito de Anna, e as
duas, então, desaparecem misteriosamente. O pai de Anna, Keller (Hugh Jackman),
é um homem aparentemente com sintoma obsessivo/compulsivo pela dinâmica de
controle social. Ele é o tipo ideal de pessoa que estoca mantimentos e
equipamentos de primeiros socorros em seu porão, para que caso aconteça alguma
catástrofe, ele esteja sempre preparado para o acaso. É assim que ele cria os
filhos: dizendo para estarem sempre preparados para qualquer típica
adversidade. Então, quando a aleatoriedade atua em sua vida, Keller perde
completamente o conteúdo de sentido e passa a procurar a sua filha de forma
obsessiva e irrefreável, passando “por cima” da polícia. A frustração por não
ter previsto o que aconteceu toca em seu ponto mais fraco. No começo ele até
diz a seguinte frase: “rezo para que aconteça o melhor e me preparo para o
pior”, mas sabemos que nada no mundo o teria preparado para isso.
O
investigador para o caso é representado pelo detetive Loki, vivido
por Jake Gyllenhaal, um homem talvez solitário, mas disciplinado pelo trabalho –
tão bem estruturado que solucionou 100% dos casos em que atuou desde que
começou na carreira como investigador de polícia. Uma característica marcante
do detetive é a sua falta de fé, demonstrada sutilmente em sua primeira cena,
quando ele pede para a garçonete um biscoito da sorte. Inclusive, a origem do
nome Loki é de um Deus nórdico estrategista, que tem dificuldades nas relações
com os outros deuses. Qualquer semelhança com o personagem não é, por assim
dizer, mera coincidência. Loki tem um “tique nervoso” no olho muito marcante,
que é acentuado quando ele se vê encurralado e sem saber para qual lado deve
direcionar suas investigações. Na dramaturgia a relação estabelecida entre Loki
e Keller é geralmente conturbada, pois ambos são disciplinados e tentam,
cada um à sua maneira, conseguir respostas rápidas. Em que pese ambos
terem um traço da personalidade dinâmica parecida, um acaba se demonstrando ser
o completo oposto do outro, já que um deles é impulsivo e o outro é
extremamente centrado e frio calculista. As decisões tomadas por um deles acabam
por influenciar na jornada do outro, e, consequentemente, no
desfecho da história social. O curso que a investigação tomou foi o da teimosia de ambos, e assim reconhecemos nossos suspeitos.
Villeneuve nasceu em 3 de outubro de 1967 em Trois-Rivières, cidade localizada na Província de Quebec, no Canadá. Ele é o filho mais velho de Nicole Demers e Jean Villeneuve, e irmão do cineasta Martin Villeneuve. Denis estudou na Universidade do Quebec em Montreal. Ele é casado com a repórter cultural Tanya Lapointe e tem três filhos de um relacionamento anterior. Ele recebeu quatro vezes o Canadian Screen Award, anteriormente Genie Award de Melhor Direção, vencendo por Maelström em 2001, Polytechnique em 2009, Incendies em 2010 e Enemy em 2013. Os três primeiros desses filmes também ganharam o Canadian Screen Award de Melhor Filme, enquanto o último recebeu o prêmio de melhor filme canadense patrocinado pela empresa Toronto Film Critics Association. Internacionalmente, o cineasta é reconhecido por dirigir filmes aclamados pela crítica especializada, incluindo thrillers Prisoners (2013) e Sicario (2015), os filmes de ficção científica Arrival (2016) e Blade Runner 2049 (2017). Por seu trabalho em A Chegada, ele recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Diretor. Ele recebeu o prêmio de Diretor da Década pela Hollywood Critics Association em dezembro de 2019. Seu filme, Duna (2021), baseado no romance de mesmo nome de Frank Herbert, estreou no 78º Festival Internacional de Cinema de Veneza. Aclamado pela crítica e bilheterias internacionais, é seu filme de maior realização rendendo-lhe indicações ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme, com o próprio filme vencendo seis etapas principais com o Oscar na 94ª edição.
A rua é familiar da iconografia medieval e se anima na vida expressiva nas admiráveis vistas das pontes de Paris da Vida de São Denis, notável pregador converteu centenas de pessoas, num manuscrito do século XIII. Assim como nas cidades árabes de hoje, a rua era o lugar onde se praticavam os ofícios, a vida profissional, as conversas, os espetáculos e os jogos lúdicos. Fora da vida privada, por muito tempo ignorada pelos artistas, tudo se passava de fato na rua. No entanto, as cenas dos calendários, de inspiração rural, durante muito tempo a ignoraram. No século XV, a rua tomou seu lugar nos calendários. É verdade que os meses de novembro e de dezembro do livro de horas de Turim são ilustrados com o tradicional sacrifício do porco. Mas aqui, ele se passa na rua, e os vizinhos estão diante de suas portas para observá-lo. No calendário do livro de horas de Adelaïde de Savoie (1092-1154), também reconhecida como Adelaide de Maurienne, Adela ou Alice, representou a rainha consorte de França, casada com Luís VI de França, per se aparece o mercado: moleques cortam as bolsas de “donas-de-casa ocupadas e distraídas” - reconhecemos aí o tema dos “pequenos batedores de carteiras”, que se iria manter na pintura picaresca ao longo de todo o século XVII. Uma outra cena do mesmo calendário representa a volta do mercado: uma comadre para falar com sua vizinha, que está na janela; alguns homens descansam sentados num banco, protegidos por um telheiro, e distraem-se vendo meninos jogar péla, considerado um dos ancestrais do tênis e lutar. A rua medieval, no caso árabe, não opunha à intimidade; era prolongamento da vida privada, familiar do trabalho e das relações de vida cotidiana.
Os artistas, em suas tentativas de representação da vida privada, começariam por mostrá-la na rua, antes de segui-la até dentro de casa. Talvez essa vida privada se passasse tanto ou mais no meio da rua do que em casa. Com a rua, os jogos invadiram as cenas dos calendários: os jogos de cavalaria, como os torneios (Turim, Hennessy), os jogos comuns a todos, e as festas folclóricas, como a árvore de maio. O calendário do livro de horas de Adelaïde de Savoie (1092-1154) compõe-se essencialmente de uma descrição dos mais diversos jogos, jogos de salão, jogos de força e de habilidade, jogos tradicionais: a festa de Reis, a dança de maio, a luta, o hóquei, as disputas entre dois homens armados de varas em duas barcas, as guerras de neve. Em outros manuscritos, assistimos a certames de tiro com bestas (Hennessy), a passeios de barco com música (Hennessy) e os banhos coletivos (Grimani). Os jogos não eram então meramente tema de diversões, mas uma forma de participação na comunidade ou no grupo: jogava-se em família, entre vizinhos, entre classes de idade, entre paróquias. Finalmente, partir do século XVI, uma nova personagem entra em cena nos calendários: a criança. Sem dúvida, ela já aparecia notadamente com frequência na iconografia do século XVI, particularmente nos reconhecidos Miracles de Notre Dame. Mas ela havia permanecido ausente dos calendários, como se essa tradição antiga tivesse hesitado em aceitar esse elemento litúrgico que concorre em momento histórico tardio. Nos trabalhos dos campos, ainda não aparecem crianças ao lado das mulheres.
Apenas algumas servem à mesa nos banqudes de janeiro. Percebemo-las também no mercado do livro de horas de Adelaïde de Savoie; nesse mesmo manuscrito, elas brincam de jogar bolas de neve, atrapalham com sua bagunça o pregador na igreja e são expulsas. Nos últimos manuscritos flamengos do século XVI, elas se divertem alegremente; percebe-se a predileção que lhes dedica o artista. Os calendários dos livros de horas de Hennessy e de Grimani imitaram com precisão a aldeia coberta de neve das Très Riches Heures do Duque de Berry, na cena do mês de janeiro, ao qual descrevemos acima, em que o camponês corre para casa a fim de se unir às mulheres que se aquecem. Foi encomendado por João, duque de Berry em torno de 1410. Eles acrescentaram outra personagem: a criança que aparece na pose do Manneken-Pis, que se tornara frequente na iconografia da época a criança urina pela abertura da porta. Esse tema do Manneken-Pis é encontrado em toda a parte: lembremos o sermão de São João Batista do museu dos Augustins de Toulouse que outrora ornava a capela do Parlamento dessa cidade, ou um certo putti de Ticiano. Nesses livros de horas de Hennessy e Grimani, as crianças patinam no gelo, brincam de imitar os torneios dos adultos, mas alguns reconheceriam entre elas o jovem Carlos V. No livro de horas de Munique, elas se atiram bolas de neve. No Hortulus animae, elas brincam de corte de amor e de torneio, montadas numa barrica, ou patinam no gelo. As representações sucessivas dos meses introduziram personagens: a mulher, os vizinhos e companheiros; a criança se ligava a essa necessidade desconhecida das relações de intimidade, no âmbito de vida familiar, quando não era ainda precisamente concebida e representada de vida “em família”.
Ao
longo da história social no decorrer do século XVI, essa iconografia dos meses
sofreria uma última transformação significativa para nosso estudo: ela se
tornaria uma iconografia da família. Ela se tornaria familiar ao se
combinar com o simbolismo de uma outra alegoria tradicional: as idades da vida.
Havia várias maneiras de representar as idades da vida, mas duas delas eram
mais comuns: a primeira, mais popular, sobreviveu na gravura, e
representava as idades nos degraus de uma pirâmide que subia do nascimento à
maturidade, e daí descia até a velhice caminhando à morte. Os grandes pintores
recusavam-se a adotar essa composição demasiado ingênua. Deste modo adotavam a
representação das três idades sob a forma de uma criança, alguns adolescentes –
em geral um casal - e um velho. No quadro de Ticiano, por exemplo, aparecem
dois putti dormindo, um casal formado por uma camponesa vestida tocando
flauta e um homem nu no primeiro plano, e, ao fundo, um velho sentado e
recurvado segurando uma caveira. O mesmo tema é encontrado em Van Dyck, no
século XVII. Nessas três ou quatro idades da vida são representadas
separadamente, segundo a tradição iconográfica.
Ninguém
teve a ideia de reuni-las dentro de uma mesma família, cuja gerações diferentes
simbolizariam as três ou quatro idade da vida. Os artistas, e a opinião que
eles traduziam, permaneciam fiéis a uma concepção mais individualista das
idades: o mesmo individuo era representado nos diversos momentos de seu
destino. Entretanto, ao longo do século XVI, surgira uma nova ideia, que
simbolizava a duração da vida através da hierarquia da família. Lá tivemos a
ocasião de citar Le Grand Propriétaire de Toutes Choses, esse velho
texto medieval traduzido para o francês e editado em 1556. Como observamos,
esse livro era um “espelho do mundo”. O sexto livro trata das “Idades”. É
ilustrado com uma xilogravura que não representa nem os degraus das
idades, nem as três ou quatro idades separadas, mas “simplesmente uma reunião
de familia”. O pai está sentado com uma criancinha sobre os joelhos. Sua mulher
e companheira está de pé à sua direita. Um dos filhos está à sua esquerda, e o
outro dobra o joelho para receber algo que o pai lhe dá. Trata-se de um retrato de família, como os que abundavam nessa época nos
Países Baixos, na Itália, na Inglaterra, na França e na Alemanha, e uma cena de
gênero familiar, que os pintores e gravadores multiplicariam no século XVII.
Esse
tema reconheceria a mais extraordinária popularidade. Não era um tema
totalmente desconhecido da Idade Média, ao menos da parte final. Foi
desenvolvido de forma notável num capitel das loggias do palácio Ducal
de Veneza, dito capitel do casamento. Neste caso, constitui o membro
superior de uma coluna (ou pilastra). Ele faz a mediação entre a coluna e a
carga que é empurrada para baixo sobre ela, ampliando a área da superfície de
suporte da coluna. O capitel, projetando-se de cada lado à medida que sobe para
sustentar o ábaco, junta-se ao ábaco geralmente quadrado e ao eixo geralmente
circular da coluna. O capitel pode ser convexo, como na ordem dórica; côncavo,
como no sino invertido da ordem coríntia; ou rolando para fora, como na ordem
iônica. Estes formam os três tipos principais nos quais todas as capiteis da
tradição clássica se baseiam. Venturi data essa representação de cerca de 1424,
enquanto Toesca a coloca no fim do século XIV, o que parece mais provável
devido ao estilo e ao traje, mas mais surpreendente em virtude da precocidade
do tema. As oito faces desse capitel contam-nos uma história dramática que
ilustra a fragilidade da vida, um tema familiar nos séculos XIV e XV - porém
aqui, esse drama se passa no seio de uma familia, e isso é novo. A
representação começa pelo noivado. A seguir, a jovem mulher aparece vestida com
um traje de cerimônia sobre o qual foram costurados pequenos discos de metal:
seriam simples enfeites ou seriam moedas, já que as moedas desempenhavam um papel
no folclore do casamento e do batismo? A terceira face representa a cerimônia
do casamento, no momento em que um dos cônjuges segura uma coroa sobre a cabeça
do outro: rito que subsistiu na liturgia oriental. Então, os noivos têm o
direito de se beijar.
Na
quinta face, eles estão deitados nus no leito nupcial. Nasce uma criança, que
aparece enrolada em cueiros e segura pelo pai e a mãe juntos. Suas roupas
parecem mais simples do que na época do noivado e do casamento: eles se
tornaram pessoas sérias, que se vestem com uma certa austeridade ou segundo a
moda antiga. A sétima face reúne toda a familia, que posa para um retrato. O
pai e a mãe seguram a criança pelo ombro e pela mão. É o retrato familiar, tal
como o encontramos no Le Grand Propriétaire. Mas, com a oitava face, o
drama explode: a familia sofre uma prova, pois a criança está morta, estendida
sobre a cama, com as mãos postas. A mãe enxuga as lágrimas com uma das mãos e
põe a outra no braço da criança; o pai reza. Outros capitéis, vizinhos deste,
são ornados com putti nus que brincam com frutas, aves ou bolas: temas
mais banais, mas que permitem recolocar o capitel do casamento em seu contexto imagético
iconográfico. Queremos dizer que a história do casamento começa como a história
de uma familia, mas acaba com o tema diferente da morte prematura. No museu
Saint-Raimond, em Toulouse, podemos ver os fragmentos de um calendário que pôde
ser datado do início da Segunda metade do século XVI graças aos trajes. Na cena
do mês de julho, a familia está reunida num retrato, como na gravura
contemporânea do Le Grand Propriétaire, mas com um detalhe adicional que
tem sua importância: a presença dos criados ao lado dos pais. O pai e a mãe
estão no meio. O pai dá a mão ao filho, e mãe à filha. O criado está do lado
dos homens, e a criada do lado das mulheres, pois os dois sexos são separados
como nos retratos de doadores: os homens, pais e filhos, e as mulheres, mães e
filhas, do outro.
Os criados fazem parte da familia. Agosto é o mês da colheita, mas o pintor se empenha em representar, mais do que a própria colheita, a entrega da colheita ao senhor, que tem na mão moedas para dar aos camponeses. Essa cena prende-se a uma iconografia muito frequente no século XVI, particularmente nas tapeçarias em que os fidalgos do campo supervisionam seus camponeses ou se divertem com eles. Outubro: a refeição em familia. Os pais e as crianças estão sentados à mesa. A criança menor está encarapitada numa cadeira alta, que lhe permite alcançar o nível elevado da mesa - uma cadeira feita especialmente para as crianças de sua idade, do tipo que vemos ainda hoje. Um menino com um guardanapo serve à mesa: talvez um criado, talvez um parente, encarregado naquele dia de servir à mesa, função que nada tinha de humilhante, muito ao contrário. Novembro: o pai está velho e doente, tão doente que foi preciso recorrer ao médico. Este, com um gesto banal pertencente a uma iconografia tradicional, inspeciona o urinol. Dezembro: familia está reunida no quarto, perto do leito onde o pai agoniza.
Ele
recebe a comunhão. Sua mulher está de joelhos ao pé da cama. Atrás dela, uma
moça ajoelhada chora. Um rapaz segura uma vela. Ao fundo, percebe-se uma
criança pequena: sem dúvida o neto, a próxima geração que continuaria a
familia. Portanto, esse calendário assimila a sucessão dos meses do ano à das
idades da vida, mas representa as idades da vida sob a forma da história de uma
familia: a juventude de seus fundadores, sua maturidade em torno dos
filhos, a velhice, a doença e a morte, que é ao mesmo tempo a “boa morte”, a
morte do homem justo, tema igualmente tradicional, e também a morte do
patriarca no seio da familia reunida. A história desse calendário começa como a
da família do capitel do casamento do palácio dos Doges. Mas não é o filho, a
criança querida, que a morte rouba cedo demais. As coisas seguem um curso provável mais
natural. É o pai que parte, ao final de uma vida plena, cercado por uma família
unida, e deixando-lhe sem dúvida um patrimônio bem administrado. A diferença
está toda aí. Não se trata mais de uma morte súbita, e sim da ilustração de um
sentimento novo: o sentimento da família.
O
aparecimento do tema da família na iconografia dos meses não foi um simples
episódio. Uma evolução maciça arrastaria nessa mesma direção toda a iconografia
dos séculos XVI e XVII. No princípio, as cenas representadas pelos artistas se
passavam ou num espaço indeterminado, ou em lugares públicos como as igrejas,
ou ao ar livre. Na arte gótica, livre do simbolismo romano-bizantino, as cenas
de ar livre tornaram-se mais numerosas e mais significativas graças à invenção
da perspectiva e ao gosto pela paisagem: a dama recebe seu cavaleiro num jardim
fechado; a caçada conduz grupos através dos campos e florestas; o banho reúne
as damas em torno da fonte de um jardim; os exércitos manobram, os cavaleiros
se enfrentam em torneios, o exército acampa em torno da tenda onde o Rei
descansa, os exércitos sitiam cidades; os príncipes entram e saem das cidades
fortificadas, sob a aclamação do povo e dos burgueses. Penetramos nas cidades
por pontes, passando diante das tendas onde trabalham os ourives. Vemos passar
os vendedores de biscoitos, e as barcas carregadas descendo o rio. Ao ar livre
ainda, vemos todos os jogos serem praticados. Acompanhamos os jograis e os
peregrinos em seu caminho. A iconografia profana medieval é uma iconografia do
ar livre.
Quando,
nos séculos XIII ou XIV, os artistas se propõem a ilustrar anedotas ou
episódios particulares, eles hesitam, e sua ingenuidade surpresa produz um
resultado canhestro: nenhum deles se compara ao virtuosismo dos artistas que
representam episódios nos séculos XV e XVI. Antes do século XV, portanto, as
cenas de interior da casa são muito raras. A partir de então, elas se tornam
cada vez mais frequentes. O evangelista, antes situado num meio atemporal,
torna-se um escriba em sua escrivaninha, com a pena e a raspadeira na
mão. Primeiro ele é colocado na frente de um simples drapeado decorativo, mas
finalmente aparece num quarto cheio de livros em prateleiras: do evangelista,
passou-se ao autor em seu quarto, a Froissart escrevendo uma dedicatória em seu
livro. Nas ilustrações do texto de Terêncio do palácio dos Doges, as mulheres
trabalham e fiam em seus aposentos, com suas criadas, ou aparecem deitadas na
cama, nem sempre sozinhas. Veem-se cozinhas e salas de albergues. As cenas
galantes e as conversações se passam agora no espaço fechado interno de uma
sala. Surge o tema do parto, cujo pretexto “é o nascimento da Virgem”.
Criadas, comadres e parteiras se atarefam no quarto em torno da cama da mãe.
Surge também o tema da morte, da morte no quarto, em que o agorlizante luta em
seu Idto por sua salvação. A representação mais frequentes do quarto e da sala
corresponde a uma tendência nova do sentimento, que se volta então para a
intimidade da vida privada. As cenas de
exterior não desaparecem e são a origem das paisagens, as de
interior tornam-se mais numerosas e mais originais. Iriam caracterizar a
pintura de gênero todo o tempo de sua existência.
Compreendemos que a vida privada, rechaçada na Idade Média, invade a iconografia, particularmente a
pintura e a gravura ocidentais no século XVI e, sobretudo no XVII: a pintura
holandesa e flamenga e a gravura francesa comprovam a extraordinária força expressiva
desse sentimento, antes inconsistente ou menosprezado. Sentimento já tão
moderno, que para nós é difícil compreender o quanto era novo. Essa farta
ilustração da vida privada poderia ser classificada per se em dois
grupos: o do namoro e da farra à margem da vida social, no mundo suspeito dos
mendigos, nas tabernas, nos bivaques, entre os boêmios e os vagabundos - que
desprezaremos por estar fora de nosso assunto - e sua outra face, o grupo da
vida em familia. Se percorrermos as coleções de estampas ou as galerias de
pintura dos séculos XVI-XVII, ficaremos impressionados com essa verdadeira
avalancha de imagens de familias. Esse movimento urbano nascituro europeu culmina
na pintura da primeira metade do século XVII na França, e na pintura de todo o
século e até mais na Holanda. Ele
persiste na França durante a segunda metade do século XVII na gravura e nos
leques pintados, reaparece no século XVIII na pintura, e dura até o século XIX,
até a grande revolução estética que baniria da arte a cena de gênero. Nos
séculos XVI e XVII, os retratos de grupos humanos são numerosíssimos. Alguns
são retratos originários de confrarias ou corporações. Mas a maioria representa
uma familia reunida. Estes surgem
no século XV, com os doadores que se fazem representar no nível inferior de
alguma cena religiosa, como sinal de sua devoção. Esses doadores são discretos
e sozinhos.
Mas
logo começam a trazer a seu lado toda a familia, incluindo os vivos e os
mortos: as mulheres e os filhos mortos também têm seu lugar na pintura. De um
lado aparece o homem e os meninos, do outro lado as rnulheres, cada uma com as
filhas de seu leito. O nível ocupado pelos doadores amplia-se ao mesmo tempo em
que se povoa, em detrimento da cena extraordinária religiosa, que se torna
então uma ilustração, quase um hors-d`oeuvre. Na maioria dos
casos ela se reduz aos santos padroeiros do pai e da mãe, o santo do lado dos
homens e a santa do lado das mulheres. Convém observar a imponência assumida
pela devoção dos santos padroeiros, que figuram como protetores da familia: ela
é o sinal de um culto particular de caráter familiar, como o do anjo da guarda,
embora este último tenha um caráter mais pessoal e mais peculiar à infância.
Essa etapa consentida através do retrato dos doadores com sua família pode ser ilustrada com numerosos exemplos do século XVI: os vitrais da família Montmorency em Monfort-L`Amaury, Montmorency e Ecouen; ou os numerosos quadros pendurados como ex-votos nos pilarcs e nas paredes brancas das igrejas alemãs, muitos dos quais permanecem em seu lugar nas igrejas de Nuremberg e muitas outras pinturas, às vezes ingênuas e mal feitas, chegaram aos museus regionais da Alemanha e da Suíça alemã. Os retratos de familia de Holbein são fiéis a esse estilo. Tudo indica que os alemães se tenham apegado por mais tempo a essa forma de retrato religioso da familia, destinado às igrejas; ele seria uma forma mais barata do vitral dos doadores, mais antigo, e anunciaria os ex-votos mais anedóticos e pitorescos do século XVIII e início do XIX, que representam não mais a reunião familiar dos vivos e dos mortos, mas o acontecimento miraculoso que salvou um indivíduo ou um membro da familia de um naufrágio, um acidente ou uma doença. O retrato de familia representa na sociedade uma espécie de ex-voto. Mas logo começam a trazer a seu lado toda a familia, incluindo os vivos e os mortos: as mulheres e os filhos mortos também têm seu lugar de representção social na pintura. De um lado aparece o homem e os meninos, do outro lado, como vimos, as mulheres, cada uma com as filhas de seu leito.
O nível ocupado pelos doadores amplia-se comparativamente ao mesmo tempo em que se povoa, em detrimento da cena religiosa, que se torna então uma ilustração, quase um hors-d`oeuvre. Na maioria dos casos ela se reduz aos santos padroeiros do pai e da mãe, o santo do lado dos homens e a santa do lado das mulheres. Convém observar a imponência assumida pela devoção dos santos padroeiros, que figuram como protetores da familia: ela é o sinal de um culto particular de caráter familiar, como o do anjo da guarda, embora este último tenha um caráter mais pessoal e mais peculiar à infância. Essa etapa do retrato dos doadores com sua família pode ser ilustrada com numerosos exemplos do século XVI: os vitrais da família Montmorency em Monfort-L`Amaury, Montmorency e Ecouen; ou os numerosos quadros pendurados como ex-votos nos pilarcs e nas paredes das igrejas alemãs, muitos dos quais ainda permanecem em seu lugar nas igrejas de Nuremberg e muitas outras pinturas, às vezes ingênuas e mal feitas, chegaram aos museus regionais da Alemanha e da Suíça alemã. Os retratos de familia de Holbein são fiéis a esse estilo. Tudo indica que os alemães se tenham apegado por mais tempo a essa forma de retrato religioso da familia, destinado às igrejas; ele seria uma forma mais barata do vitral dos doadores, mais antigo, e anunciaria os ex-votos mais anedóticos e pitorescos do século XVIII e início do XIX, que representam não mais a reunião familiar dos vivos e dos mortos, mas o acontecimento miraculoso que salvou um indivíduo ou um membro da familia de um naufrágio, um acidente ou uma doença. O retrato de familia é uma espécie de ex-voto.
Observa o filósofo da analítica do poder, Michel Foucault (2014) que no final do século XVIII e começo do XIX, mutatis mutandis, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo. Em seu ensaio magistral sobre a questão tópica da vigilância & punição sua análise apresenta, em primeiro lugar, o exemplo histórico de suplício e de utilização do tempo. Entretanto, eles não sancionam os mesmos crimes, não punem o mesmo gênero de delinquentes. Mas definem bem, cada um deles, um certo estilo penal. Menos de um século medeia entre ambos. É a época em que foi redistribuída, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo. Época de grandes “escândalos” para a justiça tradicional, época dos inúmeros projetos de reformas; nova teoria da lei e do crime, nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das antigas ordenanças, supressão dos costumes; projeto ou redação de códigos “modernos”: Rússia, 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791; Ano IV, 1808 e 1810. Para a justiça penal uma nova era. Dentre tantas modificações, Foucault atenta-se a uma: o desaparecimento dos suplícios. De qualquer forma, qual é sua importância, comparando-o às grandes transformações institucionais, com códigos explícitos gerais, com regras unificadas de procedimento; o júri adotado em quase toda a parte, a definição do caráter corretivo da pena, e essa tendência acentuada mais desde o século XIX a modular os castigos segundos os indivíduos culpados?
Queremos dizer com isso, que se trata de um sistema de representação das punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sendo apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade? Um fato social é progressivo: em algumas dezenas de anos, desapareceu praticamente o corpo do supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal. Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas razões de ser. De um lado, a supressão do “espetáculo” punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de administração. A confissão dos crimes tinha sido abolida na França pela primeira vez em 1791, depois em 1830, após ter sido estabelecida por breve tempo; o pelourinho foi suprimido em 1789; a Inglaterra o aboliu em 1837. As obras públicas que a Áustria, a Suíça e algumas províncias norte-americanas como a Pensilvânia obrigavam a fazer em plena rua ou nas estradas – condenados com coleiras de ferro, em vestes multicores, grilhetas nos pés, trocando com o povo desafios, injúrias, zombarias, pancadas, sinais de rancor ou de cumplicidade – são eliminados mais ou menos no fim do século XVIII, ou na primeira metade do século XX. A punição pouco a pouco deixou de ser cena pública. A punição vai-se tornando a parte velada do processo penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no campo da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade, não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica da punição muda suas engrenagens: a justiça não mais assume a parte vista da violência ligada a seu exercício.
Quer dizer, desde então, o escândalo e a luz serão partilhados de outra forma; é a própria condenação que marcará o delinquente com sinal negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates jurídicos e da sentença; quanto à execução, ela é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado; ela guarda distância, tendendo sempre a confiá-la a outros e sob a marca do sigilo. É indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso esse duplo sistema de proteção que a justiça estabeleceu entre ela e o castigo que ela imprimiu. A execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a justiça, que se livra desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da pena. É neste aspecto um caso típico historicamente na França que a administração das prisões por muito tempo ficou sob a dependência do Estado: no Ministério do Interior, e a dos “trabalhos forçados” sob o controle da Marinha e das Colônias. E acima dessa distribuição dos papéis se realiza a própria negação teórica: o essencial da pena que nós, juízes, infligimos, não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, “curar”; uma técnica de aperfeiçoamento recalca, na pena, a estrita expiação do mal, e liberta os magistrados do vil ofício de castigadores. Existe na justiça e entre aqueles que a distribuem na realidade uma vergonha de punir, que nem sempre exclui o zelo; ela aumenta; pululam os psicólogos e o pequeno funcionário da ortopedia moral.
Enfim, Michel Foucault ressalta que o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato faz com que uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. Temos que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é um “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes pela posição dos que são dominados. Esse poder não se aplica simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele os investe, passa por eles e por meio deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança. Essas relações se aprofundam dentro da sociedade, mas não se localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes em reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e dos comportamentos a forma geral da lei ou do governo; que se há continuidade, elas se articulam nessa forma, de acordo com toda uma série de complexas engrenagens. Não há analogia nem homologia, mas especificidade do mecanismo e de modalidade.
Bibliografia
geral consultada.
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